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- JANUS 2002 -

Janus 2002



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O direito internacional e o nascimento de um novo Estado

Paula Escarameia *

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Poucos Estados têm a sua origem tão ligada à comunidade internacional e à suaordem jurídica como Timor Leste, sendo, por isso, relevante analisar quais osprincipais aspectos do Direito Internacional Público respeitantes ao caso.

Recuemos a 1975, quando as principais forças políticas locais (FRETILIN e UDT) começam a actuar e formam uma coligação, que foi quebrada, contudo, antes da realização de uma conferência em Junho, em Macau, promovida por Portugal, que aprova um sistema de governo provisório (com dois representantes portugueses e três representantes timorenses) que deveria funcionar até 1978, ano em que se consultariam os timorenses sobre o seu estatuto jurídico-internacional.

Tal acordo nunca passou de letra morta, tendo a UDT assumido o poder em 11 de Agosto, o que originou uma sangrenta guerra civil que terminou, em Setembro, com a vitória da FRETILIN. Esta força veio a proclamar, em 28 de Novembro, a independência de Timor Leste, o que não foi reconhecido por Portugal mas que o foi por 15 outros Estados. Entretanto, face à sua incapacidade para manter a paz no território, Portugal tinha pedido, numa carta de 22 de Agosto, dirigida ao Secretário-Geral da ONU, a intervenção da Organização, tendo as autoridades portuguesas partido para Ataúro em finais desse mês. Em 7 de Dezembro (um dia após ter co-patrocinado uma resolução, na ONU, sobre o direito de autodeterminação do povo de Timor), a Indonésia invade o território, procedendo progressivamente à instauração do seu poder. As autoridades portuguesas rumaram a Portugal em 8 de Dezembro, tendo Portugal quebrado, de imediato, relações diplomáticas com a Indonésia.

Seguiram-se 24 anos (em 17 de Julho de 1976, a Assembleia Popular da Indonésia incorporou Timor Leste no seu território como 27ª província) de uma das mais brutais ocupações, com mortes da população calculadas em cerca de 1/3 da mesma, deslocações forçadas, redistribuição de terras e sectores de produção, fome generalizada, torturas, etc.

 

Breve análise jurídica

Para além da questão jurídica fundamental relativa à proibição da utilização da força armada, tanto mais para conquista de um território (o que é patente em numerosos instrumentos, mas, sobretudo, no art. 2° n° 4 da Carta das Nações Unidas e na res. 3314, de 1974, da Assembleia Geral), a actuação indonésia vai directamente contra o direito de autodeterminação dos povos, pelo qual podem escolher o seu estatuto jurídico-internacional, o que está consagrado, não só nos arts. 1° n°2 e 55 ° da Carta da ONU, mas também em muitos outros documentos, como a Declaração de Concessão de Independência aos Povos e Países Colonizados [res. 1514 (XV)], a res. 1541 (XV), a res. 2625 (XXV) e os arts. 1°s dos Pactos, respectivamente, de Direitos Civis e Políticos, e Económicos, Sociais e Culturais. Para além disso, as violações permanentes de direitos humanos são de tal modo graves que, não só constituem repetidos desrespeitos a instrumentos como os Pactos referidos ou a Declaração Universal de Direitos Humanos, mas configuram-se como verdadeiros crimes: crimes de guerra (sobretudo regulados nas Convenções de Genebra de 1949), pelo desrespeito das regras de condução de conflitos armados, como ataques à população civil, a monumentos, utilização de armas ou métodos proibidos, etc; crimes contra a humanidade, que podem ser praticados em tempos de paz, como ataques sistemáticos ou generalizados contra a população civil, através de homicídios, tortura, escravidão, desaparecimentos forçados, crimes sexuais, etc.; genocídio, definido na Convenção sobre Prevenção e Punição do Crime de Genocídio de 1948, como a destruição intencional de um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, por homicídio, ofensas graves físicas ou mentais, imposição de circunstâncias que levem à sua destruição, imposição de medidas que impeçam nascimentos ou transferência forçada de crianças para outro grupo.

