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Portugal e a renovação do saber no século XVI

Luís Filipe Barreto *

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Ao longo de Quinhentos os portugueses são presença activa na cultura europeia e contribuintes nucleares, para a renovação do saber.

Esta contemporaneidade portuguesa no horizonte cultural europeu resulta da expansão marítima e mercantil nos mares e litorais do Atlântico, Índico e Pacífico. É através do estatuto de intermediário Europa/Mundos não europeus, através das funções interculturais desempenhadas à escala planetária que a cultura portuguesa da expansão ganha uma posição e consideração europeias. Portugal através da expansão é, ao longo do século XVI, um dos participantes mais activos na renovação dos conhecimentos europeus.

O contributo português é, antes de mais, uma revolução informativa, à escala planetária da época, sobre o homem e a natureza. Permite a formação na Europa de um primeiro banco de dados, global e comparativo, em áreas tão diversas como o conhecimento de línguas asiáticas, o regime de correntes e de ventos oceânicos, no Atlântico, Indico, Pacífico ou os sistemas religiosos extra-mediterrânicos. Ao longo da segunda metade de Quinhentos vemos surgir gramáticas e vocabulários de Tâmile como as de Henrique Henriques S.J. (1520-1600) e Baltazar da Costa S.J. (1538-1580), o primeiro Dicionário Português-Chinês, de cerca de 1582, coordenado pelo jesuíta italiano M. Ruggiero, mas resultante de um trabalho colectivo onde pontifica o luso-chinês macaense Sebastião Fernandes (1561-1621). O trabalho de equipa coordenada por outro jesuíta português, João Rodrigues Tçuzu (1561-1633) está na origem dos primeiros saberes europeus da língua japonesa: DictionariumLatino Lusitanicum an Iaponicum, Amacusa, 1595 e o Vocabulário da Língua de Japan, Nagasaqui, 1603-1604.

À medida que avançamos no século XVI, a Europa, por via dos seus centros e interesses nos mares e litorais da África, da Ásia e da América, constitui um primeiro banco de dados planetário. Os portugueses dão um contributo fundamental para este banco de dados. Contributo dominante na quantidade e na qualidade da informação graças ao papel de intermediário, de mensageiro, de centro do nascente sistema intercultural de escala planetária. A informação alcançada em Santiago, Pernambuco, Cochim, Goa, Malaca, Macau, é transmitida para Lisboa e sofre uma concorrência de conhecimento que leva à disseminação, sob múltiplas formas, em lugares como Madrid, Roma, Londres, Antuérpia, Amesterdão, etc.

O sistema dos poderes e dos interesses europeus de concorrência e de parceria começa a criar uma rede de cidades de fronteira intercultural em que o factor português pesa decisivamente. O segundo grande elemento do contributo português para esta renovação do saber consiste numa aceleração do desenvolvimento técnico e científico em áreas como a náutica astronómica, a cartografia náutica, a construção e a arquitectura naval e militar, a botânica médica/farmacopeia, a geografia-antropologia. Desenvolvimento de saberes práticos e de implicação com a utilidade-necessidade da expansão marítima e litoral. Desenvolvimentos feitos no quadro da tradição melhorada, da exploração das potencialidades das heranças que incorporam a novidade no seio desta tradição retocada.

A astronomia náutica é uma revolução nas formas de navegar mas é ao mesmo tempo também tradição retocada com o uso e a adaptação de instrumentos como o astrolábio que faz surgir o astrolábio náutico. Do mesmo modo, a cartografia náutica portuguesa do Renascimento é renovação do saber europeu mas é também e ao mesmo tempo a fusão criativa de duas heranças divergentes: a carta portulano de rumos e a escala de latitudes da cartografia ptolomaica. Em grande medida, esta renovação de saberes técnicos e científicos resulta de técnicas antigas, quando olhadas separadamente, mas de uma alta novidade quando olhamos a sua combinação e as resultantes e os desenvolvimentos alcançados a partir desta arte de combinar e de potenciar mundos tradicionais.

O terceiro grande contributo dos portugueses de Quinhentos para uma nova idade do conhecimento europeu reside na crítica racional, por vezes sistemática e fundamentada, de muitos princípios chave (em especial, informativos) herdados da Antiguidade e da Medievalidade. Essa herança que em parte é aceite e retocada, como acabámos de ver, é também, em parte, avaliada e recusada. O pesar da tradição, o martelo crítico que se abate sobre a herança assenta agora, cada vez mais, em critérios de maior exigência e, por isso, diminui o tradicional critério das autoridades, crescendo os da observação e da utilidade. Estes três elementos, Revolução Informativa, Inovação Técnica e Crítica Racional, são o essencial do património português na renovação do saber europeu de Quinhentos.

É necessário, no entanto, não criar anacronismos e falsificações sobre o contributo dos portugueses. Esta renovação ainda não é a ciência e as técnicas modernas que nos séculos XVII e XVIII vão instaurar a racionalidade científica matemática-mecânica. Por outro lado, o fenómeno da expansão marítima e mercantil é acima de tudo internacional, intercultural e não pode ser compreendido à luz de uma redução nacionalista.

