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Janus 2001



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A invenção de um novo modelo

Teresa de Sousa *

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Num dos seus últimos escritos, Francisco Lucas Pires escreveu que "a ideia de incerteza caracteriza hoje melhor a situação europeia do que a ideia de crise." Não estamos, de facto, perante uma crise europeia idêntica às anteriores, através das quais a Comunidade foi progredindo e se foi consolidando a partir do modelo de integração funcional originariamente imaginado por Jean Monnet. Estamos perante uma crise de incerteza quanto à natureza e ao modelo da construção europeia e quanto aos seus objectivos e finalidades. É esta realidade que torna hoje tão difícil qualquer exercício de prospectiva cujo objectivo seja entender como e para onde evoluirá a União Europeia nas próximas décadas. Esta crise de incerteza começou em Maastricht, quando os Estados membros da Comunidade ensaiaram a primeira resposta à "extraordinária aceleração da História", como escreveu na altura Jacques Delors, provocada pela queda do Muro de Berlim.

O fim do comunismo e a implosão da União Soviética vieram alterar profundamente os pressupostos sobre os quais assentava o modelo de construção europeia lançado no pós-guerra. A ameaça soviética que mantinha a Europa ocidental unida sob a protecção militar americana, desfez-se num abrir e fechar de olhos. A divisão da Alemanha deixou de ter razão de ser. A aliança transatlântica viu os seus fundamentos questionados pelo fim da guerra fria e também ela tem atravessado uma profunda crise de incerteza, apenas mitigada pela forte liderança norte-americana.

Desde então, a Comunidade – hoje União Europeia – mergulhou numa "crise existencial" a cujos efeitos tem sobrevivido com maior ou menor dificuldade graças à solidez dos seus fundamentos e à forte inércia do processo de integração.

A resposta que a Europa procurou formular em Maastricht às novas condições políticas do pós-guerra fria foi ainda a tradução do modelo e dos pressupostos do passado. A decisão de dotar a Comunidade de uma moeda única, tomada em Maastricht pelos então doze Estados membros, resultou de um acordo político entre o presidente francês, François Mitterrand, e o chanceler alemão, Helmut Kohl, para renovar o compromisso histórico entre a França e a Alemanha sobre o qual se construíra a Comunidade Europeia no pós-guerra. A troco da sua reunificação, a Alemanha ofereceu o marco alemão como penhor da renovação do seu compromisso com a integração da Europa ocidental. Foi esta decisão histórica do eixo Paris-Bona que determinou até hoje o conteúdo e o calendário da construção europeia.

Nos anos seguintes e praticamente até Janeiro de 1999 – quando a nova moeda europeia viu a luz do dia –, o euro tornou-se o principal, se não o único, objectivo do processo de integração. Em Maastricht, face às novas circunstâncias internacionais, a Comunidade assumia também o compromisso de construir uma nova dimensão política através de uma política externa e de segurança comum (PESC) e da intenção de vir a desenvolver a prazo uma defesa comum. Esta nova dimensão assentava, no entanto, num novo "pilar" da construção europeia de natureza estritamente intergovernamental.

Todos os outros desafios que se colocavam à União Europeia com uma clareza e com uma urgência cada vez maiores, nomeadamente o do alargamento e da estabilização do Leste, foram "neutralizados" pelo objectivo da moeda única.

A desagregação da antiga Jugoslávia, apesar das suas trágicas consequências, apenas veio revelar em toda a sua extensão a impotência e a impreparação da UE para lidar com uma nova situação europeia que interpelava directamente os seus fundamentos (nunca mais a guerra), os seus valores (o respeito pelos direitos humanos e pela democracia) e os seus interesses. A pressão das "revoluções" dos países da Europa Central e de Leste, feitas em nome do seu "regresso à Europa", acabou por inscrever o alargamento na agenda europeia, mas apenas como compromisso formal e longínquo – que se veio a revelar essencialmente incompatível com o esforço desenvolvido para realizar a moeda única.

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A UE não virou completamente as costas à "outra Europa". A celebração de acordos de associação com a maioria dos países da região foi um poderoso estímulo para os complexos e dolorosos processos de transição para a democracia e a economia de mercado empreendidos por alguns dos países pós-comunistas do Leste.

As condições políticas estabelecidas em 1993 pelo Conselho Europeu de Copenhaga para os candidatos à adesão foram importantes para criar o clima de cooperação e de boa vontade indispensáveis para a resolução de alguns dos velhos conflitos de fronteiras e de minorias herdados da II Guerra e temporariamente "congelados" pelo domínio comunista. Finalmente, em Dezembro de 1997, o Conselho Europeu do Luxemburgo deu início às negociações de adesão com seis dos onze candidatos, seleccionados como os mais aptos para uma próxima integração. Mas, na ausência de uma estratégia global para o continente destinada a garantir a estabilidade, a paz e a progressiva extensão da democracia, concentrada na realização da UEM, a União pouco fez para impedir a deterioração da situação nos Balcãs, permitindo a criação de um foco de instabilidade, de conflito e de guerra que acabou por estender-se a toda a região e se traduziu num desafio ao qual, depois da intervenção militar da NATO no Kosovo, não pode mais virar as costas.

