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Mundo Árabe: os herdeiros dos patriarcas

José Goulão *

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Abdallah II na Jordânia, Mohamed VI em Marrocos, Bachar Assad na Síria. Uma nova geração de dirigentes chega ao poder em países árabes com grande influência estratégica sem que se tenham registado, ainda, alterações significativas nas estruturas dos regimes que passaram a chefiar. O período de “estado de graça” associado à carga emocional que acompanha o desaparecimento de dirigentes com fortíssimo carisma, a preparação cuidadosa das transições e a manutenção das linhas políticas e diplomáticas básicas dos regimes, apesar de algumas importantes mudanças de quadros, são os pilares de uma estabilidade que parece interessar a múltiplos quadrantes —  internos e externos — pelo menos numa fase de transição. As ondas de choque dos atentados terroristas nos EUA em Setembro de 2001 poderão lançar novas interrogações sobre a solidez real destas transições.

No momento em que se consumaram, as sucessões nas chefias de Estado da Jordânia, de Marrocos e da Síria não constituíram surpresa. A tranquilidade institucional resultou, porém, de movimentações e acertos políticos, militares e palacianos prévios nos quais os dirigentes desaparecidos tiveram papéis fundamentais. A Jordânia, Marrocos e a Síria de hoje espelham ainda as imagens dos reis Hussein e Hassan II e do presidente Hafez Assad para lá dos seus desaparecimentos físicos. Não apenas porque os regimes dos três países se enraizaram durante décadas de poder pessoal dos carismáticos dirigentes, mas também porque eles próprios tentaram perpetuar-se através das soluções de sucessão preparadas atempadamente. Nos casos de monarquias — Jordânia e Marrocos — o processo parece natural, embora não tenha sido absolutamente pacífico. No sistema republicano sírio a opção dinástica é a mais peculiar mas foi também a preparada com maior antecedência. Hafez Assad contornou a morte prematura do herdeiro designado, Bassel, ainda a tempo de proporcionar a entrega do poder a outro filho, Bachar.

Na Jordânia, Abdallah viveu até Janeiro de 1999 na sombra do seu tio Hassan, durante muito tempo regente e herdeiro designado. Só pouco antes de morrer, Hussein alterou a decisão em favor do filho.

Em Marrocos, Mohamed representava a linha natural da sucessão, mas o peso político do ex-ministro do Interior, Driss Basri, aparentemente defensor de uma outra solução junto de Hassan II, levantou dúvidas quanto à transição da coroa.

Na Síria, há mais de cinco anos que poucas incertezas havia quanto à possibilidade de Bachar suceder ao pai, Hafez. Os que cultivam as boas graças do poder em Damasco não raras vezes recordaram e recordam a existência de prestigiadas “dinastias republicanas” como a dos Kennedy ou a dos Nehru-Gandhi.

 

A pesada herança de Abdallah

Abdallah II da Jordânia é considerado um jovem com personalidade e inteligência, mas necessita de elevar tais atributos ao expoente máximo para governar um reino que se consolidou à imagem e semelhança de seu pai, o rei Hussein. Um monarca que foi um génio de sobrevivência, a gerir durante 45 anos, desde os 17, uma intrincada teia de compromissos internos, regionais e internacionais através de sucessivas convulsões. Deixou um Estado em funcionamento, com precariedades próprias dos países pobres mas também capaz de gerir interdependências.

Abdallah II herdou uma monarquia absoluta com laivos de constitucionalismo, compromisso entre uma sociedade patriarcal e as pressões pluralistas contidas numa espécie de pacto de regime, a Carta Nacional de 1992. Através deste documento, sobrevive a monarquia e afirmam-se os partidos políticos dentro de condicionalismos que Hussein foi adaptando às próprias conveniências, designadamente através da lei eleitoral.

