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- JANUS 1999-2000 -

Janus 2001



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Poder da informação, crise da informação

João Maria Mendes *

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Em Portugal, como na generalidade dos países ocidentais, a definição contemporânea do "campo dos media" e da "comunicação no espaço público" é caracterizada pela coexistência de factores contraditórios, que é necessário identificar para percebermos como evoluíram as práticas nesta área, nos últimos anos do século XX, e quais as tendências em desenvolvimento. Portugal nasceu tarde para este universo, por só se ter libertado da censura prévia em 1974, por ter estatizado a globalidade da então chamada "comunicação social" logo a seguir, apenas procedendo à reprivatização e desregulação do sector nos anos 80 e 90. Mas, ao longo deste processo, adquiriu rapidamente características estruturalmente comparáveis às da Comunidade Europeia, depois União Europeia.

São os seguintes os factores que robustecem a importância dos media, e especialmente dos media de raiz informativa, nas sociedades contemporâneas:

  • A televisão tornou-se hegemónica como médium que associa informação, formação da opinião pública e entretenimento; ao mesmo tempo, assiste-se à explosão do seu modelo original: surgimento do "video on demand", da "Pay TV" e de canais temáticos, multiplicação dos canais e da rede de difusão devido à expansão do cabo e da transmissão por satélite, desenvolvimento de projectos e experiências de televisão interactiva, associação da televisão à Internet. Esta explosão, presente e futura, convida à redefinição da televisão generalista como um entre diversos nichos de audiência (embora vasto), e já não como matriz inevitável da actividade das emissoras. Mas, globalmente considerada, e tal como maioritariamente ainda a consumimos hoje, a televisão, com os seus 50 anos de experiência, passou a povoar a vida do cidadão comum de novos "deuses lares", novos companheiros de estrada da vida quotidiana (políticos, ideólogos, desportistas, agentes de actividades artísticas, técnicas e científicas, vedetas da informação e do entretenimento) e tende a organizar a agenda quotidiana do cidadão comum, como dantes fazia o sino da igreja nas comunidades rurais.
  • A mediatização das práticas políticas reconfigurou o exercício e a natureza dos poderes e o seu relacionamento com os principais media informativos – televisão, rádio e imprensa. A agenda dos media tenta impor-se à agenda do poder político, a agenda do poder político convive com ela e tenta contaminá-la, e esta relação é, ora de rivalidade clara, ora de cumplicidade. A disputa/cumplicidade entre a agenda política e a agenda dos media tornou-se permanente, influenciando de modo determinante a "construção social da realidade" e a definição dos conteúdos que ocupam/preocupam a "opinião pública", como passaram a mostrar os novos estudos sobre "agencia setting", "agenda building" e "gatekeeping" editorial.
  • A mediatização das práticas políticas foi acompanhada por uma evolução das funções sociais dos comunicadores de informação: a fronteira entre prática jornalística e prática política foi (como mostram os estudos sobre a sua recepção) redesenhada e tornou-se menos clara, assumindo a relação entre ambas, com frequência, a aparência de uma relação interpares, em regime de "sociedade de discurso" relativamente fechada. No entanto, a transformação de jornalistas em políticos (uma transumância que caracterizou a época histórica do "jornalismo de combate") manteve-se como fenómeno marginal: são poucos, e com frequência mal sucedidos, os casos de jornalistas profissionais que, em Portugal como noutros países, inflectiram as suas carreiras para se tornarem políticos profissionais, e vice-versa.
  • A evolução das funções sociais dos comunicadores de informação é, também, actualmente marcada pelo que numerosos observadores designam por "fim da tirania do acontecimento", e isto desde os anos 70 do séc. XX: embora continuando a produzir notícias e a narrar factos reais, os comunicadores de informação passaram também a ver-se a si próprios, e a serem vistos, como tematizadores, cenarizadores e construtores de futuríveis. É esta segunda dimensão da sua actividade que os emancipa do acontecimento de que começaram por depender, e os aproxima dos agentes do poder político. O "fim da tirania do acontecimento" marca mais tardiamente a experiência dos comunicadores portugueses: a agenda das televisões francesas, por exemplo, mudou no início da década de 70, a agenda das televisões portuguesas só mudou com o fim do monopólio estatal e em consequência da nova situação concorrencial.