 

Resposta da ONU

A ONU vai finalmente pronunciar-se sobre a situação pelas resoluções da Assembleia Geral n° 3485 (XXX), de 12 de Dezembro e do Conselho de Segurança n° 384 (1975), de 22 de Dezembro, exigindo a retirada das forças indonésias e reafirmando o direito do povo de Timor Leste à autodeterminação (Timor Leste figurava, desde 1960, no seguimento da res. 1514 (XV), na lista dos territórios não autónomos, elaborada pela Assembleia Geral da ONU, a que se aplica o direito de autodeterminação). Como é do conhecimento geral, não foi cumprido o prescrito nestas resoluções e, no ano seguinte, quando o Conselho de Segurança aprova a res. 389 (1976), já os Estados Unidos e o Japão se abstêm. Seguiu-se uma série de resoluções na Assembleia Geral até 1982 (mais nenhuma no Conselho de Segurança), mas o padrão é perturbador: não só o enfoque passa da questão da agressão para a das violações dos direitos humanos (sem que se refira a origem do problema, isto é, a ocupação pela Indonésia) e termina com meras referências burocráticas a outros órgãos que deveriam ocupar-se do problema, mas também o número de Estados apoiantes vai decrescendo, de tal modo que a resolução de 1982 é aprovada apenas com 50 votos a favor, 46 contra e 50 abstenções.

Começa então uma 2ª fase em que o conflito passa a ser mediado pelo Secretário-Geral, tendo sido iniciadas conversações entre Portugal e a Indonésia, que não produziram resultados sensíveis até meados ou finais de 1998. Neste período, contudo, o mundo passou a ser alertado para o problema, não só pela entrada de Portugal na então CEE, tendo as instituições comunitárias, mormente o Parlamento, aprovado declarações condenatórias da situação, mas também pela filmagem do massacre de Santa Cruz em 1991 e, finalmente, pela obtenção, por Ximenes Belo e Ramos Horta do Prémio Nobel da Paz, em 1996. Por outro lado, é também neste período que Portugal intenta, no Tribunal Internacional de Justiça, em 1991, uma acção contra a Austrália, por causa do Acordo do Timor Gap (concluído em 1988, que delimita, provisoriamente, a plataforma continental entre Timor Leste e a Austrália, criando duas zonas de exploração individual e uma de exploração conjunta): se acaso o Tribunal decide não poder ocupar-se da questão substantiva por causa da ausência da Indonésia (que não aceitou a jurisdição do mesmo), também, no acórdão de 1995, vem reafirmar o direito dos timorenses à autodeterminação. Por outro lado, os timorenses reorganizam-se politicamente no CNRT, que vai expressar, numa só voz, as aspirações político-internacionais deste povo.

Uma 3ª fase inicia-se a partir de 1999: com a crise económica e as alterações políticas na Indonésia, a possibilidade de concessão de um estatuto de autonomia (a Constituição indonésia prevê um Estado unitário, sem quaisquer regiões autónomas) acaba por originar a própria possibilidade de consulta à população sobre a sua situação jurídico-internacional, já que a rejeição da referida autonomia corresponde, segundo o art. 6° do Acordo de Maio de 1999, concluído entre as partes referidas e testemunhado por Kofi Annan, ao fim do vínculo entre a Indonésia e Timor Leste e à independência deste último. Os factos que se lhe seguiram são do conhecimento geral: a ONU criou a UNAMET (res. do CS 1246 (1999), de 11 de Junho) que preparou o processo conducente à consulta popular, que se realizou em 30 de Agosto desse ano e deu, apesar do ambiente de intimidação e violência durante a campanha eleitoral, uma vitória clara de cerca de 80% à independência. Os incidentes trágicos que se seguiram ao anúncio dos resultados só vieram a terminar com a intervenção da INTERFET (força multilateral chefiada pela Austrália), autorizada a actuar pela res. do CS 1264 (1999), de 15 de Setembro, tendo a situação vindo a consolidar-se com a entrada em funcionamento da administração da ONU para o Território, a UNTAET, criada pela res. do CS 1272 (1999), de 22 de Outubro.

