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Portugal e as realidades africanas: práticas e preconceitos

Isabel Castro Henriques*

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A longa relação dos Portugueses com outros espaços e outros homens tem fornecido os elementos mais constantes do pensamento português. Ocupando um lugar privilegiado no espaço historiográfico português, a história das relações multisseculares dos Portugueses com os Outros, com os Africanos em particular, era, sobretudo até ao último quartel deste século XX, uma evocação automática dos heróis e dos momentos de glória portugueses, baseada numa leitura simultaneamente triunfalista e humanitarista das operações portuguesas em África e numa visão negativa, redutora e inferiorizante das sociedades africanas, negando tanto a autonomia como a identidade dos Africanos.

A grande constante do pensamento português – para o qual a historiografia portuguesa contribuiu poderosamente fornecendo os fundamentos históricos e "científicos" – reside precisamente na recusa em reconhecer ao Outro uma qualquer autonomia. Quase sempre ausente na história portuguesa, o Africano aparece no discurso português "diluído" nas acções heróicas dos Portugueses ou despojado da sua humanidade, enselvajado, não podendo senão ser considerado como coisa da Natureza, sem autonomia, sem racionalidade, sem história.

Esta visão do Africano, das suas práticas e das suas realidades, fortemente enraizada no espaço português através de mitos, de imagens de natureza diversa, de preconceitos que a historiografia ajudou a consolidar, permanece teimosamente em muitos dos seus aspectos. A sua eliminação impõe uma releitura dos documentos e sobretudo uma purificação do aparelho conceptual e das perspectivas históricas assentes nas velhas fórmulas da exaltação nacional e das capacidades excepcionais dos Portugueses para "criar mundos mestiços caracterizados por uma harmonia social e racial inequívoca". Por outras palavras: se é urgente uma revisão dos conceitos, das ideias e das perspectivas utilizadas pela historiografia colonial portuguesa, é igualmente fundamental analisar de forma rigorosa e serena a operação de sedimentação dos preconceitos relativos à África, aos Africanos, às suas formas culturais que, na longa duração das relações entre Portugal e as Áfricas, se foram banalizando na sociedade portuguesa.

Estamos pois perante um processo de organização dos preconceitos que se estrutura entre os séculos XV e XX, cuja compreensão impõe uma articulação entre a evolução dos projectos portugueses relativos à África (vertente conjuntural) e a fixação de ideias, o mesmo é dizer, a construção de uma visão negativa do Outro africano (vertente estrutural): a concretização das operações portuguesas em África durante cinco séculos exigia o enselvajamento e a desumanização do Outro, ou seja a elaboração de ideias capazes de justificar as violências cometidas.

 

Da "diferença negativa" à "coisificação" do Africano

Quando no século XV os Portugueses prosseguem as suas viagens marítimas ao longo da costa africana, saindo dos limites geográficos que eram os seus, olham com surpresa e com curiosidade o continente, as terras, os homens e as suas práticas, os produtos, as mercadorias. Portadores de inquietações perante o desconhecido, mas também de ideias feitas e de a priori resultantes do seu próprio sistema de valores, estes homens querem dar conta das novidades encontradas. As operações geográficas, que são igualmente comerciais – já que as descobertas devem ser economicamente rendíveis –, são também operações destinadas a alargar o Conhecimento. Identificar, descrever e classificar as novidades – botânicas, zoológicas, geográficas – mas também os homens. Diferentes, desde a cor da pele, ao cheiro, à língua, à religião, à alimentação e às mais diversas práticas sociais e culturais, as "novidades humanas" só podem ser rejeitadas recorrendo ao raciocínio analógico do etnocentrismo.

Identificados e descritos, os Africanos e as suas práticas não podem ser compreendidos, já que o sistema cultural europeu de que depende o olhar português impõe certezas e gera leituras deformadoras das realidades africanas. Instala-se assim a diferença negativa do Outro: os preconceitos organizam-se desde os primeiros contactos directos entre Portugueses e Africanos.

Se os dois primeiros séculos das relações entre os Portugueses e as sociedades africanas marcam o início do processo de sedimentação dos preconceitos, caracterizando-se pelo inventário da diferença negativa do Outro e consequentemente pela rejeição da sua autonomia cultural, os séculos seguintes são marcados pela coisificação do Africano. O desenvolvimento do comércio negreiro, cujo fim teórico se situa nos princípios do século XIX, impõe ideias, sugere interpretações, elabora classificações que retiram ao Africano a sua natureza humana.

A desumanização dos homens africanos, confortada pelas teses da selvajaria africana cujo pico se situaria nas práticas antropofágicas dos Africanos, permite aos Europeus, aos Portugueses em particular, transformar esses não-homens em escravos: a salvação dos Africanos, que aparece como uma obrigação dos Europeus, impõe a escravatura. Escravos dos Brancos, integrados nos sistemas de organização social e económica instalados pelos Europeus nas Américas, pelos Portugueses no Brasil, os Africanos podiam assim libertar-se da sua selvajaria natural. Graças ao contacto com os Brancos e com os seus valores, graças ao baptismo e ao trabalho, os Negros africanos podiam enfim perder as suas características diabólicas, integrar-se no espaço da fé e alcançar a salvação eterna.

