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Janus 2004



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Mudança política e societária no mundo árabe

Ângelo Correia *

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Parte-se do pressuposto de que onde os Estados Unidos não aplicaram sanções militares, o resultado político é positivo e onde o fizeram a regressão é manifesta. Na Arábia Saudita desde o 11 de Setembro, e, em particular desde a intervenção no Iraque, os esforços têm-se multiplicado no sentido de uma maior democratização e respeito pelos Direitos Humanos, numa dimensão muito superior à verificada nos últimos trinta anos. A Jordânia constitui a experiência democrática mais bem sucedida no Médio Oriente islâmico, constituindo prova da compatibilidade entre islamismo e democracia.


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Admitimos, no texto anterior, que, onde os Estados Unidos não aplicaram acções militares, o resultado político é positivo, e, onde o fizeram, a regressão é manifesta. Elucidemos o que, do nosso ponto de vista, fundamenta esta hipótese, analisando sucintamente – por país, área, ou tema – a evolução verificada.

 

Arábia Saudita

O Estado saudita foi gerado por uma íntima ligação entre a família Saud e o movimento wahhabita, sendo aliás o único Estado cuja designação se confunde com o nome da dinastia que o criou e dirige. Desde o 11 de Setembro que o esforço de liberalização saudita se traduziu em várias mudanças, em dimensão e número muito superiores às verificadas nos últimos trinta anos, e essa situação ampliou-se após a intervenção militar no Iraque. Questiona-se se foram apenas as pressões dos EUA, ou o receio provocado pelas acções terroristas atribuídas à Al-Qaeda, os factores determinantes nessa evolução.

Creio que, apesar da sua importância, tais razões não são exclusivas. O poder político da realeza, em particular o príncipe herdeiro Abdullah, tem vindo a constatar um conjunto de problemas internos, desde o desemprego — que atinge cerca de 30% da população activa — às fortes tensões sociais face à desejável distribuição de riqueza, passando pelo regime de privilégio de quase dez mil membros da família real, pela importância excessiva do clero nos sistemas educativo de informação e policial, e por uma relativa estagnação económica, que prenunciam uma escalada interna de violência e perturbação capazes de, em última instância, pôr em causa o regime.

Cerca de 200 intelectuais sauditas elaboraram uma petição bem recebida pelo trono, requerendo um novo poder judicial independente, eleições legislativas, privatizações, participação política, livre associação dos jornalistas e um estatuto diferente para a mulher na sociedade saudita. É curioso que o temor dos sectores mais liberais da Arábia Saudita se tenha centrado na acção e importância dos “religiosos”, cujo papel dominante começa a ser questionado, e que têm surgido como hipótese negativa de alternativa política ao poder existente. Num discurso “formalmente” da autoria do rei Fahad e dirigido ao Conselho Consultivo do Reino, foram apoiadas reformas no sistema educativo, e, mais importante que isso, explicitada a necessidade de um debate sobre “questões morais” — tabus até agora.

Dois outros tabus foram igualmente atingidos, o primeiro dos quais diz respeito à linguagem usada nas madrassas: o clero wahhabita trata qualquer estrangeiro como infiel; desde os primeiros anos de escola se incute nos jovens sauditas a visão identitária do “outro” como inimigo e não apenas como outro que pode pensar e comportar-se diferentemente, com a mesma dignidade humana. A própria discussão desta ideia é contrária ao radicalismo religioso islâmico, e constitui um ponto vital de mudança para a modernidade, no que respeita à protecção dos direitos humanos. O segundo tabu abordado — ainda que de um modo limitado — respeita ao papel da mulher.

O discurso do rei apelava à criação de novas oportunidades profissionais, sem ainda tocar no estatuto de subalternidade que as mulheres assumem no país. É, aliás, paradoxal que metade dos efectivos escolares, incluindo universidades, seja feminino, o que até coloca um problema de utilização racional dos recursos humanos nacionais. A chave da modernização saudita assenta na dimensão do poder que o príncipe Abdullah detiver. Qualquer aliança modernizadora deverá ser operada com ele e não contra ele, mesmo que daí decorra uma rotura na família real.