Só em Janeiro de 1999 Abdallah, o primogénito, se tornou de facto herdeiro do trono dos hachemitas, depois do afastamento do príncipe Hassan, irmão do rei, do processo de sucessão. Hassan, que agiu como regente durante períodos agudos da longa doença do monarca, foi acusado publicamente pelo próprio irmão de interferir num sector delicado como o da hierarquia das forças armadas e de não ser claro quanto à continuação do ramo dinástico. Ou seja, não haveria garantias de um retorno posterior à linha directa de sucessão de Hussein, bisneto do cherif Hussein de Meca, que lançou em 1916 a revolta árabe contra os otomanos, mitificada cinematograficamente através da figura de Lawrence da Arábia. O príncipe Hassan foi também sacrificado, de algum modo, à sua simpatia pelas medidas de liberalização da economia determinadas pelo FMI — aproveitadas designadamente por empresas israelitas —  e às aberturas políticas em direcção à oposição. Estas não foram bem vistas pelo general Samih Batikhi, poderoso chefe dos serviços de informações, que terá agido de forma determinante para a alteração do processo de sucessão.

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Abdallah II assume assim a coroa da Jordânia neste contexto complexo. Em seu desfavor destacam-se a inexperiência a nível do exercício do poder e o facto de o Estado jordano espelhar a influência pessoal do pai, principalmente através das ambiguidades que ele geria dentro do próprio regime. Abdallah terá que institucionalizar de uma forma clara o funcionamento do país, a não ser que tenha a mesma capacidade do pai para governar no fio da navalha, o que não parece provável nem aconselhável. A Jordânia está refém de uma refinada teia de circunstâncias: a paz formal com Israel, que tarda em proporcionar os seus dividendos e não é um seguro contra turbulências; o facto de uma maioria da população do país ser palestiniana; a incómoda vizinhança do Iraque, uma pesada realidade geográfica e económica; a deterioração do problema palestiniano; e as convergências estratégicas com os Estados Unidos criadas por Hussein.

A favor de Abdallah estão os interesses convergentes, internos e externos, na estabilidade da Jordânia. De Israel aos Estados Unidos, da Palestina ao Iraque e ao mundo árabe e islâmico em geral a estabilidade jordana é um bem. Abdallah II beneficia de uma importante margem de manobra que —  até prova em contrário —  tem sido garantida pela lealdade do príncipe Hassan. Além disso, a política militarista assumida por Ariel Sharon em relação aos palestinianos tem diluído ou transferido para segundo plano a polémica em relação às estratégias de paz tanto na componente palestiniana da sociedade jordana como nos sectores jordanos contrários ao acordo de 1994 com o Estado hebraico. A contestação do actual surto belicista de Israel une todas as tendências jordanas e o rei pode interpretar esse sentimento com à-vontade sem, no entanto, fechar as pontes sobre o Jordão, o Mar Morto ou o Arava.

Abdallah II tem procurado um estilo próprio de governar, combinado com a reafirmação das linhas estratégicas do pai, tanto internas como externas. A sua presença frequente junto das populações, sem ostentação e defendendo a moralização do funcionamento do Estado, é de eficácia duvidosa, tem um toque demagógico mas traduz uma aproximação simbólica entre o poder e as populações que é importante no contexto civilizacional em que se processa.

Entre a sociedade patriarcal beduína e a monarquia constitucional ocidental, eis o dilema de Abdallah II. A sociedade civil, onde é forte o poder da Frente de Acção Islâmica, pede-lhe uma conferência nacional para reflectir sobre o futuro do país. Mas amanhã não será ainda a véspera do dia de decisões que possam por em risco a estabilidade jordana, grande trunfo dos primeiros passos de Abdallah II à frente do reino dos hachemitas.

 

A nova vida de Mohamed

Círculos palacianos de Rabat dizem que o novo monarca de Marrocos, Mohamed VI, procura conciliar as tarefas do poder com uma animada e cosmopolita vida privada, ao que parece para se libertar da tensão a que também ele esteve submetido durante o reinado do pai, Hassan II.

