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Janus 2001



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Missionação portuguesa

Justino Mendes de Almeida *

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Missionação, inculturação da doutrina evangélica e expansão ultramarina são designações que correm a par nos estudiosos dos Descobrimentos e da Evangelização. Há, contudo, que fazer alguma separação de princípio. Já se afirmou, e com razão, que a raiz da acção missionária portuguesa remonta a tempos mais recuados que a gesta do achamento de outras terras, aos anos de Santo António de Lisboa, "o primeiro grande missionário que de Portugal partiu para outras terras a anunciar o Evangelho e a Fé" (1). Por isso, a expressão hoje corrente, em dias de comemoração dos feitos marítimos, de "cinco séculos de Evangelização" é limitativa da acção missionária portuguesa, porque esquece a expedição a Ceuta, a partir da qual o País assumiria, por certo tempo, o primeiro lugar na história do mundo moderno, onde criámos em 1418 uma diocese, e onde, em 1227, já tinham sido martirizados missionários, e outras incursões (lembrem-se "os cinco mártires de Marrocos", em 1220), para situar os começos da Evangelização, é certo que com maior vulto, mas idêntica intenção, em tempos de D. João II e D. Manuel.

É, porém, com os rasgos expansionistas dos Príncipes de Avis, em que tem acção principal o Infante D. Henrique, fundador da Ordem de Cristo, quando, no capítulo solene de Tomar, dá execução às determinações do papa Calisto III que concede "à milícia de Cristo a jurisdição espiritual sobre todos os territórios conquistados ou a conquistar" (2), no seu duplo objectivo de expansão do Cristianismo e de luta contra o Islão que se afirma a vontade forte de difusão da Fé, companheira do Império a haver, razão primordial nos arranques dos descobridores. "Na verdade, a expansão ultramarina portuguesa não se compreende em pleno e fica gravemente truncada se não se tiver em conta a vivência religiosa da época e não se colocar o proselitismo cristão entre os seus factores primordiais" (3).

A defensão da Fé cristã nos longínquos territórios foi uma das mais constantes e mais sinceras preocupações dos monarcas portugueses. As caravelas dos navegadores transportavam, conjuntamente com os nautas e os homens de armas, os difusores da mensagem cristã e arautos do Evangelho, e também conforto espiritual da marinhagem, junto dos povos que iam conhecendo. Franciscanos com Álvaro Cabral, Dominicanos com Duarte Pacheco Pereira, uma vez chegados, a maioria não regressava, porque a sua missão ultrapassava os objectivos terrenos dos colonizadores; fixavam-se nas partes do mundo que lhes eram reveladas e irmanavam-se com os povos que encontravam, fomentando a permuta de valores morais, culturais e económicos, tornando-se construtores autênticos do mais extenso e profundo movimento espiritual de que há conhecimento, a Missionação, em que os Portugueses têm parte grande, por reconhecimento unânime dos estudiosos probos. A acção dos Descobrimentos só poderá ser entendida se nela se compreender o que tem de "serviço de Deus".

Se se pretender apresentar, ainda que em síntese, a linha condutora da missionação portuguesa, e os resultados obtidos, desde os inícios da transplantação da Mensagem de Cristo, da Idade Média até hoje, em que adquiriu novas perspectivas, o discurso seria interminável. Teremos assim de nos circunscrever a fases e feitos essenciais dessa acção criatianizadora, contudo suficientes para dar uma ideia do que foi esse esforço mais que humano de fraternidade cristã. A par de fortalezas e obras defensivas, trabalho de construtores materiais, indispensável à preservação da paz, iam surgindo, por iniciativa de agentes de missionação, capelas, igrejas, albergarias e hospitais, tão necessários à acção espiritual e social que se pretendia implantar e incrementar. Obras tão vastas e de tanto vulto, que o cronista João de Barros as considerava como "trabalhos de Hércules".

