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Janus 2001



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O Extremo Ocidente Ibérico

Cláudio Torres *

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As fronteiras geoclimáticas do Mediterrâneo, matriz das mais velhas civilizações marítimas e urbanas, são o enquadramento dos territórios e espaços onde se implantou fortemente, primeiro o Império Romano e depois o Islão. A civilização islâmica não pode ser divorciada deste seu contexto geográfico e cultural. Não podemos explicar as mutações religiosas do século VII, com a fulgurante expansão muçulmana, mencionando apenas as invasões de povos originários das Arábias e de outras orlas desérticas exteriores ao mundo civilizado das grandes cidades marítimas.

A islamização é um processo complexo que não pode ser dissociado das tradições urbanas mediterrânicas onde os sistemas religiosos e nomeadamente o cristianismo estavam nessa altura a ser sacudidos por graves cismas teológicos. A nova mística religiosa, a busca das origens, a boa nova do Corão foi assimilada e difundida no meio citadino e mercantil e não, certamente, imposta a fio de espada pelos esquadrões militares de profissionais da guerra.

Se aceitarmos estes pressupostos, já poderemos melhor enquadrar os fenómenos políticos, sociais e artísticos acalentados durante os séculos do Islão Ibérico e que definem uma civilização e um estilo próprio e irrepetível.

A história da Península Ibérica tem sido marcada tradicionalmente pela invasão das tropas de Tarik em 711 e pela mítica batalha de Guadalete, quando as hostes da cristandade, vencidas pelos sarracenos, teriam sido obrigadas a refugiar-se nas montanhas do Norte. Hoje porém, na explicação de uma tão genial estratégia e de um tão rápido e eficaz proselitismo religioso que, em meia dúzia de anos se impôs a quase toda a Península Ibérica, as investigações arqueológicas, e de um modo geral a historiografia mais recente, tendem a desvalorizar os factos militares.

Em vez de uma maciça instalação de muitos desmobilizados como colonizadores-povoadores, opta-se claramente por um fenómeno de aproximação e síntese cultural liderado – por embarcadiços, artesãos e mercadores, que aproveitaram a abertura das grandes rotas marítimas para fundar ou revitalizar um outro espírito de cidade. Em vez de cenários urbanos destruídos ou arruinados do velho Império Romano, em vez de cicatrizes deixadas pela imposição de novas formas de vida e civilização, nota-se, a partir do século IX, um processo generalizado de ressurgimento do labirinto urbano da cidade segmentada mediterrânica. Esta linha de continuidade civilizacional será apenas interrompida pela "Reconquista", quando são introduzidos nas terras do sul os primeiros corpos estranhos de uma nova formação social que, de um modo geral, catalogamos como feudalismo.

A islamização da Península Ibérica, ao contrário de uma imposição militar, resultou sobretudo de uma rápida conversão das populações citadinas mais abertas à troca de mercadorias e de ideias, tendo naturalmente acompanhado e incentivado a abertura de novas rotas e mercados com um evidente acréscimo em quantidade e variedade dos produtos e artefactos. A importação, por vezes longínqua, de tecidos, cerâmicas, armas e metais lavrados, além de alimentar novos gostos e apetites, vai também encorajar produções locais que, embora mantendo algumas referências ao modelo inicial, em breve se autonomizam, iniciando linguagens estéticas inovadoras e consolidando outros circuitos regionais.

Apesar de um relacionamento frequente entre o Oriente mediterrânico e o Al Andalus – como é referido na conhecida documentação do século XI depositada na sinagoga Genisa do Cairo – um dos maiores centros abastecedores dos mercados do Gharb parece ter sido a região de Tunis e Kairouan, na actual Tunísia, que durante os séculos IX e X recuperam a sua importância como centros religiosos e culturais. No Mediterrâneo Ocidental, o intercâmbio económico e os laços culturais eram nessa época tão intensos como nos tempos de Santo Agostinho (séc. V d.C), em que os modelos arquitectónicos e decorativos da arte cristã da velha Cartago servindo de modelo às basílicas e baptistérios da Hispânia meridional, veicularam também novas ideias, muitas vezes pouco ortodoxas, que serviram de matriz aos mais variados cismas e heresias.

