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- JANUS 1999-2000 -

Janus 2001



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A situação do cinema e do audiovisual

Augusto M. Seabra *

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Algumas datas para recordar: 1955, constituição da RTP e ano zero do cinema português, em que não há produção de filmes; 1968, início da emissão de um segundo canal da RTP; 1971, lei do cinema, 7/71, aprovando a constituição do Instituto Português de Cinema, financiado pela taxa adicional de 15% aos bilhetes de cinema, de 2% da publicidade televisiva e taxa de distribuição de filmes; 1974, primeiro plano de produção do IPC e 25 de Abril; 1977, difusão da primeira telenovela brasileira, "Gabriela, Cravo e Canela"; 1981, início do processo de internacionalização do cinema português, com acentuada presença em festivais (o crítico Serge Daney escreve sobre "Le polé portugais" nos "Cahiers du Cinema"), e da feitura regular em Portugal de co-produções ou filmes estrangeiros (tendo como um dos benefícios o acréscimo de competências de uma série de quadros técnicos, sobretudo jovens), e euforia interna com o sucesso de alguns filmes, tendo "Kilas, O Mau da Fita" de José Fonseca e Costa ultrapassado a barreira dos 100.000 espectadores; 1991, criação do Secretariado Nacional do Audiovisual, SNA, na dependência do primeiro-ministro; 1992, início da difusão do primeiro operador privado de televisão, a SIC; 1994, fusão do IPC e do SNA, num único organismo, Instituto Português da Arte Cinematográfica e do Audiovisual, IPACA (decreto-lei n°25/94, de 1 de Fevereiro) e início da comercialização da TV Cabo; 1997, relatório da Comissão Inter-ministerial para o Audiovisual; 1998, substituição do IPACA pelo Instituto do Cinema, do Audiovisual e do Multimedia, ICAM (decreto-lei n°408/98, de 21 de Dezembro) e primeiros canais codificados, Sport TV e Telecine; 1999, nova lei das actividades cinematográfica, audiovisual e multimédia (decreto-lei n°15/99, de 15 de Janeiro), que viria a ser rejeitado pela Assembleia da República.

O cinema português existiu sempre em situação precária devido à escassa dimensão do mercado interno, em que é impossível a rentabilização de qualquer filme nacional, e à situação do próprio país, europeu mas periférico, limitando as possibilidades de exportação. Foi esta situação que conduziu à intervenção do Estado, não havendo praticamente filme que não seja subsidiado por fundos públicos. Esta situação, aparentemente de privilégio, causou no entanto efeitos perversos. O Estado chamou a si o apoio à produção cinematográfica mas alheou-se de intervir na distribuição e na exibição (ou só escassamente o faz quanto à última), nunca tendo sido regulamentadas as quotas de ecrã (obrigatoriedade de exibição de filmes portugueses), previstas na Lei 7/71. Por sua vez, até uma data recente, os distribuidores desinteressaram-se da produção e exibição de filmes portugueses.

 

Privilégio e seu reverso

A situação é efectivamente de privilégio na medida em que os cineastas podem fazer as suas obras em quase total liberdade, apenas limitados pelos custos de produção, situação que foi propícia à afirmação de importantes autores e deu visibilidade internacional ao cinema português, em festivais mas também, e cada vez mais crescentemente, em exibição comercial. O reverso da medalha, pelo menos até uma data recente, foi a remissão do cinema português a um "ghetto" virtual no próprio país, provocando uma tendência entrópica (a própria noção do "pólo português" revelou-se também uma utopia perigosa, como se este fosse um derradeiro refúgio do "cinema de autor", convicção que entre os cineastas mais contribuiu para a entropia face à desconfiança no discurso dos media, estes sugerindo que do estrangeiro se estaria a tentar impor uma determinada imagem de Portugal) e uma aguerrida autodefesa: os filmes eram pouco vistos mas vários cineastas tornaram-se personalidades com presença activa nos media. O cinema português era mais matéria de discurso público do que realidade efectivamente visível.