As acções missionárias acompanham em pleno a política dos monarcas portugueses. D. João II, pelo Tratado das Alcáçovas, que lhe garantiu a África, as negociações de Tordesilhas e a inclusão das terras africanas na missão confiada a Portugal, leva o seu sucessor, após a viagem do Gama, a assegurar o envio de missionários. A bula Cum sicut maiestas concede ao Venturoso "a faculdade de submeter o território desde o Cabo de Boa Esperança até à índia a um comissário apostólico que, como o grão--prior da milícia de Cristo, estaria dotado de missão quase episcopal. Segue-se, com Júlio II a constituição Ortodoxas fidei de 12 de Julho de 1505 e a indulgência plenária a todos os missionários de D. Manuel, na bula Romanus Pontifex, de 12 de Julho de 1506" (4).

A missionação portuguesa desenvolve-se ao longo dos séculos, em torno da obra dos prelados diocesanos e das ordens religiosas que se vão fixando nos territórios de missão: franciscanos, dominicanos, capuchinhos, jesuítas, ursulinas, merecendo uma menção especial os religiosos da regra de Santo Agostinho, cuja acção foi importante na interpelação dos governantes para que agissem, e fizessem agir os súbditos, como cristãos.

Não vamos enumerar os acontecimentos da história da missionação, desde a actuação dos Franciscanos na Guiné, nos finais do séc. XV, dos Dominicanos em Benim e na Senegâmbia, às missões do Congo e ao suplício do Padre Gonçalo da Silveira. À implantação de Franciscanos em Goa e à fundação de colégios para formação do clero indígena. Em relação à Índia, ouçamos um testemunho autorizado: "A conversão ao catolicismo foi um importante veículo para as trocas culturais, e, nestas, o papel do missionário foi fundamental, utilizando os meios de evangelização e do ensino. Logo nas primeiras viagens à índia se associaram os Franciscanos e os Dominicanos, depois os Jesuítas e, mais tarde, os Agostinhos. Entre 1555 e princípios de Seiscentos, a cristianização de Goa intensificou-se bastante, e os habitantes das Velhas Conquistas— Ilhas, Bardez e Salsete — foram convertidos, quase na sua totalidade, ao catolicismo.” (5)

Com S. Francisco Xavier, o "Apóstolo das índias", abre-se uma era nova na missionação do Oriente. Para além dos 30.000 baptismos que lhe são atribuídos, de uma acção constante em Cochim, Malaca, Molucas e Cantão, deve-se-lhe uma atitude diferente em relação a povos e culturas, de forma que não se hesita em reconhecer que, com S. Francisco Xavier, começa a missionação moderna (6). Japão, China e Indochina recebem também missionários portugueses, e, não obstante o sucesso da presença de S. Francisco Xavier no Japão, a missionação aqui acaba por sofrer inclemências terríveis do poder político, de que é símbolo o martírio de Nagasáqui. Mas, significativa é esta exclamação de S. Francisco Xavier, em carta escrita do Ceilão: "Bendito seja Deus, porque tornou tão florescente o nome de Cristo entre esta multidão de infiéis!" (7).

À missionação no Brasil está imperecivelmente ligado o nome do Padre Manuel da Nóbrega, fundador da Província do Brasil e da cidade de São Paulo, o primeiro jesuíta do Brasil e da América, como o designou o Padre Serafim Leite. Nóbrega teve tal actuação, como exímio religioso e verdadeiro homem de Deus, na concertação com governantes, em defesa de autóctones, que o historiador Robert Southey não hesitou em chamar-lhe "o maior político do Brasil" (8). Contudo, a sua figura grada brilha mais como parte dessa tríade de construtores de missão no Brasil: Nóbrega / Anchieta / Vieira.

À presença missionária portuguesa no Japão e na China consagrou Léon Bourdon páginas suculentas, de antes e após a chegada de S. Francisco Xavier, sobre a responsabilidade dos Portugueses no Oriente, perante inumeráveis turbas de infiéis. Cite-se que, numa primeira impressão, sem dúvida provocada por erro de interpretação dos pilotos árabes, os hindus passaram aos olhos dos Portugueses por cristãos outrora evangelizados por S. Tomé, corrompidos, pelo correr dos séculos, nas suas convicções e crenças.