Aquando do desencadear da operação militar contra o regime iraquiano, foi várias vezes referida a possibilidade de uma forte redução do contingente militar aéreo e terrestre norte-americano em território saudita. Tal perspectiva foi abandonada, sobretudo após os atentados de Ryadh. Cerca de 30.000 militares permanecerão em território saudita, e sessenta peritos do FBI chegaram ao país a seguir àqueles atentados, para cooperarem com as autoridades locais na identificação dos terroristas, na esteira de igual autorização concedida em 1996, quando do ataque a Khobar. O poder saudita não deseja exibir mudanças forçadas por pressões externas; deseja apresentá-las como decorrentes da sua evolução interna. Isso não significa que elas não vão ser feitas: o imobilismo seria fatal. Tocqueville também é lido em Ryadh. Para já, os “Muros de Silêncio” na Arábia Saudita estão a cair.

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Jordânia

A experiência democrática mais bem sucedida no Médio Oriente islâmico é, sem dúvida, a realizada no reino hachemita da Jordânia.

Em 1989, a oposição esteve próxima da vitória e a Irmandade Muçulmana – força radical islâmica – conseguiu 27% dos votos no Parlamento. Em 1993 obteve 20% e até uma participação no governo do rei Hussein – que lhes foi nefasta: invocando os acordos entretanto celebrados com Israel e um conjunto de reformas demasiado centradas na lógica do FMI, os irmãos muçulmanos preferiram boicotar as eleições de 1997.

O período seguinte foi muito conturbado, tendo o Parlamento sido dissolvido em 2001, e só em Junho de 2003 se realizaram novas eleições, com a vitória das forças próximas da casa real, que obtiveram dois terços dos cento e dez lugares. Curiosamente, a Irmandade Muçulmana (Frente de Acção Islâmica) só obteve dezassete lugares, enquanto o Partido Democrático (esquerda) obteve dois, e o Baas e os nacionalistas não obtiveram qualquer lugar.

É quase paradoxal que um país pobre, de poucos recursos, contíguo ao conflito israelo-palestino, com uma maioria populacional palestiniana e onde parte dos seus membros e a Legião Árabe (principal força do exército jordano) lutaram violentamente há quarenta anos — a designação de Setembro Negro tem aí origem — tenha conseguido um relativo sucesso na democratização do seu sistema político.

O papel modernizador e moderador da monarquia hachemita foi e será decisivo, e essa realidade mostra que a democracia é possível num país islâmico.

 

Magrebe

As ondas de propagação desta viragem democrática chegaram ao Magrebe com uma intensidade diferente. Os países que o compõem já praticam uma política de direitos humanos mais avançada do que os do Golfo. Num deles – Marrocos – a institucionalização da democracia é sem dúvida um acquis.

Na Argélia, apesar de a questão terrorista durar há mais de dez anos, a pluralidade partidária está em consolidação, embora subsistam alguns estrangulamentos decisivos nessa marcha modernizadora.

Na Tunísia, onde o estatuto da mulher é ímpar – para além do Egipto e Líbano – e louvável, e onde a abertura económica e o combate às desigualdades tem constituído opção permanente, não foi ainda operada uma verdadeira abertura política. Eleições onde quase 100% dos votantes se revêem na mesma candidatura não são a normalidade democrática. Contudo, é dos países árabes onde um regime democrático tem condições de excelência para vivificar. Até a Líbia está a encetar uma reforma política, com a alteração do espírito de Jamairya e a abertura a um posicionamento internacional igual ao de todos os países. O novo primeiro-ministro, escolhido em 2003, atesta essa nova postura.

A questão relevante projecta-se nas consequências do atentado de16 de Maio de 2003 em Casablanca: o Parlamento marroquino adoptou uma severa legislação antiterrorista, e o Partido de Justiça e Desenvolvimento — terceira força política do país, com quarenta e três deputados — de natureza islâmica, começa a ser questionado pela defesa pouco consistente que faz da não separação entre o “religioso” e o “profano”. O desenvolvimento desta questão e a aplicação da lei acima referida são testes decisivos à democracia marroquina.