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  • A tensão entre regulação exógena (direito da comunicação) e a regulação endógena (ética e deontologia das práticas comunicacionais) não provocou alterações substanciais nas relações entre os direitos dos cidadãos e os direitos dos media: estes últimos tendem a prevalecer, sendo o discurso -predominantemente intransitivo – dos media marcado por práticas corporatistas e autónomas que adquirem a forma de poderes fácticos, embora exercidos em nome da representação social (os jornalistas seriam os representantes não-eleitos da opinião pública, e os políticos os representantes eleitos dos cidadãos).
  • Dos itens anteriores decorreu a redefinição da "relevância social" dos comunicadores de informação: saudados como "Quarto Poder" desde E. Burke, face ao papel emergente da opinião pública e seus representantes nas instituições nascidas com a Revolução Francesa, têm hoje tendência a ser considerados como "Segundo Poder". Na definição de Burke, compunham com os poderes tradicionais do Estado – o Legislativo, o Executivo e o Judicial. Na nova definição, separam-se dos poderes do Estado, ocupando o papel de "grandes influenciadores" logo após o universo dos decisores financeiros internacionais, que agem no novo contexto da economia virtual. Em numerosos autores do final do século, esboça-se a ideia de que o "poder da Comunicação" ultrapassa, no universo da globalização, o "poder dos Estados".
  • A socialização vertiginosa da Internet e da utilização do ciberespaço vem, em parte, ampliar esta nova crença no poder da Comunicação, ajudando a imaginar novas formas de exercício do poder político, da "democracia directa electrónica" à reformulação dos mecanismos de tomada de decisões através da consulta, do referendo ou de novas modalidades de contacto entre representantes e representados. Mas esta crença, típica do optimismo tecnológico, pode ser entendida como subsidiária da "ideologia do progresso", tão frequentemente posta em causa no último quartel do séc. XX.
  • A complexidade das relações entre parceiros e grupos de interesse, nas sociedades desenvolvidas contemporâneas, levou a novas articulações entre os media e representantes destas entidades: grupos profissionais, étnicos ou religiosos, activistas de diversas espécies, instituições, associações e grupos de pertença emergentes da sociedade civil e desejosos de verem o seu discurso ou a sua prática espelhados nos media, desenvolvem acções de "lobbying" para conquistarem tempo de antena ou adquirirem competências comunicacionais que os aproximem dos media. Estas interacções robustecem, no seu conjunto, a posição privilegiada dos jornalistas – cada vez mais rodeados de comentadores e de representantes – no campo dos media, como demiurgos e mediadores fundamentais na socialização das ideias e das práticas. Estes factores sustentam, cada um por si mas, sobretudo, associados, o privilégio da comunicação de informação, especialmente a jornalística, nas sociedades desenvolvidas contemporâneas.

 

Factores de fragilização

Mas existem outros factores que contrariam esta tendência, proporcionando algum reequilíbrio entre actantes no campo dos media:

  • A socialização da Internet, no contexto da expansão das "auto-estradas da comunicação", abre a todos os comunicadores potenciais – e não apenas aos profissionais – a possibilidade de serem emissores e fontes de informação para um público-alvo surpreendentemente vasto. E fá-lo, sem dúvida temporariamente, de forma "selvagem", prescindindo dos regimes de regulação exógena e endógena que auto-legitimaram a prática da comunicação profissional. Não há carteiras profissionais, nem códigos deontológicos, nem livros de estilo, e quase não há constrangimentos legislativos, para o novo comunicador da Internet. A morosidade de configuração dos regimes legais e fiscais de actuação no ciberespaço testemunha esta nova liberdade, que deverá manter-se durante alguns anos mais. Este novo fenómeno dissemina e pulveriza as mediações socialmente necessárias, e multiplica os acessos directos entre novos emissores e novos receptores. Por exemplo, imagens de determinado acontecimento obtidas por um amador, e que até ontem só podiam aceder ao espaço público através de um jornal ou de uma emissora televisiva, podem hoje ser directamente colocadas no ciberespaço por esse amador. A mediação/legitimação do jornal ou da emissora televisiva torna-se desnecessária. Ou seja: qualquer agente social pode difundir directamente o seu discurso no espaço público, sem a mediação/legitimação dos media convencionais, embora seja cedo para avaliar a importância social que este novo fenómeno virá a adquirir.
  • Ciclicamente, a opinião pública muda de atitude face aos comunicadores profissionais e aos jornalistas em especial: ora os avalia positivamente como "heróis" da veridicção no espaço público, ora se cansa dos seus excessos, da arbitrariedade e impunidade dos seus actos de comunicação, e do seu poder. Para um grande número de consumidores da "informação-espectáculo" que passou a dominar os media convencionais, são excessivos o narcisismo das vedetas da televisão (de que são exemplo os programas a quem é dado o nome do seu animador/apresentador, as entrevistas de jornalistas por jornalistas, etc.), a manipulação da agenda e as "conspirações de silêncio", a tendência para privilegiar a descrição do mundo como série infinita de catástrofes inevitáveis, a violência recorrente. O papa João Paulo II fez-se eco, em diversas ocasiões do seu mandato, das críticas frequentes ao papel da televisão, ora pedindo às famílias que não a transformem em "baby sitter", ora aconselhando-as a desligarem-na com mais facilidade. Já em 1978, no final de uma década particularmente sensível aos excessos dos comunicadores profissionais, Soljenytsine assumira esta postura crítica, afirmando, sobre o jornalismo em geral, que ele "adquiriu um poder exorbitante, desproporcionado em relação às suas capacidades, e só satisfaz as necessidades imaginárias das classes médias". A evolução do direito (legalmente garantido) de resposta aos media, a responsabilização judicial do autor de textos jornalísticos em caso de incumprimento da legislação aplicável, a criação de postos de "ombudsman" e a extensão de responsabilidades e do campo de intervenção de consultorias paritárias, onde emissores e receptores se encontram representados, são pequenos passos concretos no sentido da limitação destes excessos.

