Pesquisar

  Janus OnLine - Página inicial
  Pesquisa Avançada | Regras de Pesquisa 
 
 
Onde estou: Janus 1998 > Índice de artigos > Olhares sobre Portugal > [Portugal visto de Luanda: Um olhar sobre os portugueses]  
- JANUS 2004 -

Janus 2004



Descarregar textoDescarregar (download) texto Imprimir versão amigável Imprimir versão amigável


Portugal visto de Luanda: Um olhar sobre os portugueses

Maria Alexandre Dáskalos *

separador

E a estrada por onde passou Almeida Garrett, em "As viagens da minha terra". Eu, tão longe da minha. Muitos anos depois descubro no Vale de Santarém, memórias do que desconhecia. Elegi o vale refúgio de Lisboa, a grande cidade onde experimentei nos últimos anos esse aconchego do anonimato nos transportes públicos, dos apertos, às confissões e burburinhos ainda a lembrar uma ruralidade recente de primeira geração de urbe. Nas avenidas e na baixa cruzamo-nos com as cores do império, safaris e bubus, outras línguas que o português, são o toque do cosmopolitismo recente.

Mas a Baixa é abandonada aos fins-de-semana. Tenho saudades de um tempo, que não vivi, de rituais de domingo e de esplanadas a abarrotar. Onde estão os lisboetas do coração da cidade? Nas pastelarias, os bules de chá são inadequados e as saladas de tomate verde ainda hoje me surpreendem. Os centros comerciais, esses, desde a periferia estão cheios de visitantes que tomam bicas em pé e o café é demasiado torrado e amargo. E pergunto-me onde ficou a memória que aquela da política e dos afectos de Angola e de S. Tomé?

Por isso quando posso, nos longos fins-de-semana volto sempre ao Vale de Santarém, onde a pacatez do casario esconde a familiaridade dos gestos. De quando em vez, grandes portões se abrem para uma quinta. A casa senhorial, o lagar, as cavalariças e o pomar levaram-me a perceber depois das vindimas os poetas persas e o seu canto ao vinho. Tudo isto tem pouco a ver com uma chitaca de África, mas o que há de comum é o receber nos rituais diferentes e a familiaridade dos gestos. Também é possível encontrá-la nos arrabaldes de Lisboa quando lentamente se vai conhecendo todo o pequeno bairro, onde passamos a ter nome e nos vendem fiado. Mas há um conformismo na cidade, um véu que esconde uma tristeza muito antiga e quando estamos na província ela aparece-nos a descoberto, mansa e domesticada. Será uma memória inconsciente da Inquisição, da emigração, do Estado Novo?

Uma vez numa aldeia do Minho, no sossego das ruas desertas às três da tarde, pressenti os mesmos sussurros dos preparativos de festas tropicais enquanto os homens dormiam a sesta. Mas ao fim da tarde, naquele verde todo verde surgiu a romaria com preces e cantares. Era uma outra mistura da religiosidade e da tradição em que a comunidade aparecia intacta. Às vezes aqui falta uma dose de paganismo, não o do consumismo da cidade mas o da luta do homem e do touro como no Ribatejo. É uma festa sobre o confronto do homem com a natureza. A não esquecer. Mas apesar da modernidade do betão e dos dormitórios e das vasilhas de leite à porta de casa terem desaparecido é possível no interior ou num pequeno bairro a comunidade aparecer tão natural, tão óbvia, ainda não transfigurada no impessoal a-histórico que nos sentimos em casa.

