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A novidade dos estudos sobre a paz

José Manuel Pureza *

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O lugar da paz no pensamento ocidental tem oscilado entre duas posições fundamentais. De um lado, aquele que assenta sobre o velho entendimento "si vis pacem para bellum", e para o qual a unidade interna do Estado e a sua defesa armada face a ameaças externas são os sustentáculos da paz. De outro lado, a perspectiva da paz como resultado da dinâmica diplomática interestatal e, portanto, como um bem universalizável a partir da expansão do sistema interestatal moderno. Na sua diversidade, são duas perspectivas que comungam de uma concepção muito limitada de paz (a ausência de conflito e de desordem interna) e de um dualismo entre o Estado, no interior do qual o contrato social garante a paz e a ordem, e a sociedade internacional que, pela sua suposta anarquia endémica, está fatalmente votada à primazia da lei do mais forte e que, por isso mesmo, segrega uma visão estreita e negativa da paz.

Este quadro intelectual está na base da agregação, proposta por exemplo por Celestino del Arenal, de três grandes correntes de estudos sobre a paz. A primeira é a corrente minimalista, sobre o estudo das causas da guerra, iniciada na década de 30. Utilizando um quadro conceptual de matriz behaviorista, autores como Quincy Wright, Richardson ou Bouthoul procuraram acima de tudo determinar as tipologias de causas dos conflitos armados e, bem assim, estabelecer perfis quantificados de desenvolvimento desses conflitos, a partir do estudo de algumas variáveis essenciais (capacidades dos Estados, polarização das alianças, disponibilidade de armamento, etc.).

A segunda corrente, desenvolvida nos anos 50, identifica-se com os "estudos sobre o conflito". É, pois, dotada de um campo de investigação mais amplo que a primeira, dado que passa a abarcar não apenas os conflitos internacionais mas todo o género de conflitos humanos. Nesta linha se integram, assim, desde os estudos sobre a agressividade individual (Lorenz, por exemplo) até aos estudos político-sociológicos sobre os conflitos, e os trabalhos sobre "conflict management" à escala internacional como os feitos por John Burton.

A terceira corrente, tida como "radical", é aquela que aparece sob a designação de estudos sobre a paz ("peace studies" ou "peace research"). Ela resulta fundamentalmente do corte teórico, operado a partir da década de 60, com o conservadorismo realista e behaviorista das Relações Internacionais. Às etapas anteriores critica-se o seu formalismo e a sua concentração conservadora na gestão dos conflitos internacionais, sem cuidar de pôr em causa as estruturas produtoras de conflitualidade.

Ao contrário, a "peace research" assume-se como uma atitude científica ajustada à consciência de que as raízes reais dos conflitos se situam na pobreza, na assimetria económica, na degradação ambiental e na resignação cultural. Trata-se, por isso, de uma escola com quatro características básicas: 1) a superação do paradigma estatocêntrico e a sua substituição por uma focagem antropocêntrica, em que a pessoa e a humanidade passam a ser as referências básicas; 2) orientação normativa, isto é, recusa do positivismo e da pretensa neutralidade da ciência social em favor de uma ambição transformadora, guiada pela paz como um valor a atingir; 3) transdisciplinaridade, como método de tratamento das múltiplas dimensões da questão da paz; e 4) orientação para a acção: do estudo à praxis da paz.

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O lançamento desta corrente pode situar-se em 1964, início da publicação do "Journal of Peace Research" pelo International Peace Research Institute de Oslo, sob a direcção de Johan Galtung. Duas outras instituições, a International Peace Research Association de Londres e o Stockholm International Peace Research Institute, vieram a juntar-se àquele como suportes dos estudos sobre a paz. Enquanto escola analítica, os "peace studies" assentam em duas linhas argumentativas fundamentais, comuns a autores como Galtung, Adam Curle, Anatol Rapoport ou Dieter Senghaas.