A reforma de Amesterdão, concluída em Junho de 1997, foi mais uma oportunidade perdida para dotar a UE de uma estratégia e dos instrumentos institucionais adequados aos desafios de dimensão externa e interna que enfrentava: a nível externo, a paz e a democracia no continente europeu. A nível interno, a democratização do processo de integração que, desde Maastricht, passara a ser uma questão dos povos e não apenas das elites visionárias e voluntaristas da Europa – política e não apenas económica e tecnocrática.

O exercício de revisão de Maastricht empreendido a partir de 1996 não foi totalmente inútil. O novo Tratado de Amesterdão traduz-se em algumas melhorias e alguns avanços nas duas dimensões referidas. Mas a questão central do modelo e da estratégia unificadora não está resolvida.

Amesterdão é apenas a reforma possível numa Europa em transição para o euro. A força condutora da reforma é ainda o velho método funcional: com a moeda única, um passo gigantesco no sentido de uma cada vez maior integração, induziria por si própria as respostas à necessidade de uma união política. Mas a retórica do alargamento como a segunda grande prioridade da União não tem qualquer tradução na revisão dos tratados consignada em Amesterdão. A reforma institucional que visava adaptar as instituições da UE à participação de mais cinco ou dez países, ficou por fazer face ao desentendimento profundo entre as várias sensibilidades nacionais sobre o modelo futuro da construção europeia.

O exercício de revisão de Maastricht concluído em Amesterdão reflectiu as novas tensões internas quanto ao futuro da União e quanto ao modelo de integração. Pela primeira vez desde a fundação da Comunidade, países tão importantes como a França e a Alemanha tentaram pôr em causa os poderes da Comissão e do Tribunal de Justiça - os dois órgãos supranacionais que são os depositários do interesse comum europeu. No cômputo final, no entanto, este objectivo não foi alcançado e a Comissão viu mesmo os seus poderes ligeiramente reforçados.

A necessidade de reforçar a legitimidade democrática da União acabou por fazer do Parlamento Europeu o grande beneficiário desta reforma, aumentando significativamente os seus poderes de co-decisão e de fiscalização das actividades da Comissão de Bruxelas. No cômputo final, Amesterdão revelou muitas hesitações quanto ao modelo futuro da integração e mesmo algumas tentativas para recentrar mais claramente o poder nos Estados à custa das instituições supranacionais que representam o interesse comum. A reforma institucional indispensável ao alargamento por simples razões de eficácia ficou por fazer.

A aprovação da Agenda 2000 em Março de 1999 e a decisão de lançar uma nova conferência intergovernamental (CIG) de objectivos muito limitados foram mais uma vez reveladoras da intenção de adiar a questão de fundo. Um acordo sobre as perspectivas financeiras da União para os primeiros seis anos do século XXI apenas foi possível graças a um jogo de egoísmos e interesses nacionais que evitou qualquer reforma de fundo.

A agenda da nova CIG, fixada na cimeira de Junho em Colónia, restringe-se às alterações institucionais que permitem integrar mais cinco ou seis países sem o risco imediato de paralisia das instituições da União: o número de comissários; a ponderação de votos no Conselho; e o aumento das decisões tomadas por maioria qualificada. Ela será um mero exercício de redistribuição dos poderes entre os Estados membros e justamente por isso deverá revelar-se uma tarefa árdua e complexa porque será feita sem uma perspectiva global do modelo futuro de integração.

Citando de novo Lucas Pires, a Europa terá de encontrar respostas para os três principais "défices" do modelo de construção europeia – o de ideal, o democrático e o institucional. Isso significa que se verá, de novo, perante o desafio de inventar um modelo original, distinto de tudo aquilo que foi até hoje experimentado no domínio da construção de entidades democráticas. As condições em que terá de enfrentar este desafio são, todavia, extraordinariamente complexas.

Por um lado, as últimas eleições para o Parlamento Europeu, com um nível de abstenção muito elevado na generalidade dos países membros, revelaram em toda a sua dimensão o distanciamento dos povos europeus e a sua desconfiança em relação a um processo que cada vez mais os afecta mas cujas decisões sentem como cada vez mais longínquas. A mobilização dos povos europeus para um "ideal" ou para um "projecto" cuja finalidade aprovem e partilhem é, pois, indispensável a qualquer novo avanço num sentido mais federalista.

Mas, ao mesmo tempo, a pressão do alargamento e, sobretudo, a autêntica "revolução" da agenda política europeia provocada pela guerra no Kosovo, exigem à União respostas cujo calendário parece incompatível com este processo de amadurecimento necessário para sustentar novos passos no sentido do aprofundamento democrático e institucional.

Face a este dilema, são cada vez mais numerosos os defensores de um modelo de integração flexível assente numa nova arquitectura confederal que, sem excluir ninguém, permita associar e integrar os países da Europa Central e de Leste às vantagens do mercado único e à partilha de um determinado grau de solidariedade política, sem que a UE se veja impedida de aprofundar a sua integração política. Resta saber se haverá na União a capacidade política para repensar o interesse comum europeu e mobilizar os esforços necessários para realizá-lo com o mesmo êxito com que os países fundadores da Comunidade o fizeram sobre os escombros da II Guerra. Desta vez, como há 50 anos, a alternativa é a desintegração e o regresso ao nacionalismo ou, então, uma Europa reduzida ao estatuto de "protectorado" americano.

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* Teresa de Sousa

Jornalista do PÚBLICO.

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