Topo Seta de topo

Em qualquer parte do mundo quando uma comunidade nos integra estamos em casa. Aqui é mais fácil e mais difícil. Menina, no Huambo, li Garrett, Eça, enfim, os clássicos de uma cultura portuguesa que herdei mas que não era a única naquele espaço de outras culturas simplesmente diferentes. A vivência angolana de dualidades inculcou uma imagem de um Portugal que não existe mais. É como percorrer a serra de Sintra à procura dos mistérios do tempo de Eça, ou como se os cafés da avenida de Roma ficassem perenizados nos anos 70. Mas não são só as curtas viagens, a literatura, são também os portugueses que conhecemos em África que nos deixaram uma imagem a que o Portugal de hoje não corresponde. Dos pioneiros do princípio do século, dos homens que se fizeram a si próprios, dos fura-vidas, todos unidos na grande aventura, não ficou nem fumo.

Os portugueses que regressaram e os seus descendentes passam despercebidos na multidão e, neste quadradinho arrumado, as aventuras são monopólio dos jornalistas. Lidar com essas memórias não é fácil, mas é também uma memória de todos. Para quem veio recentemente viver neste país não custa encontrar afectos ainda fortes e generosidade. Os ambientes bafientos desapareceram, os heróis da oposição passaram a ser gente comum e uma certa morbidez aparece raramente. Mas do império ficou a pontualidade do presente.

Um dia, levei a um pintor restaurador do Vale de Santarém um retrato de um tetravô que viveu nas índias e que sobreviveu à guerra e às pilhagens de África. Hesitei se valeria a pena retocar o nariz e os brincos do antepassado mas pensei que ele e outros valeriam as estórias a contar naquele atelier absorvido pelas famílias de região. E foi assim que também os outros retratos lembravam as estórias do Brasil ou de Moçambique. E ao fim da tarde, sentados no caramanchão, encontrava gente que tinha estado em Cabinda. Quem são os herdeiros e os deserdados do império? É isso que me pergunto quando encontro um português, quando me cruzo com a grande multidão que se esqueceu, ou nunca soube, como tomar o chá e o café e, os múltiplos usos do pau de canela.

Será que olhando só para a Europa, lidando mal com a memória, ficaram mais tristes? É necessário limpar as teias de aranha da culpabilidade no exercício de arqueologia que vai desde ouvirmos a música africana cantada em pubs lisboetas a dançar a quizomba em discotecas africanas. E preciso mais do que isso. E a propósito dessa arqueologia das vivências, estórias e história esperava encontrar aqui os salões onde isso acontece, não os salões do século XVIII nem as tertúlias de homens de fato escuro dos anos 50. Mas aqueles que existem, por exemplo, em Paris e na Alemanha onde até se escrevem livros em grupo. Há sempre pequenas ilhas, talvez já existam, talvez se venham a criar.

Mas destes passeios, desta vivência há um tempo de angústia que é o Verão. O calor que não se concilia com o descaso do Algarve, este o actual. O desejo de sol e de água quente, aqui leva-me sempre ao Sul. Um Sul que conheci pela primeira vez em 1980 e de que na altura gostei. Da paisagem, dos hábitos a adivinhar uma África do Norte onde mais tarde vivi. Agora regresso e, para quem gosta do país em que está, pergunta-se porquê essa destruição que os jardins bem cuidados dos condomínios caros fazem por momentos esquecer. Aí é que a tal comunidade desaparece, a arquitectura que espelha a comunhão do homem com a natureza, salva ainda em muitos lugares, ali foi destruída. É como se não estivéssemos em Portugal. Mas num grande aldeamento anónimo de um mediterrâneo qualquer. Assim se vivem pequenas alegrias e tristezas que também me ajudam a explicar melhor o meu país. Em Portugal começa muito da nossa maneira de agir e de pensar para o bem e para o mal.

separador

* Maria Alexandre Dáskalos

Poeta. Comentadora da RDP África.

Topo Seta de topo

 

- Arquivo -
Clique na edição que quer consultar
(anos 1997 a 2003)
_____________

2003

2002

2001

1999-2000

1998

1998 Supl. Forças Armadas

1997
 
  Programa Operacional Sociedade de Informação Público Universidade Autónoma de Lisboa União Europeia/FEDER Portugal Digital Patrocionadores