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Língua portuguesa: o último capítulo da Reconquista

Geoffrey Hull *

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Na história de Timor Leste há uma dualidade importante a observar — a constituída pela língua e pela religião. O papel de Portugal na ilha deu lugar, não só à expansão da língua portuguesa, mas também à da fé católica, e as duas fizeram juntas o seu caminho. Ao português e ao catolicismo fizeram frente, na região, a dupla hostil do malaio e do Islão. Antes da chegada dos portugueses, Timor era animista, e a influência islâmica irrelevante: Lisboa considerou, assim, que o Crescente não podia reclamar direitos legítimos sobre a ilha, e encarregou-se de trazer Timor para a esfera da civilização europeia. A ilha não fazia parte da lista de colónias asiáticas de Portugal e Lisboa referia-se-lhe como a sua única colónia da Oceania.

Em certo sentido, a história recente de Timor Leste é o último capítulo da Reconquista portuguesa, embora talvez mais inconsciente do que conscientemente. A luta de Portugal para ganhar Timor para a Cristandade e para a Latinidade prolongou o antigo espírito de cruzada contra os Mouros de língua árabe que tinha inspirado a grande aventura colonial iniciada por Henrique o Navegador. No entanto, o duelo que as línguas malaia e portuguesa estavam destinadas a travar em Timor oriental desenvolveu-se lentamente, decerto porque os europeus foram sempre poucos, na ilha, nos primeiros séculos da colónia. No primeiro século de domínio português na metade oriental, o malaio manteve-se como língua estrangeira dominante, influenciando directamente o tétum e as restantes línguas autóctones (ainda hoje, o tétum tem centenas de palavras de origem malaia). O português era pouco falado fora de Díli, e, ao contrário do que se passou em outras colónias portuguesas, a comunicação interracial em Timor progrediu através da aprendizagem do tétum pelos portugueses, mais do que pela entrada de um número significativo de timorenses na lusofonia.

Em 1851, o governador José Joaquim Lopes de Lima, em plena crise de tesouraria, aceitou uma oferta holandesa de compra das colónias próximas de Solor e das Flores orientais. Lisboa quis mais tarde voltar atrás com a precipitada decisão de vender, mas não teve meios para reaver as terras perdidas, entretanto integradas nas Índias Orientais Holandesas. O regime liberal e anticlerical instalado em 1834 ordenou a expulsão de todas as ordens religiosas instaladas em Timor, privando a ilha de missionários. Apenas uma mão-cheia de padres de Goa ficou, mas pouco se aventurava fora de Díli: as missões católicas entraram em colapso, e com elas a expansão da língua e cultura portuguesas. Quando a diocese de Macau, encarregada por Roma de nova missão em Timor, foi autorizada a enviar clérigos para a ilha, em 1874, o trabalho de evangelização recomeçou a partir do zero, embora Timor oriental fosse terra fértil para a missionação, porque a maioria dos reis locais (liurai) se mantivera cristã, adoptando nomes portugueses e o tratamento de Dom por via de baptismo.

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A Igreja, fazedora de nação

Esses reis raramente obrigavam os seus súbditos a aceitar o baptismo, o que contribuiu  para a manutenção de relações cordiais entre a população animista e os padres e freiras europeus, que abriam escolas e hospitais e ensinavam os timorenses independentemente da sua filiação religiosa. A forte compatibilidade entre a cristandade e uma variante monoteísta do animismo baseada no culto dos mortos esteve na base da convergência religiosa verificada no final dos anos 80 do séc. XX, quando, pressionada pelos ocupantes indonésios a definir-se como islâmica ou como cristã, a maioria da população animista (que constituia 70 por cento da população) se declarou e tornou católica praticante, obrigando simultaneamente a Igreja institucional a tornar-se mais tolerante para com um grande número de costumes animistas não contrários à fé cristã.

Entre 1874 e 1914, quando a disputa em torno da fronteira entre portugueses e holandeses, foi, finalmente, resolvida pela sentença arbitral de Haia, os tempos foram de lusificação intensa. A presença administrativa e militar portuguesa tornou-se mais pesada, e protagonizou diversos enfrentamentos com rebeliões dirigidas pelos liurais. O governador António Teles de Meneses fora em 1769 expulso de Lifau pelo rei de Ambeno — um “português preto”; agora, os reis de Rai Belus (a principal zona oriental da Timor portuguesa) eram perseguidos pelos “portugueses brancos”.

A brutalidade da tropa portuguesa na repressão das rebeliões e o sistema dos trabalhos forçados (públicos) fez nascer um ressentimento popular que está na origem da tradição anticolonial da sociedade timorense. Mas os timorenses passaram a distinguir o detestado colonialismo português e a cultura portuguesa, que fazia parte da vida de muitos deles.