A própria questão da existência ou não de um "cinema português" tem sido cronicamente debatida, alguns afirmando que ele não existe como entidade distintiva, apenas havendo um somatório de filmes, esta sendo uma posição que curiosamente tem sido argumentada quer por autores, defendendo a singularidade da obra de cada um deles, quer por distribuidores, que assim se alheiam de uma intervenção articulada no processo de produção e difusão de filmes. Acresce que tem sido uma constante histórica a oscilação entre fases de euforia e de neurose do cinema português, bem como um aguerrido e por vezes mesmo agressivo debate entre o que ele "deveria" ser, com grandes divisões entre os realizadores, que se corporizaram genericamente entre os defensores do "cinema de autor", agrupados na Associação Portuguesa de Realizadores, fundada em 1982, e os defensores do desenvolvimento de uma indústria audiovisual, agrupados na Associação de Realizadores de Cinema e Televisão, fundada em 1997.

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Estas contradições foram ainda mais acentuadas por três factores, genéricos aos países europeus, mas com particular incidência em Portugal: a crescente dependência em relação à produção americana (cerca de 95% da quota das bilheteiras portuguesas - a mais elevada da União Europeia - é assegurada por filmes americanos e as três principais distribuidoras nacionais são subsidiárias das americanas ou empresas locais que distribuem produtos das "majors" de Hollywood), o decréscimo do parque exibidor (até à recente explosão dos multiplex nos grandes centros urbanos do litoral), e o aumento da oferta televisiva, com a padronização do modelo narrativo das telenovelas (cuja introdução foi coincidente com o início do processo de quebra da frequência cinematográfica, após os picos de 1976/77), bem como do consumo videográfico.

A abolição da taxa adicional ao preço dos bilhetes veio ainda mais colocar o cinema português na dependência de verbas directamente canalizadas pelo Ministério da Cultura, enquanto os contratos de concessão do serviço público e a actividade dos novos operadores privados suscitaram um reequacionamento da articulação do cinema e do audiovisual.

De acordo com o Decreto-Lei nº 350/93 (que se mantém em vigor após a rejeição pela Assembleia da República do Decreto-Lei nº15/99), "constituem sistemas de apoio financeiro à produção cinematográfica e audiovisual: a) o sistema de apoio financeiro automático, que atende aos rendimentos obtidos com a exploração da obra anterior do mesmo produtor, nomeadamente à venda de bilhetes, durante o período de exibição em sala; b) o sistema de apoio financeiro directo, que completa os contributos financeiramente obtidos pelo produtor para a montagem financeira do projecto; c) o sistema de apoio selectivo, que atende ao conteúdo da produção, às suas propostas estéticas, técnicas e artísticas", havendo ainda um conjunto de portarias que regulamentam especificamente os apoios às primeiras obras, curtas-metragens, documentários e obras de animação, bem como às co-produções cinematográficas. Estes modos de apoio reflectem também os novos contextos produtivos do cinema português para além do instituto dependente do Ministério da Cultura, IPACA ou ICAM, a saber, operadores de televisão, públicos e privados, e produtores estrangeiros.

Ao contrário do que sucede genericamente na Europa, os canais de televisão, públicos ou privados, não têm em Portugal cadernos de encargos que os vinculem a participar na produção cinematográfica. Dois contratos de concessão do serviço público de televisão foram assinados entre o Governo e a RTP em 17 de Março de 1993 e 31 de Dezembro de 1996. A RTP ficava obrigada a cumprir as atribuições do serviço público, previstas na Lei da Televisão de 1990, tendo direito a indemnizações compensatórias pelos custos de difusão dos dois canais para os Açores e a Madeira, bem como da exploração dos respectivos centros regionais, os custos da RTP Internacional e da cooperação com os PALOP (tendo vindo a surgir a RTP África), a manutenção e preservação dos arquivos audiovisuais e a despesa com os tempos de antena dos partidos políticos e associações profissionais e sectoriais.