Esta pressão da opinião pública sobre os media, associada à socialização da Internet e à disseminação da comunicação a que aludimos, gerou paradoxalmente uma relativa fragilização da posição privilegiada dos jornalistas, numa época em que o seu poder é maior do que nunca. E estas parecem ser, contraditoriamente, as duas tendências dominantes, em termos de futuro próximo, no "campo dos media'' de raiz informativa: por um lado, a sua importância, sobretudo a da televisão, na definição da agenda das sociedades, tende a aumentar, em disputa ou em cumplicidade com a agenda política. Por outro, as possibilidades tecnológicas geradas pela Internet e pelo ciberespaço, e a sua – provavelmente transitória – desregulação, tendem a reduzir, em princípio, o monopólio da palavra e da imagem pelos comunicadores profissionais, parcialmente substituídos por cidadãos comuns, que precisam menos deles para adquirirem visibilidade comunicacional e para se dirigirem directamente a outros cidadãos comuns, como parecem confirmar os primeiros estudos norte-americanos – ainda meramente indiciais – sobre a descida global da audiência das televisões em favor de uma subida da navegação na Internet. 

 

Informação Complementar

Política não, ensino sim

Se, à semelhança do que se passou e passa nos países da UE, a política profissional não foi, senão para um número muito limitado de jornalistas, lugar de destino de reconversões profissionais em Portugal, o mesmo não sucedeu com o ensino – especialmente o ensino da Comunicação. A docência nas áreas de Comunicação do Ensino Politécnico e do Ensino Superior Privado e Cooperativo foi, na década de 90, aberta a jornalistas, muitas vezes dotados de forte curriculum profissional, mas não de curriculum académico, desejosos de ocupar postos de ensino em ateliers, "workshops", disciplinas práticas, outras.

O fenómeno satisfez as "news rooms" e as redacções, que tradicionalmente criticam este ensino por nunca ser suficientemente "profissionalizante". E veio, também, oferecer uma nova credibilidade ao microcosmos jornalístico, que passou a aceder a postos de docência sem as qualificações anteriormente exigidas. Bacharelatos, licenciaturas e pós-graduações viram-se assim frequentemente visitados por saberes empíricos e não-críticos, directamente importados das práticas profissionais.

Mas o fenómeno, relativamente comum na tradição norte-americana, gerou igualmente mal-estar nas escolas, onde o curriculum profissional e o "saber-fazer" não são, salvo excepção, vistos, pelo corpo docente qualificado, como bastantes para garantir a subsistência dos valores próprios do ensino superior. A necessidade de pensar teórica e criticamente a Comunicação é a principal vítima deste processo, que se tem por transitório e não irreversível: de facto, terá sido a explosão desta área de ensino, em poucos anos da década de 90, que gerou um déficit de professores e a necessidade de recurso a profissionais não especificamente qualificados para a docência (em 1996-97, por exemplo, eram 2946 os alunos inscritos em cursos de Comunicação no ensino superior público, e 3612 no ensino superior privado).

Um movimento de reequilíbrio poderia, em princípio, suceder à perturbação actual: por um lado, as escolas poderão oferecer, aos seus docentes-profissionais, condições especiais para a obtenção dos graus académicos necessários. Por outro, os profissionais e as suas organizações representativas ainda precisam de entender que o ensino superior nas áreas da Comunicação, como em outras Ciências Sociais e Humanas, não tem sobretudo como objectivo a aprendizagem empírica oficinal e a iniciação corporatista.

Finalmente, os Estudos em Comunicação diversificaram-se de tal modo, que o próximo passo deverá ser o surgimento, não de novos Departamentos, mas de Faculdades de Comunicação, oferecendo diversas licenciaturas e não, como hoje acontece, uma só (1). Nesse cenário, a eterna oposição entre teoria e prática voltará a colocar-se, mas em princípio será possível aproveitá-la para definir a natureza e objectivos das diferentes licenciaturas – ora mais produtoras de saber, ora de saber-fazer.

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1 Tome-se como exemplo desta tendência o modelo do Communication College da Universidade de Bóston.

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* João Maria Mendes

Doutorando no DCC da UNL, Prof. Convidado no DCC da UAL e Prof. Adjunto na ESTC. Jornalista.

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