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Conclusão

Nunca antes foi uma administração da ONU tão completa (a administração no Kosovo tem os limites inerentes ao facto de este ser território jugoslavo) nem influenciou de tal modo o nascimento de um Estado (o paralelo mais próximo é provavelmente a Namíbia, mas a ONU nunca teve uma administração com estes poderes devido à presença física da África do Sul). De facto, a UNTAET tem aprovado, em consulta com o Conselho Nacional, composto por 33 membros das forças políticas e civis (que substituiu, em 14 de Julho de 2000, o anterior Conselho Consultivo Nacional, criado pelo Reg. 1999/2), uma série impressionante de regulamentos que tocam a própria estrutura básica de um Estado, desde questões relativas à moeda, sistemas bancário, empresarial e alfandegário, à divisão administrativa do território, estrutura judicial e leis aplicáveis pelos tribunais, até à protecção de zonas ecológicas, às relações diplomáticas com representantes estrangeiros e à criação de tribunais especiais para crimes graves. Este último ponto merece algum relevo, já que se prevê, sobretudo no Regulamento 2000/15, de 6 de Junho de 2000, que o tribunal distrital de Díli tenha câmaras com competência para crimes de genocídio, de guerra, contra a humanidade, homicídio, delitos sexuais e tortura (as definições foram transcritas do Estatuto do Tribunal Penal Internacional), com jurisdição universal (não é necessário um vínculo entre o crime e o Território), e cometidos no período entre 1 de Janeiro e 25 de Outubro de 99. Os julgamentos já começaram, apesar das muitas dificuldades infraestruturais e de os principais criminosos não terem sido ainda detidos, em grande parte devido à cobertura que lhes é dada pela Indonésia.

O caminho percorrido desde os milhares de mortes que ocorreram, logo aquando da invasão, no dia 7 de Dezembro de 75, até à presente constituição de um governo de transição para a independência é deveras impressionante e reflecte a capacidade de um sistema internacional jurídico-institucional para dar resposta à vontade de um povo que nunca se deixou calar.

 

Informação complementar

Resoluções e acordos da ONU referentes a Timor Leste

Resolução da Assembleia Geral n° 3485 (1975), de 12 de Dezembro de 1975, que condena a invasão indonésia.

Resolução do Conselho de Segurança n° 384 (1975), de 22 de Dezembro de 1975, que ordena a retirada das forças indonésias.

Resolução do Conselho de Segurança n°389 (1976), de 22 de Abril de 1976, que ordena a retirada das forças indonésias.

Resolução da Assembleia Geral n° 31/53, de 1 de Dezembro de 1976, que condena a intervenção indonésia.

Resolução da Assembleia Geral n° 32/34, de 28 de Novembro de 1977, que condena a intervenção indonésia.

Resolução da Assembleia Geral n° 33/39, de 13 de Dezembro de 1978, que reafirma o direito do povo timorense à autodeterminação e independência.

Resolução da Assembleia Geral n° 34/40, de 21 de Novembro de 1979, que determina que a UNICEF e o Alto Comissariado para os Refugiados deverão prestar auxílio.

Resolução da Assembleia Geral n° 35/27, de 11 de Novembro de 1980, que determina a ajuda humanitária por vários órgãos da ONU.

Resolução da Assembleia Geral n° 36/50, de 24 de Novembro de 1981, que exprime preocupação pela fome no Território.

Resolução da Assembleia Geral n° 37/30, de 23 de Novembro de 1982, que determina que o Secretário-Geral iniciará consultas para resolução do problema.

Acordos de Maio entre e República Indonésia e a República Portuguesa sobre a Questão de Timor, de 5 de Maio de 1999, em que se prevê uma consulta popular sobre o estatuto jurídico-internacional de Timor.

Resolução do Conselho de Segurança n° 1236 (1999), de 7 de Maio de 1999, que exprime satisfação pelos Acordos de 5 de Maio.

Resolução do Conselho de Segurança n° 1246 (1999), 11 de Junho de 1999, que cria a UNAMET para organizar e conduzir a consulta popular.