Este quadro não identifica no entanto os conteúdos de programação, pelo que permanece em aberto uma lacuna grave, a da definição do que é o serviço público de televisão, incluindo as suas responsabilidades com a produção audiovisual e cinematográfica portuguesa. Protocolos concernentes ao apoio ao cinema e a projectos de programas de televisão foram celebrados entre o Ministério da Cultura e a RTP, em 1996, e com a SIC, em 1997, e de novo em 1998, este último tendo-se tornado motivo de controvérsia pública, ao prever o financiamento em conjunto, nos três anos seguintes (1999/2002) de 10 telefilmes por ano, assegurando a SIC "o controlo dos respectivos temas e guiões, bem como do respectivo casting e montagem final", tendo o Ministério e a SIC comprometido-se a constituir uma sociedade comercial sob a forma de sociedade anónima, detida maioritariamente pela SIC, que veio a ser a SIC-Filmes.

Entretanto, o processo de internacionalização do cinema português traduziu-se num número crescente de co-produções, a maioria feitas ao abrigo da Convenção Europeia sobre Co-Produções Cinematográficas e protocolos entre Portugal e outro países, com o consequente afluxo de capitais, bem como de fundos internacionais, como o Euroimages do Conselho da Europa e o Ibermedia.

A distribuição de filmes portugueses no estrangeiro e a venda a canais de televisão, cada vez mais intensas, coloca aliás em questão a definição do que são "os rendimentos obtidos com a exploração da obra anterior do mesmo produtor", para efeitos de novo financiamento, questão traduzida numa divergência de critério básico: o número de espectadores obtidos em Portugal ou as receitas globais. Essa divergência corresponde, de alguma forma, aos dois grandes pólos produtivos constituídos por Paulo Branco e por Tino Navarro. Com sucessivas empresas desde 1979, Branco (estabelecido também como produtor em França e mais recentemente na Grã-Bretanha), já produziu 38 filmes portugueses, a que se podem acrescentar três outros, internacionais, mas com tema especificamente português. Quanto a Tino Navarro, com a MGN, constituída em 1987, apostou no modelo do "blockuster" nacional (modelo que aponta para a participação financeira e promocional da SIC e a distribuição da Lusomundo), com filmes campeões de bilheteira, como "Tentação", "Adão e Eva" e "Zona J", este último introduzindo aliás um conceito novo face ao "filme de autor" quase exclusivo no cinema português: o filme de produtor, em que este escolhe um tema, contrata um argumentista e um realizador.

 

Branco: um sistema integrado

Através da ligação entre a produtora Madragoa Filmes, a distribuidora Atalanta e a exibidora Medeia, Branco foi o primeiro a constituir um sistema integrado, que além dos proveitos na visibilidade interna do cinema português, tem promovido a difusão nacional de numerosos filmes independentes internacionais. A Atalanta e sobretudo a Medeia encontram-se em afirmação crescente num sector dominado pelas "majors" americanas ou empresas portuguesas delas subsidiárias.

Assim a Lusomundo, que segundo as estimativas deterá cerca de 70% do mercado nacional, representa a Paramount, a Universal e a Buena Vista/Walt Disney. Por sua vez a Castello Lopes representa a Fox. As outras duas "majors", a Warner e a Columbia, estão associadas como distribuidora única em Portugal, embora não possuam parque exibidor próprio. Contudo a Warner e a Lusomundo estão associadas numa empresa que explora multiplex, sobretudo em grandes superfícies, a maioria delas da Sonae, num conjunto de 68 ecrãs, apontando para cerca de 140 entre Portugal e Espanha.

Como relacionar essas distribuidoras e exibidoras com a produção tem sido o problema crónico, como referido. Nunca tendo sido regulamentado o sistema de quotas previsto na Lei 7/71, a questão foi de novo colocada no anteprojecto de lei do cinema discutido em 1998, que previa uma quota de 25%, geralmente considerada irrealista.