As chancelarias ocidentais estão optimistas e consideram que Mohamed VI tem condições para prosseguir a abertura política iniciada pelo anterior monarca; cépticos são alguns círculos marroquinos que pressentem uma falta de autoridade e de peso político do monarca, de que se poderão aproveitar sectores religiosos extremistas e círculos não-políticos como as mafias da droga, da pedofilia e da emigração clandestina. O poder crescente dos militares pode ser um indício de que há poderosos sectores vigilantes em relação à inexperiência do jovem monarca.

Hassan II governou Marrocos com mão de ferro. Pôs fora de combate, ao longo dos anos, numerosos dirigentes oposicionistas; utilizou a “questão nacional” da pretendida anexação do Saara Ocidental para justificar junto de outros países, principalmente a França, a sua política de repressão; e procedeu finalmente a uma abertura controlada do regime mercê de uma classe política maioritariamente domesticada. Um sistema que lhe permitiu dar para o exterior, na fase derradeira do reinado, uma imagem democrática através da entrada da oposição socialista no governo.

Esta classe política instalada poderá funcionar, porém, como um travão às eventuais lufadas modernizadoras de Mohamed VI. O último congresso da União Socialista das Forças Populares, no governo com os nacionalistas do Istiqlal, fechou o espaço político às correntes socialistas reformistas e mais comprometidas com a necessidade de modernização do país.

Mohamed VI é, pois, o monarca de um país estagnado politicamente, mergulhado no desemprego, minado por mafias, sujeito a fortes pressões migratórias, confrontado com o até agora insolúvel problema do Saara Ocidental. As despesas com a monarquia continuam, porém, a não sentir a crise: construção de palácios sumptuosos, dispendiosas e constantes deslocações de séquitos reais, a pompa da Corte - são sinais visíveis de que o rei não mudou os hábitos do antecessor.

É certo que Mohamed VI teve poder para afastar o poderoso ministro do Interior, Driss Basri, identificado como um adepto reticente da política de abertura de seu pai e um seguidor permanente dos assuntos militares. Os mais cépticos afiançam, porém, que Ahmed Midaui, o novo ministro, é um discípulo de Basri que partilha funções com Fuad Ali Himma, secretário de Estado do Interior, um homem da velha guarda. A mudança poderá, portanto, ser aparente e compensada, para alguns efeitos, pelo reforço de poder dos militares.

Mohamed VI suscita esperanças de mudança em Marrocos mas, de momento, parece ser, tão-só, mais uma figura da estagnação do que um agente de transição.

 

A frieza de Bachar

A Constituição da Síria foi alterada para baixar a idade de acesso à chefia do Estado e permitir assim ao jovem Bachar Assad chegar à Presidência da República, como fora programado em vida pelo pai, Hafez Assad. Apesar disso, Bachar é mais velho do que dois terços dos seus compatriotas.

Diz-se que Bachar herdou do pai a frieza de carácter e que tem da geração mais jovem, amplamente dominante, a paixão modernizadora pela informática e a Internet. E aprendeu rapidamente que a política do regime fundado pelo pai se baseia na aliança entre a sua minoria alauita (cerca de 10 por cento da população) e a burguesia sunita, com apoio de sectores possidentes cristãos.

Bachar Assad não estava destinado a presidente, cargo para o qual o pai já escolhera o seu irmão, Bassel. Bachar especializava-se em oftalmologia em Londres quando Bassel morreu num desastre de viação no Líbano, em 1994.

Bachar Assad, ao que parece de início pouco motivado, começou então a percorrer o caminho da sucessão na dinastia republicana síria. Assumiu o dossier estratégico do Líbano, oportunidade para afastar o até então influente vice-presidente Abdel Ali Kaddam. Passou a interferir em delicados assuntos diplomáticos e estratégicos, designadamente as negociações com os israelitas e a expulsão de Abdullah Ocalan, presidente do Partido dos Trabalhadores do Curdistão. Esta decisão forçou a demissão do experiente chefe dos serviços de informação, Ali Duba, facto que Bachar aproveitou para nomear Hassan Khalil, considerado uma capa para a acção de Assef Chawtak, figura de grande confiança do herdeiro designado.