 

Instituições democráticas

Desde o 11 de Setembro, e, sobretudo perante a eminência da intervenção militar no Iraque, foi notório o esforço de muitos Estados do Golfo em iniciarem processos de maior validação pública das suas Assembleias Legislativas. O Kuwait, o Bahrein, o Qatar, Omã e Iémen introduziram reformas atribuindo percentagens (de 50% a 70%) a membros directamente eleitos pelos cidadãos. Anteriormente, esses órgãos legislativos existiam, mas com composição escolhida pelo poder, e não decorrente de eleição.

As mudanças anunciadas são, por isso, um passo importante para a democracia. A questão do estatuto e a consequente participação da mulher islâmica na vida política do Estado constitui tema central de análise e avaliação. Há melhorias neste âmbito, mormente a intervenção de mulheres como membros dos parlamentos: em Marrocos há trinta e cinco deputadas, na Síria trinta, na Tunísia vinte e um, na Autoridade Palestiniana cinco, no Egipto onze, no Líbano três, no Iémen e em Omã uma. No Bahrein foram nomeadas seis mulheres para o órgão correspondente ao Senado, e espera-se uma mudança no Kuwait, que até há pouco tempo não as autorizava ao desempenho de tais lugares.

É de enorme importância o desenvolvimento desta questão, sabendo-se ainda residir no reino saudita a maior oposição à dignificação do estatuto da mulher.

De uma operação salvadora e indutora de um regime democrático, seguida de um programa de reconstrução urgente, o Iraque mergulhou num duplo conflito: – entre as forças anglo-americanas (sobretudo estas últimas) e a militância nacionalista islâmica, recordando uma “terra de Jihad” e um consequente conflito assimétrico, que, em geral, não tem solução puramente militar – entre as várias etnias e grupos religiosos internos, cujo cimento de unidade pretérito só existiu imposto pela força, e pelo domínio da minoria sunita. É difícil antecipar o futuro e, sobretudo, arriscar uma previsão fiável.

Por um lado, a intervenção militar no Iraque relançou os “demónios de guerra e de vingança”. Recriou o espectro da cruzada, ligou nacionalistas a internacionalistas religiosos numa guerra assimétrica sem solução visível, isolou a administração provisória dos restantes Estados do Golfo e separou mais o que deveria ter sido mais unificado. Os EUA entraram no último período de 2003 a desenvolver esforços enormes na reconstrução dos sistemas de saúde, água, reinserção de refugiados, criação de uma polícia nacional, reparação de estradas, aeroportos e pontes. A revitalização da extracção e distribuição de combustíveis, base da sustentabilidade da recuperação económica, sofreu um sério revés e as receitas que gerará em 2004 cobrirão apenas metade das suas necessidades.

Paradoxalmente, hoje em dia, o Iraque importa gás, gasóleo e gasolina. Outros factores acrescentam imprevisibilidade ao cenário regional: não temos ainda a certeza da direcção que orientará as opiniões públicas do mundo islâmico: se numa perspectiva de escalada anti-ocidental, reforçando uma “identidade” que nos seja antagónica e sacralizando ainda mais o “político”, ou se, pelo contrário, este se secularizará relativamente, não perdendo as suas crenças mas celebrando-as numa esfera distinta. Ao Ocidente não é indiferente esta questão. É imperativo não provocar à primeira, sem forçar excessivamente a segunda. É necessário não assumir as tensões civilizacionais como um choque inevitável e dramático, mas como algo superável com a promoção dos direitos humanos, a justiça internacional, a resolução dos conflitos, a equidade, a percepção da diferença e a necessária convivialidade intercivilizações. Não esperemos uma réplica, no seio da civilização islâmica, dos nossos padrões culturais e formas de expressão e organização democráticas. Não tenhamos a pretensão de exportar a forma, mas antes a ideia e o conteúdo. A própria ideia de democracia é uma conquista ocidental, fruto da plena ascensão do “individualismo” filosófico e da “contratualização societal”. O princípio fundamental no Islão – reforçado em muitas das aéreas geográficas onde se implantou – é o da Umma – comunidade dos crentes. A separação filosófica entre os dois modelos é profunda, e só a mudança religiosa no Islão pode permitir maior aproximação.

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* Ângelo Correia

Empresário. Presidente da Câmara do Comércio e Indústria Árabe-Portuguesa. Cônsul Honorário do Reino Hachemita da Jordânia em Portugal. Ex-ministro da Administração Interna. Ex-deputado.

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