No entanto, no que veio a ser o abortado Decreto-Lei n.º 15/99, um quadro legal imperativo para a distribuição e exibição de filmes portugueses desapareceu, tendo antes, em 1998, quatro distribuidoras, a Lusomundo, Castello Lopes, Atalanta e Ecofilmes/Prisvideo, celebrado protocolos com o Ministério da Cultura pelos quais se comprometiam a investir, sob a forma de mínimo de garantia, em filmes europeus de versão original de língua portuguesa, e a distribuir, sem quaisquer ónus ou encargos, um número de obras cinematográficas, também europeias em versão original de língua portuguesa, em valores variáveis. Assim a Atalanta e a Lusomundo comprometiam-se a investir até 50.000 contos, a Castello Lopes até 20.000 e a Ecofilmes/Prisvideo até 15.000, sendo a contrapartida do Estado um investimento de montante semelhante àquele que fosse feito pelas distribuidoras, na forma de avanço sobre receitas.

Estes protocolos, sublinhe-se, eram respeitantes apenas ao ano de 1998, pelo que um quadro geral de relação entre produção e distribuição continua por definir. Este aspecto tem de ser considerado numa apreciação global da política seguida pelo executivo empossado em 1995, personificada no Ministro da Cultura Manuel Maria Carrilho.

Verifica-se que o apoio do Estado à produção cinematográfica foi reforçado desde 1996, esse sendo um dos dados propiciadores de uma nova vitalidade do cinema português, com um fluxo mais regular de estreias e um maior número de espectadores. No entanto, há um momento de viragem, consubstanciado no Relatório da Comissão Inter-ministerial para o Audiovisual de 1997. À defesa do "cinema de autor" sucedeu-se a tónica na "indústria de conteúdos", integrando além do audiovisual o multimédia, de contornos mal definidos, levando, além de uma substituição de pessoas, à transformação do IPACA em ICAM. Contudo, a ideologia dos "conteúdos" levou à controvérsia em torno de uma empresa, a Conteúdos, S.A, empresa privada com capitais inteiramente públicos, 730.000 contos, provocando sucessivas afirmações contraditórias do ministro Carrilho e finalmente, já em 1999, a demissão do presidente do IPACA e da Conteúdos, José Costa Ramos, que, como presidente da Comissão Interministerial havia sido o principal ideólogo da "indústria de conteúdos".

As peripécias desta e a falta de um quadro normativo das relações entre produção, por um lado, e distribuição e exibição, por outro, são dois aspectos particularmente controversos da gestão Carrilho. A estas, de âmbito público, acrescem as de foro interno do governo. Assim, a vontade de uma política integrada fez Carrilho entrar em choque com outros membros do governo, como, de modo latente, o Secretário de Estado da Comunicação Social, Arons de Carvalho, em torno do sector público do audiovisual (em que a área tutelada por aquela secretaria de Estado, em concreto a RTP, não avançou efectivamente uma política de fomento da produção nacional do audiovisual e de apoio ao cinema), e de modo manifesto com o ministro da Economia, Pina Moura, que para o Conselho Superior do Cinema do Audiuovisual e do Multimedia, criado pelo Decreto-Lei n° 393/98, de 4 de Dezembro (presidido pelo primeiro-ministro, que delega essa competência no ministro da Cultura), nomeou como seu representante o cineasta José Fonseca e Costa, demitido por Carrilho da presidência da empresa que gera os equipamentos da Tóbis, nomeação essa que na prática inviabilizou o regular funcionamento do Conselho. São factores que, apesar do aumento das verbas e do interesse que Carrilho tem manifestado pelo cinema, demonstram a incapacidade do executivo do Partido Socialista em resolver os problemas estruturais do cinema e do audiovisual portugueses, na formulação de uma política integrada e sua execução.

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* Augusto M. Seabra

Colaborador do PÚBLICO. Crítico de comunicação e cultura.

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