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A acção religiosa dos Portugueses começa por exercer-se entre populações muito diversas. Testemunhos importantes da acção missionária portuguesa são as orações obedienciais pronunciadas pelos diplomatas portugueses perante o Sumo Pontífice. Ditas em latim, eram os discursos que simbolizavam a obediência do monarca português ao Senhor Espiritual do mundo, dando a conhecer as terras de novo descobertas. Foi D. João II o primeiro soberano a tomar a iniciativa de enviar uma embaixada ao Papa com esta finalidade, para dar a conhecer os resultados das viagens dos navegadores portugueses, e submeter-se à obediência do Sumo Pontífice, já que os seus feitos obedeciam, antes de mais, a uma intenção puramente cristã de propagação da lei de Cristo. A diplomacia portuguesa ofertava ao Pontífice Máximo, pastor universal, o domínio do mundo descoberto e dominado pelo rei de Portugal, mero agente material ao serviço de Deus mais do que da Pátria.

A melhor definição do objectivo das orações de obediência vamos encontrá-la no próprio texto do discurso do embaixador, como seja neste passo da oração obediencial a Júlio II, pronunciada em Roma, em 1505, por Diogo Pacheco, "com tanta pureza e elegância da Latinidade, que deixou suspenso tão grave Congresso". Traduzimos:

"Aceitai, Beatíssimo Padre, a obediência do Vosso rei D. Manuel; aceitai, como Vosso, Portugal, e não apenas Portugal, mas também a maior parte de África; recebei a Etiópia e toda a índia na sua imensa vastidão; aceitai o próprio Oceano, com seus cabos, promontórios, praias, todos os portos, ilhas, fortalezas, cidades inumeráveis, todos os reinos e nações sem conto, antes de nós não conhecidos. Aceitai a obediência do Oriente, que os Vossos antecessores não conheceram, e como que vos estava reservada. E, a Deus graças, aceitai o próprio orbe terrestre.

Orbe terrestre disse eu, mas melhor diria todas as terras e mares, todos os orbes etodas as estrelas."

Que mais explícita definição poderíamos encontrar para a oração de obediência, de que o rei de Portugal esperava receber a justa contrapartida espiritual? (9)

A missionação pelo livro é nesse campo de acção verdadeiramente extraordinária. Lembro apenas dois exemplos, dos mais antigos, de entre dezenas que poderia citar. São de 1595 a Arte de Gramática da Língua mais Usada no Brasil do Padre Anchieta, e o celebrado Dictionnarium Latino-Lusitanicum ac Japonicum, impresso em Amacusa. Para se avaliar quanto representa esta volumosa obra linguística, basta lembrar que se trata de uma língua de raízes completamente desconhecidas, e que para a elaborar era necessário conhecer profundamente duas línguas nipónicas: o yoni, a língua falada e popular, e o koye, a língua dos escritos sagrados. (10). Após o concílio Vaticano II, de que resultou uma relação renovada da Igreja com o mundo, outros horizontes se apontam à missionologia, já definidos em quatro grandes vertentes: a missão ao serviço do Homem, nos diferentes níveis da sua realização; a missão como anúncio da mensagem evangélica àqueles que nunca a ouviram, e a sua inculturação em cada povo; a missão como diálogo e abertura às religiões não cristãs; a missão como comunhão entre as igrejas e partilha dos seus valores. (11)

 De entre os desafios que à acção missionária se apresentarão por certo no próximo milénio, ou seja, à "nova evangelização", de acordo com a palavra de João Paulo II, sobressaem a evangelização da cultura, a solidariedade com os mais fracos e a salvaguarda, a todo o preço, dos bens inestimáveis da Justiça e da Paz.