A primeira consiste na defesa de um conceito amplo de paz. Galtung postulou-o logo em 1964: paz negativa ou ausência de guerra e paz positiva ou comunidade humana integrada e harmónica. Essa amplitude do conceito de paz vem em relação directa com a amplitude conferida pelos peace studies à violência: para lá da violência pessoal ou directa, existe a violência estrutural, resultante da desigualdade de poder e da injustiça social. Esta violência estrutural situa-a Galtung na distinção entre países centrais e países periféricos e entre centro e periferia dentro deles. E ainda a violência cultural, aquela que se traduz no sistema de normas e comportamentos que legitimam socialmente as duas anteriores. A primeira é um facto, a segunda um processo e a última uma invariância, uma permanência.

Para Johan Galtung, as três formas de violência têm ciclos temporais distintos, semelhantes àqueles que presidem à observação dos fenómenos sísmicos: "o sismo como um facto, o movimento das placas tectónicas como um processo e a falha como uma condição permanente". Numa conferência recente, Galtung veio a sintetizar quase matematicamente essa amplitude do seu conceito de paz: "Paz = paz directa + paz estrutural + paz cultural". E concretiza em "Peace by peaceful means", de 1996: "A paz positiva directa consistiria na bondade física e verbal, boa para o corpo, a mente e o espírito do próprio e do outro; seria orientada para todas as necessidades básicas, a sobrevivência, o bem-estar, a liberdade e a identidade. (...). A paz positiva estrutural substituiria a repressão pela liberdade, e a exploração pela equidade, reforçando-as com diálogo em vez de imposição, integração em vez de segmentação, solidariedade em vez de fragmentação e participação em vez de marginalização. (...)

A paz positiva cultural substituiria a legitimação da violência pela legitimação da paz na religião, no direito e na ideologia; na linguagem; na arte e na ciência; nas escolas, universidades e "media"; construindo uma cultura de paz positiva." Um segundo traço de identificação dos estudos sobre a paz é a sua dimensão prospectiva e normativa. De facto, a característica definidora dos estudos sobre a paz não é uma área de estudo específica nem os métodos e procedimentos usados para esse estudo, mas sim a orientação estratégica dos estudos para uma transformação do sistema internacional, em vista do estabelecimento prático dos pressupostos de paz universal e perpétua que servem de guia aos próprios estudos. É assumidamente uma proposta de investigação-acção, "policy oriented".

Essa crença no poder transformador da investigação ganha expressão palpável no carácter normativo do discurso dos estudos sobre a paz. De acordo com Galtung, "os aspectos positivos da paz levar-nos-ão a considerar não apenas a ausência de violência directa e estrutural mas também a presença de um tipo de cooperação não violenta, igualitária, não exploradora, não repressiva, entre unidades nacionais ou pessoas".

Quer dizer que, para lá da investigação empírica e da investigação crítica, Galtung e os seus seguidores cultivam a investigação construtiva para a paz. "Os estudos sobre a paz são tão semelhantes aos estudos sobre a saúde que o triângulo 'diagnóstico-prognóstico-terapêutica' pode ser-lhes aplicado", escreveu em 1996. É fundamentalmente aqui que se exterioriza o carácter normativo dos "peace studies" e que os aproxima de cortes paradigmáticos como o sugerido pelo World Order Models Project, de Falk e Mendlovitz. Superando os limites do paradigma estatocêntrico e da metodologia positivista, os estudos sobre a paz incluem os direitos humanos, o desenvolvimento económico e social, o equilíbrio ecológico e populacional como "items" globais da sua agenda de investigação/acção, em permanente confronto com as "utopias relevantes" e os "futuros desejáveis". Definitivamente, os estudos sobre a paz assumem-se como suportes da edificação de uma genuína nova ordem mundial.

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* José Manuel Pureza

Professor Auxiliar da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Coordenador da Licenciatura em Relações Internacionais.

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