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A escravatura e o comércio negreiro arrancam os Africanos ao seu quadro social, obrigando-os pelo trabalho a redimir-se das culpas próprias ou colectivas. Os outros, os Africanos que permanecem no seu território ancestral, mantêm-se selvagens, apesar dos esforços das operações de missionação. Saliente-se o paradoxo fundamental da banalização da escravatura pelos Europeus: a des-socialização e desumanização dos homens e das mulheres africanos é compatível com a religião cristã e com a democracia que a Revolução Francesa pretendeu instaurar na Europa. Já no século XX, a permanência de formas camufladas de escravatura permite reforçar este paradoxo.

 

A metamorfose do escravo em trabalhador primitivo

Na segunda metade do século XIX, as preocupações europeias relativas aos outros mundos dependem dum maior conhecimento — geográfico e etnográfico – que se pretende científico, permitindo assim transformar os territórios africanos em espaços complementares e indispensáveis ao desenvolvimento das economias europeias. Perdidas as Américas, trata-se de encontrar novos territórios, novos mercados, para assegurar o escoamento das mercadorias europeias, cujo aumento da produção era o corolário das novas técnicas e formas de produção industrial. Também as carências europeias em matérias-primas podiam encontrar solução no continente africano. Assim, as nações africanas, autónomas, independentes, controlando os seus espaços e os seus homens, apareciam agora aos olhos dos Europeus, dos Portugueses, como parceiras essenciais para o desenvolvimento de um comércio "legítimo". Podemos ver nesta operação europeia uma recuperação do Outro africano para o espaço da humanidade. Se a antropofagia, a preguiça, a feitiçaria, as práticas sociais e culturais selvagens continuam a caracterizar as populações africanas, tal significa agora, à luz das teorias evolucionistas do século XIX, a permanência destas sociedades num estádio de barbárie e de primitivismo que o contacto com a Europa, pela via do comércio e sempre da missionação, pode ir corrigindo, num processo demasiado lento mas possível. Ao rejeitar-se a autonomia cultural do Outro, reconhecendo-se o peso de uma diferença cultural negativa, aceita-se o entendimento comercial entre Europeus e Africanos. Os paradoxos desta situação surgem constantemente nos documentos europeus onde os autores se perdem em afirmações que sublinham o primitivismo dos Africanos, registando simultaneamente a sua surpresa perante as capacidades técnicas, de produção ou de comercialização dos mesmos primitivos.

 

A domesticação do Africano

Se até ao último quartel do século XIX, as leituras redutoras do Outro africano – já que este é sempre "traduzido" em Europeu – não se inserem num projecto concreto de dominação das sociedades africanas, a partir desse momento, essa "tradução" do Outro em Europeu exige acções, práticas e leituras "cientificamente" redutoras. O Africano deve ser apresentado como bárbaro/selvagem, não para satisfazer o ego europeu, mas para justificar a sua domesticação. Pensa-se que o Africano, inserido no espaço civilizacional europeu/português que lhe assegura o acesso à escrita, ao trabalho, à missionação, pode perder a sua selvajaria intrínseca. Resistindo, o Africano torna-se o adversário principal. Se no século XIX era o parceiro comercial, depois de ter sido o escravo, agora, no século XX – século da dominação colonial –, o Selvagem repele a missão civilizadora europeia, que procura não só ensiná-lo e formá-lo, mas também criar as condições para a exploração e valorização dos territórios e das riquezas de África, que os Africanos/selvagens não souberam desenvolver.

Por outras palavras, a domesticação dos Africanos implica pôr em evidência as características negativas e bárbaras do Outro e consolidar assim, com bases concretas e científicas, a dominação colonial. Preguiçoso, antropófago (veja-se a obra de Henrique Galvão "Antropófagos", publicada em 1946), imoral, bêbado, ladrão, mais tarde terrorista, são alguns dos termos que marcaram a maneira portuguesa de pensar os Africanos. A estes acrescentam-se as fórmulas paternalistas, muitas vezes confundidas com a ausência de preconceito, de discriminação, de racismo. Escravatura, racismo, recusa da autonomia cultural do Africano organizaram o imaginário português relativo às sociedades africanas. A inferioridade do Outro consagra a superioridade do Mesmo.

Nos dias de hoje, Portugal não tem que assegurar as terríveis tarefas da dominação colonial, e libertos dos vírus da ideologia colonial, os portugueses dispõem de condições para proceder a uma releitura do seu próprio processo de automitificação e de recusa do Outro, que certamente explicam muitas das situações de racismo que hoje ainda se verificam. Uma das tarefas do historiador e da História consiste, precisamente, em pôr em evidência o carácter falacioso dos conceitos, das noções, das ideias, dos mitos que organizaram os preconceitos e alimentam o narcisismo nacional. A adesão da sociedade é indispensável para construir e desconstruir o preconceito, como o demonstrou o historiador Marc Ferro na sua obra L’ Histoiresous Surveillance (Paris, Calmann-Lévy, 1985). Se bem que não caiba ao historiador a função de "psicanalista da consciência colectiva", deve todavia dizer-se que só o trabalho lento mas seguro da História fornece os instrumentos para passar do mito ao Conhecimento. E só a plenitude do conhecimento reúne as condições para eliminar o preconceito.

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* Isabel Castro Henriques

Doutorada em História pela Universidade de Paris I – Panthéon – Sorbonne. Professora Auxiliar do Departamento de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

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