A Igreja, que alimentava uma relação mais benévola e subtil com os locais, através da evangelização, das suas escolas e obras de caridade, tornou-se na face mais aceitável da presença portuguesa em Timor. Um dos seus principais méritos foi a adopção do tétum como língua franca da evangelização. O catecismo católico e outros textos religiosos foram traduzidos para tétum, produziram-se dicionários e gramáticas da língua — trabalhos em que se distinguiram os padres Sebastião Maria Aparício da Silva, Manuel Neto e Manuel da Silva. Adoptando como standard o tétum de Díli (estruturalmente um crioulo, e o mais lusificado dos dialectos tétums), os missionários promoveram-no sob o nome de Tetum-Praça (porque Díli era conhecida como A Praça) em todo o território, até em distritos onde o tétum era pouco usado. E como a conversão ao cristianismo conferia um estatuto social superior, o Tetum-Praça tornou-se a língua dos baptizados, adquirindo um prestígio nunca rivalizado por nenhuma língua autóctone no Timor português.

 

Uma instituição nacional

O Tétum-Praça tornou-se, deste modo, uma espécie de baixo português, falado pelos autóctones que não tinham tido a possibilidade de aprender, na escola ou na tropa, o português de Portugal. Com a generalização e lusificação do Tétum-Praça, o malaio regrediu e em pouco tempo tornou-se obsoleto. Um curioso testemunho desta evolução é o da escocesa Anna Forbes, que visitou a Timor portuguesa em 1882:

“É estranho não se ouvir malaio em Timor, já que o malaio se fala em todo o arquipélago civilizado. Mas aqui, os nativos têm de aprender a língua dos seus senhores (portugueses) se querem ter algum contacto com eles (...). Os nossos criados de Amboína, que estiveram connosco em Timor-laut [=Yamdena], dizem que terão gosto em ir connosco a qualquer parte do arquipélago menos a Timor, porque ali ninguém fala a língua deles, além de que os nativos são muito diferentes...”. A única excepção à situação descrita por Anna Forbes era o isolado enclave de Oecusse, onde o malaio se manteve corrente até 1975. Quando as tropas indonésias entraram em Timor Leste, encontraram uma população que não entendia nem falava malaio.

Com um tal passado, não é surpreendente que os três principais partidos existentes no território em 1975 — a lusófila UDT, a anticolonialista FRETILIN e a pró-indonesiana APODETI — concordassem todos em manter o português como língua oficial da nova entidade que respectivamente visionavam como um território ultramarino de Portugal, uma república independente e uma província autónoma da Indonésia. E ainda menos surpreende a raiva dos invasores contra a língua portuguesa: a 27ª província da Indonésia teria de abjurar de tal relíquia do colonialismo.

 

Informação complementar

O futuro do Bahasa Indonésio em Timor Leste

Durante os 25 anos de ocupação, o exército indonésio institucionalizou o Bahasa indonésio com a total exclusão do português, do tetum e das línguas autóctones. O território encheu-se de professores de bahasa e os timorenses, naturalmente poliglotas, depressa aprenderam a língua. O português foi declarado ilegal e o tétum não tinha lugar nem na escola nem nos media. A Igreja, promotora tradicional do tétum, tornou-se simultaneamente numa infra-estrutura semelhante a um governo paralelo para a população não protegida pela resistência e em campeã da cultura nacional em vias de supressão. Os militares indonésios alimentaram até ao fim a esperança de contar com a Igreja na sua luta contra as FALINTIL, e por isso os seus responsáveis usufruíram durante a ocupação de uma relativa imunidade às perseguições do Estado.

De facto, o carácter utilitário da sociedade indonésia, combinado com o seu chauvinismo nacionalista de mão pesada, fizeram com que a língua do ocupante se tornasse num mero utensílio em Timor Leste — uma instituição imposta incapaz de se enraizar na cultura local. Apesar de os indonésios terem implementado a escola pública gratuita, os níveis de ensino mantiveram-se notoriamente baixos durante a ocupação. O sistema de ensino entrou várias vezes em crise devido às relações tensas entre timorenses e ocupantes, e o resultado foi o de perda de eficácia do esforço feito pela Indonésia neste sector.

A atitude geral dos leste-timorenses em relação ao bahasa é tipicamente pragmática: onde a língua é útil na vida de todos os dias, sentem-se satisfeitos por falarem indonésio; mas é sensível a clara vontade de excluir o bahasa das posições oficiais que usurpou em 1976. Com o regresso do português à posição de língua oficial e a adopção do tétum como língua nacional, partilhando funções na administração, nos media, na educação e na vida social, o uso da língua indonésia nestas esferas deixará de existir. Mas é evidente que a reversão do caminho trilhado durante os 25 anos de ocupação dependerá da capacidade do Estado para devolver ao português e ao tétum a importância que agora lhes atribui. A língua do ocupante, estigmatizada como instrumento de repressão política e do terrorismo de Estado, poderá no entanto manter-se como uma importante “segunda língua”, abrindo Timor Leste à vasta região em que está integrada. A nova nação não terá meios para viver isolada do seu hinterland, como viveu durante o último período do domínio português.

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* Geoffrey Hull

Professor no Instituto Nacional de Línguas da Universidade Nacional de Timor Lorosae

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