Bachar Assad influiu depois na substituição dos comandos militares e reforçou a influência nas forças armadas formando uma rede de jovens oficiais quando frequentou um curso acelerado na escola do Estado Maior.

Lançadas as bases de poder nos serviços de informação e na instituição militar, Bachar Assad patrocinou uma ofensiva contra a corrupção que culminou na substituição do primeiro ministro Mahmud Zubi (13 anos no poder, seguidos de suicídio) por Mustafa Miro.

Na sequência da morte de Hafez Assad, em Junho de 2000, Bachar Assad promove o congresso do Partido Baas, torna-se secretário geral e renova os órgãos dirigentes com figuras de confiança, reforçando a componente militar. Assegura a presença no Comité Central dos chefes de todos os serviços de informações, do comandante das tropas no Líbano e de membros da Guarda Nacional da sua confiança, além dos políticos entretanto promovidos.

Depois, foi eleito chefe de Estado com uma votação em massa no plebiscito nacional. Bachar Assad é jovem, gosta da Internet e poderia ser – se não o é – um excelente jogador de xadrez. Teceu as malhas do poder e incarna entre os seus compatriotas um desígnio nacional: reconquistar a soberania sobre os Montes Golã. O regime sírio não morreu com Hafez Assad, a esfinge. Há um novo e jovem leão em Damasco.

 

Informação complementar

A guerra espreita no Saara

Longe vão os tempos da orgulhosa “marcha verde” de Hassan II em 1975 para anexar a antiga colónia espanhola do Saara Ocidental ao reino de Marrocos. As ambições sobre o Saara e a resistência nacional saraui são problemas herdados por Mohamed VI.

Mercê da falta de poder das Nações Unidas perante os conflitos internacionais, regista-se hoje um perigoso retrocesso no caminho para a solução do problema saraui. Numa dúzia de anos a ONU revelou-se incapaz de organizar o referendo sobre o futuro do território, não conseguiu encontrar solução para o recenseamento e - mais grave ainda - parece em vias de recuar nos compromissos assumidos. O antigo secretário de Estado norte-americano, James Baker, enviado pessoal de Kofi Annan para a região, já sugeriu veladamente a desistência do referendo, embora não a tenha assumido oficialmente. A alternativa seria uma “solução transitória” que passaria por uma autonomia alargada do Saara Ocidental no quadro marroquino - opção desde sempre rejeitada pela Frente Polisario. Sem capacidade de decisão da ONU, com os sarauis apegados aos seus princípios de autodeterminação e com o exército marroquino vigilante e disposto a suprir a suposta inexperiência do novo monarca, o risco do retorno à guerra é real no Saara Ocidental.

 

Os dividendos que não chegam

A assinatura do tratado de paz da Jordânia com Israel, em 1994, não passou sem reticências internas mas, simultaneamente, proporcionou esperanças quanto aos dividendos económicos que a normalização de relações entre os dois anteriores inimigos poderia incentivar.

Os dividendos continuam a fazer-se esperar, a crise económica subsiste, as incertezas políticas e militares na região desencorajam novos investimentos e, ao mesmo tempo, as pressões do FMI e do Banco Mundial não desanuviam a situação.

A Jordânia está sujeita a expressivos protestos populares cíclicos habitualmente associados a aumentos de preços gerados pela política económica determinada pelas instâncias internacionais. As privatizações e a afluência de capital estrangeiro, designadamente israelita, não se reflectiram na melhoria das condições de vida da maioria da população. Mais de 30 por cento dos jordanos e palestinianos do país vivem abaixo dos limites de pobreza, uma percentagem idêntica à da taxa não oficial de desemprego.

O problema israelo-palestiniano, o embargo ao Iraque, a escassez de recursos naturais e o esvaziamento progressivo das esperanças no turismo afligem a Jordânia e são desafios muito duros para o novo monarca dos hachemitas.

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* José Goulão

Jornalista. Analista de Assuntos Internacionais.

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