Só a partir dos séculos X e XI a faixa costeira da Argélia Ocidental e as actuais cidades portuárias de Ceuta ou Tânger começam a desenvolver-se por influência de Córdova e de outras capitais do Al Andalus que em todo o Ocidente se afirmara incontestavelmente como centro polarizador. Atravessar o golfo do Algarve, ou o mar de Alboran, ligando Faro e Arzila, ou Almeria a Argel, passa a ser bem mais fácil e rápido do que viajar, por exemplo, entre Tavira e Lisboa, em cujo percurso se levantavam os mares agitados e os ventos adversos do cabo de S. Vicente.

Na Península Ibérica é notória uma sintomática coincidência entre o limite dos territórios mais romanizados, as fronteiras interiores do Al Andalus e as grandes cordilheiras montanhosas que marcam os confins setentrionais geoclimáticos do Mediterrâneo. Esta barreira natural das Serras – como os geógrafos e cronistas andaluzes chamavam à sequência montanhosa de Guadarrama, Gredos e Estrela – sempre separou as culturas mediterrânicas das civilizações do Norte, tradicionalmente ligadas aos reinos continentais de além Pireneus. Aqui, nas cumeadas que repartem as águas das bacias hidrográficas do Tejo e do Douro, passa, visivelmente bem marcada, a linha separadora dos falares do Norte dos falares do Sul, das formas e técnicas de construir e de habitar, dos hábitos e costumes ligados a mundos com raízes antropológicas e culturais distintas.

Aliás, é tão poderosa esta fronteira natural e também cultural, que as suas melhores passagens e portos de atravessamento irão constituir, cada um deles, como que a matriz geradora dos quatro novos reinos cristãos talhados a fio de espada sobre as terras do Sul. Depois da entrada do Ebro que justificou o Reino de Aragão, dos desfiladeiros da serra de Guadarrama que desembocam na meseta de Castela e da velha Via da Prata, sobre a qual se estendeu o reino de Leão, destaca-se o último e mais ocidental corredor Norte-Sul, que, sobrepondo-se também a uma importante via romana, ligava Braga a Lisboa. Uma velha ponte sobre o Mondego, no local onde as suas águas amansam e se ergue Coimbra, marcava simbolicamente o cruzamento das fronteiras do Sul e o ponto simbólico unificador do Reino de Portugal.

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Temos assim claramente marcados, nas cumeadas da Serra da Lousa e nas arribas do Mondego, os limites setentrionais do Garb-al-Andalus. Não muito longe e talvez mesmo a coincidir, passariam os confins da antiga Lusitânia romana. Este facto, que poderia passar despercebido ou de somenos importância, cremos ser no entanto significativo para fazer notar as concordâncias entre uma simples divisória provincial, à primeira vista arbitrária, e o importante e disputado limite norte do Gharb-al-Andalus.

As coincidências multiplicam-se se observarmos haver também uma quase completa justaposição das linhas que separavam a Lusitânia da Bélica e o Gharb do restante al Andalus e que sempre acompanharam as serras de Aroche e do Andévalo, nos limites das bacias hidrográficas do Guadiana e do Odiel-Guadalquivir.

Se em terra firme, as linhas de fronteira são, mais ou menos claramente, marcadas por acidentes naturais, o mesmo não acontece, naturalmente, nos largos espaços marítimos. No entanto, são também perceptíveis nas costas atlânticas do Ocidente peninsular duas grandes áreas geoculturais que, de forma mais ou menos directa, influenciaram e envolveram a história do Gharb-al-Andalus. Como que prolongando por cima das vagas a longa cordilheira que começa no vale do Ebro e se estende até às falésias do cabo Mondego, também aqui é perfeitamente nítida a fronteira entre os mares do sul, mais quentes e bonançosos e os mares do norte onde as brumas e tempestades limitam a navegação a escassos meses durante o ano. Até ao grande porto de abrigo de Lisboa, a nomenclatura dos peixes, os hábitos alimentares, as artes da pesca e da construção naval, pertencem às tradições culturais mediterrânicas. Para norte de Peniche predominam as tradições biscainhas e galegas.

Se aceitamos para o Garbe estes sinais de identidade regional, já compreendemos melhor uma certa especificidade e mesmo uma assumida marginalidade desta região no contexto andaluz, sancionada mais tarde pelas partilhas da guerra, em que a memória da antiga Lusitânia era expressamente considerada pelos reis de Coimbra como conquista exclusiva de Portugal. Além disso é curioso notar que esta mesma região, durante o período islâmico, foi sacudida por sucessivos movimentos políticos de tendência autonomista onde se destacou, durante os séculos IX e X, a dinastia dos conversos (muladis) ibn Marwan que, da Idanha a Faro organizou uma longa resistência ao centralismo califal de Córdova que tentava impor uma nova ordem económica e política. Esta família, provavelmente originária do povoado fortificado de Marvão, podemos considerá-la como modelo representativo de uma certa oligarquia autóctone protofeudal que dirigiu a maior parte dos territórios do Garbe até à uniformização imposta pêlos impérios Almorávida e Almôada.