Resolução do Conselho de Segurança n° 1257 (1999), 3 de Agosto de 1999, que prorroga o mandato da UNAMET.

Resolução do Conselho de Segurança n° 1262 (1999), de 27 de Agosto de 1999, que prorroga o mandato da UNAMET.

Resolução do Conselho de Segurança n° 1264 (1999), de 15 de Setembro de 1999, que autoriza a intervenção da INTERFET, força multilateral.

Resolução da Comissão de Direitos Humanos S - 4/1, de 27 de Setembro de 1999, que cria uma comissão de inquérito sobre os crimes em Timor.

Resolução do Conselho de Segurança n° 1272 (1999), de 25 de Outubro de 1999, que cria a UNTAET, Administração Transitória das Nações Unidas em Timor Leste.

Resolução da Assembleia Geral n° 54/194, de 15 de Dezembro de 1999, que cria o ponto sobre “A situação de Timor Leste durante a sua transição para a independência”.

Resolução do Conselho de Segurança 1319 (2000), de 8 de Setembro de 2000, relativa aos homicídios de pessoal da ONU em Timor Ocidental.

Resolução da Assembleia Geral n° 55/172, de 14 de Dezembro de 2000, sobre assistência humanitária, reabilitação e desenvolvimento de Timor Leste.

Resolução do Conselho de Segurança n°1338 (2001), de 31 de Janeiro de 2001, que prorroga o mandato da UNTAET até 31 de Janeiro de 2002.

 

Normas jurídicas relevantes no caso de Timor Leste

Art. 2° n° 4 da Carta das Nações Unidas: “Os membros deverão abster-se nas suas relações internacionais de recorrer à ameaça ou ao uso da força, quer seja contra a integridade territorial ou a independência política de um Estado, quer seja de qualquer outro modo incompatível com os objectivos das Nações Unidas:”

Art. 1° n° 2 da Carta das Nações Unidas: “Os objectivos das Nações Unidas são: desenvolver relações de amizade entre as nações baseadas no respeito do princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal;”

Art. 55° da Carta das Nações Unidas: “Com o fim de criar condições de estabilidade e bem-estar, necessárias às relações pacíficas e amistosas entre as Nações, baseadas no respeito do princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos, as Nações Unidas promoverão: a) A elevação dos níveis de vida...b) A solução dos problemas internacionais económicos...c) O respeito universal e efectivo dos direitos do homem...”

Art. 2° da Resolução 1514 (XV), de 14 de Dezembro de 1960: “Todos os povos têm o direito de autodeterminação; em virtude desse direito determinam livremente o seu estatuto político e conduzem livremente o seu desenvolvimento económico, social e cultural.”

Princípio VI da Resolução 1541 (XV), de 15 de Dezembro de 1960: “Pode considerar-se que um Território Não-Autónomo atingiu completamente o governo próprio quando: a) Se torna um Estado soberano independente; b) Se associa livremente com um Estado independente; ou c) Se integra num Estado independente.”

Art. 6° do Acordo entre a República da Indonésia e a República Portuguesa quanto à Questão de Timor Leste: “Se o Secretário-Geral apurar, com base no resultado da consulta popular e em conformidade com o presente acordo, que o enquadramento constitucional para uma autonomia especial proposto não é aceite pelo povo de Timor Leste, o Governo da Indonésia dará todos os passos necessários, em termos constitucionais, para pôr termo ao vínculo com Timor Leste, restaurando desse modo, nos termos da lei indonésia, o estatuto detido por Timor Leste antes de 17 de Julho de 1976, e os Governos da Indonésia e de Portugal e o Secretário-Geral acordarão os moldes de uma transferência pacífica e ordeira da autoridade em Timor Leste para as Nações Unidas.

O Secretário-geral dará início, nos termos de mandato legislativo apropriado, desde de que disponha de mandato legislativo para esse fim, ao procedimento que irá permitir a Timor Leste iniciar um processo de transição para a independência.”

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* Paula Escarameia

Doutorada e Mestre em Direito Internacional Público pela Faculdade de Direito da Universidade de Harvard. Professora Associada do ISCSP.

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