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O contributo português para esta renovação do saber europeu assenta, em larga medida, numa capacidade de integração dos saberes e dos horizontes informativos, em especial, asiáticos num quadro europeu. Por exemplo, o navegador e geógrafo Francisco Rodrigues é autor de um Livro de Geografia Oriental, de cerca de 1512, com Regimentos, Roteiros, Cartas-Esboço e Desenhos Panorâmicos dos litorais do Sueste asiático e da Ásia Oriental. As suas cartas do litoral da China, desde o golfo de Tonquim até ao litoral da Coreia, são as primeiras dessas regiões traçadas por um europeu. E Francisco Rodrigues é também o primeiro europeu a escrever um Roteiro sobre a navegação nos mares da China, "Caminho da China", de Malaca a Cantão.

Mas todo este saber só foi possível graças à recolha de informações na índia, em Banda e Malaca, graças ao contacto com pilotos e cartógrafos asiáticos, em especial, chineses e javaneses. Por isso, os mapas de F. Rodrigues são uma adaptação da cartografia chinesa com linhas de rumo da cartografia portuguesa e o roteiro da China é uma versão/tradução para português de roteiros orientais. A Revolução Informativa no saber europeu do mundo, ao longo do século XVI, resulta em larga medida de uma capacidade de recolha, de organização e de incorporação de saberes extra-europeus no horizonte do saber português.

A novidade desta revolução informativa deve ser pois situada e avaliada na sua própria realidade. A Revolução Informativa dá-se sobretudo no olhar europeu e graças, antes de mais, ao intermediário por excelência da Europa no mundo de Quinhentos que é o Português.

A Crítica Racional deve também ser colocada na sua exacta medida. A cultura da expansão portuguesa no mundo é essencialmente prática e de implicação imediata. Está ligada aos interesses comerciais do Estado e de particulares.

E um saber para fazer, para poder ganhar mais, seja lucro económico ou informativo. A dimensão teórica e crítica é sempre secundária.

Nas palavras dos nossos dias, diríamos que de investigação fundamental muito reduzida e de acentuação na investigação aplicada. Por isso, a crítica racional em relação aos horizontes tradicionais é limitada e encontra muitos obstáculos. A criação científica profunda, a investigação teórica está constantemente a perder frente ao imediatismo de aplicação do já existente. São estes limites que encontramos, por exemplo, nas investigações teóricas de Pedro Nunes sobre a Loxodromia constantemente debaixo de fogo dos empiristas/pragmáticos como Lopo Homem ou Fernando Oliveira. O resultado destas limitações será o não desenvolvimento da descoberta teórica de Pedro Nunes em Portugal, pois a Loxodromia não passa para a cartografia náutica portuguesa mas vai estar na base da projecção cartográfica moderna de Gerardus Mercator (1512-1594).

Os portugueses dão um contributo assinalável para a renovação do saber europeu graças à cultura da expansão portuguesa no mundo. Mas este contributo é bem mais prático que teórico, bem mais informativo que formativo, bem mais fruto de um intermediário que inova pela mistura de elementos outrora isolados do que fruto de uma investigação erudita ou fundamental.

Informação Complementar

“...navega-se mais pela boa marinharia e estimativa que os pilotos têm do que pela que antigamente se descobriu...”

Diogo Afonso, 1535

“...porque as terras são agora, mais descobertas e mais sabidas: descobrem-se mais os erros passados...”

Garcia de Orta, 1563

“...se sabe mais em um dia agora pelos Portugueses do que se sabia em 100 anos pelos romanos...”

Garcia de Orta, 1583

“...e em poucas horas, sem alguma defesa, trabalho, vigia, se veio a descobrir o segredo que em tantos anos, com tantas diligências e demasiados gastos de potentíssimos reis, não pôde ser descoberto...”

D. João de Castro, 1541

“... Os Portugueses ousaram cometer o grande mar Oceano. Entraram por ele sem nenhum receio. Descobriram novas ilhas, novas terras, novos mares, novos povos, e que mais é, novo céu e novas estrelas....Ora manifesto é que estes descobrimentos de costas, ilhas e terras firmes não se fizeram indo a acertar, mas partiam os nossos mareantes muito ensinados e providos de instrumentos e regras de astrologia e geometria...”

Pedro Nunes, 1537

“...cada um colhe a novidade da terra segundo o que nela semeou...”

João de Barros, 1553


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* Luís Filipe Barreto

Professor Associado da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

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Bibliografia

Albuquerque, Luís de, Ciência e Experiência nos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, ICALP, 1983

As Navegações e a sua Projecção na Ciência e na Cultura, Lisboa, Gradiva, 1987

Barata, J. Gama Pimentel, Estudos de Arqueologia Naval, L Nacional, 1989, 2 vols.

Barreto, Luís Filipe, Descobrimentos e Renascimento, Lisboa, I. Nacional, 1982

Os Descobrimentos e a Ordem do Saber, Lisboa, Gradiva, 1987

Dias, J. S. Silva, Os Descobrimentos e a Problemática Cultural do Século XVI, Lisboa, Presença, 1982

Randles, W.G. L., Da Terra Plana ao Globo Terrestre (1480-1520), Lisboa. Gradiva, 1990

Vários autores, A Ciência e os Descobrimentos, Lisboa, JNICT, 1996

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