Convertidos ao islamismo e perfeitamente arabizados, estes senhores locais de Badajoz, Lisboa ou Faro, parece terem alimentado uma política regional de solidariedades que muitas vezes passou por alianças com os reinos do norte. Em

finais do século IX, um dos mais célebres membros do clã marwanida - Abdar-Rahman b. Marwan al-Jilliqi (o Galego) – certamente pouco seguro na sua ortodoxia religiosa e mesmo acusado de tentar unificar os cultos cristão e muçulmano, – depois de várias escaramuças com os califas cordoveses e de alianças militares com os leoneses, manda construir na sua cidade muralhada da Idanha um estranho santuário onde parece conjugar-se a liturgia das duas religiões. Este belo monumento – conhecido por basílica da Idanha-a-Velha – ainda hoje imponente na sua volumetria arquitectónica — é uma espécie de símbolo do que teria sido nessa altura o Gharb-al-Andalus, na sua heterogeneidade política e religiosa, onde não era fácil deslindar as fronteiras entre moçárabes, muladis e muçulmanos.

Provas documentais e arqueológicas testemunham em todas as cidades do al Andalus e nomeadamente em Lisboa, a presença de importantes comunidades de cristãos moçárabes e judeus entre as populações muçulmanas. Antes de um comprovado proselitismo religioso imposto sobretudo em época almôada, o al-Andalus foi uma realidade social onde prevalecia a convivência, nem sempre pacífica, é certo, mas coexistência entre as três grandes religiões do Livro. Havia certamente atritos e, por vezes, impiedosa discriminação que se abatia sobre os vencidos e que tinha por alvo os grupos minoritários, pelo simples facto de serem minoritários e que acompanhou até aos nossos dias a história do Mediterrâneo. Porém nada disto se compara com a intolerância e sistemáticas perseguições religiosas que em breve se vão estender a toda a Europa feudal, renascentista e contemporânea.

Nos países do Sul, onde o comércio e a troca foram e são os modos de viver e conviver, o outro, o diferente, antes de ser um inimigo a abater, é um possível parceiro e cliente. Entre os povos mediterrânicos nunca houve guerras religiosas, mesmo quando nos querem fazer crer que são essas as motivações dos

massacres nos Balcãs ou do genocídio dos Palestinianos. Esses fenómenos, todos o sabemos, têm causas políticas completamente alheias ao mundo mediterrânico e à sua milenar simbiose cultural.

Ainda que alguma sanha destruidora se tenha seguido à "Reconquista", e que, mais tarde, os rigores da Contra-Reforma tenham apagado muitos outros vestígios da islamização, o processo de extinção do Portugal arabizado ou mediterrânico tem sempre encontrado fortes resistências e felizmente nunca chegou a ser concluído. Neste território, precocemente integrado no reino de Portugal, não são muito abundantes os grandes monumentos áulicos ou militares de época islâmica. Este aparente alheamento dos grandes centros urbanos andaluzes, favorecendo notoriamente a incorporação de elementos autóctones, reforçou uma certa singularidade regional. Como é natural, estes particularismos não se manifestam nos programas religiosos ou palatinos, onde encontramos, embora numa escala provincial, a mesma linguagem e ornamêntica. É nas formas dialectais e toponímicas, nos volumes, nas técnicas construtivas, nos complementos funcionais ou decorativos da arquitectura popular que mais profundamente ficou a memória da simbiose andaluza. Sem ela ficaria inexplicável a explosão inovadora da decoração mudejar, da arte manuelina e do criativo gótico alentejano, onde se combinam harmoniosamente arrojadas técnicas de abobadagem e delicados molduramentos com o sábio revestimento polícromo do azulejo.

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* Cláudio Torres

Director do Campo Arqueológico de Mértola. Director do Parque Natural do Vale do Guadiana. Presidente da Comissão Nacional Portuguesa dos Monumentos e Sítios (ICOMOS). Prémio Pessoa 1991. Fundador e Director da revista “Arqueologia Medieval”.

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