A acção da missionação não tem metas geográficas nem limites cronológicos. Daqui a justeza e actualidade das palavras de D. Albino Cleto: "Está longe de terminar este diálogo da inculturação da fé. A moderna cultura europeia volta a exigi-lo também no nosso Continente. Experimenta-se hoje na Europa, como no Japão do século XVI, a verdade da afirmação: a fé cristã só está verdadeiramente assimilada quando está inculturada.” (12)

Missionários e mártires! "São homens... que enobrecem um povo e ajudam a escrever a história de uma Nação." (13) Hoje, como ontem, seja uma constante o dito memorável de Camões:

Vós, Portugueses, poucos quanto fortes,
Que o traço poder vosso não pesais,
Vós que, à custa de vossas várias mortes,
A lei da vida eterna dilatais.

 

Informação Complementar

A tenda da capela e do túmulo da apóstolo 8. Tomé no imaginário da Expansão Portuguesa (Gaspar Correia, Lendas da Índia, III, 419-425)

Uma das 8 ilusões em Camões à decantada evangelização de S. Tomé na Ásia:

Aqui a cidade foi que Chamava Meliapor, fermosa, grande, e rica;
Os Ídolos antigos adorava,
Como inda agora faz a gente inica.
Longe do mar naquele tempo estava,
Quando a Fé, que no mundo se pubrica,
Tomé vinha pregando e já passara
Províncias mil do mundo se insinara.

Os Lusíadas, X, 109

Miliários da missionação portuguesa

Séc. XIII

Santo António de Lisboa

Séc. XV

Infante D. Henrique

Séc. XVI

Padre Manuel da Nóbrega e José de Anchieta

Séc. XVII

Padre António Vieira

Séc. XX

Acordo Missionário e Concílio Vaticano II

Deve-se aos missionários jesuítas, fundadores do Colégio de S. Paulo, em Macau, o único documento, até hoje conhecido, que regista a existência de um Camões em solo macaense:

TITOLO DOS BENS DE RAIZ DESTE COLLº DE MACAO

“… tem mais o Collº humas moradas de cazas no campo dos patanes/junto ao caix de Marty Lopez as quaes deixou por legado o Maluco, re-/dem de alugueres  pardos (à margem) tem mais o Colº duas boticas  rendem cada mez ambas pardaos./aos quais deixou braz Monteyro cõ/humas meyas cazas q rendiaõ  pardaos p.ª vinho de missas deste Colº/as cazas vendeo o P. Ant.º Cardim sendo reitor deste Collº por oito/centos Pardaos a Gaspar Borges da Fonseca, os quaes 800 pardaos cõ/mais 280 pardaos procedidos do chaõ do campo dos patanes aos pene-/dos do Camoes vendo (sic) o dito P. Reytor pella dita contia…”

__________
1 D. João Alves, "Uma iniciativa da Conferência Episcopal Portuguesa", in Encontro de Culturas (Lisboa, 1994), p. 19.
2 Maria do Rosário Azevedo Cruz, "A missionação portuguesa. Perspectivas da missionação e da história de Portugal", in Encontro de Culturas, p. 41.
3 D. Eurico Dias Nogueira, Missionários e Mártires. Braga, 1984, p.4.
4 Maria do Rosário Azevedo Cruz, op. laud., p.47.
5 Maria de Jesus dos Mártires Lopes e Artur Teodoro de Matos, "Religiosidade e aculturação do povo goês", in Histórias de Goa, p. 87.
6 Maria do Rosário Azevedo Cruz, op. laud., p. 50.
7 Léon Bourbon, La Compagnie de Jesus et le Japon, 1547-1570. Paris, 1993, p. 66.
8 Serafim Leite, Breve Itinerário para Uma Biografia do P. Manuel da Nóbrega (Lisboa - Rio de Janeiro, 1955), p. 231.
9 Justino Mendes de Almeida, Estudos Camonianos (Lisboa, 1993), p. 331-333.
10 Idem, "Difusão da Língua Portuguesa pela Missionação", in Encontro de Culturas, p. 43.
11 Adélio Torres Neiva, "O renascimento missionário no século XIX", in Encontro de Culturas, p. 456 – 457.
12 In Encontro de Culturas p. 25.
13 D. Eurico Dias Nogueira, op. laud., p. 8.

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* Justino Mendes de Almeida

Professor e Reitor da UAL.

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