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Janus 2004



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Modelos onusianos para o Iraque da “transição”

João Maria Mendes *

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A possibilidade da participação da ONU no pós-guerra iraquiano assume diversas formas. Foi anteriormente levada a cabo a reavaliação do papel dos chamados “capacetes azuis”, tendo defendido Kofi Annan que utilização destas forças só deve ocorrer após o restabelecimento da paz por forças multinacionais dirigidas por Estados-líderes. O novo modelo faz depender as intervenções da iniciativa de um Estado-líder que intervém em situação de urgência, sob autorização da ONU, gerindo as contribuições em termos de tropas e equipamentos e garantindo o financiamento da operação.

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Por menos provável que a hipótese parecesse, Kofi Annan admitia,no fim do Verão de 2003, a possibilidade de herdar a gestão política do pós-guerra iraquiano, depois de ter sido uma das vozes mais críticas dessa mesma guerra, iniciada seis meses antes pelos EUA e a Grã-Bretanha, contra os princípios declarados da Carta de 1945.

Esta edição do JANUS seguiu para o prelo no momento em que, nos bastidores da ONU, fervilhavam os modelos de operações de manutenção de paz de que a organização pode e deve encarregar-se, devido às hipóteses relançadas em Setembro de 2003 sobre o seu eventual papel no Iraque.

O modelo afegão em vigor desde meados de Agosto de 2003 tornava-se, subitamente, uma referência: a ONU conduzia o processo político e a segurança estava entregue ao ISAF, desde essa data sob comando da NATO — 5.000 soldados às ordens de um general alemão. Os EUA mantinham 9.000 homens de forças especiais fora desse comando. Revista e ampliada para o cenário iraquiano, esta fórmula manteria o comando americano por interposta NATO e poderia testar a reconciliação transatlântica por interposta condução onusiana do processo político, desde que os americanos abrissem mão deste último. O novo “modelo afegão” fascinava, mas não parecia directamente exportável para o Iraque. Seria preciso inovar, a partir dele...

A ONU não tem exército próprio, mas a Carta de 1945 dotou-a de um estado-maior que era suposto funcionar em comité e dirigir operações de tropas disponibilizadas por Estados membros. Uma relíquia dos pais fundadores, que a guerra fria congelou.

Depois, desde a década de 90 do século XX, as intervenções militares da ONU continuaram a depender das decisões do Conselho de Segurança. Mas as más experiências no Ruanda e na Bósnia levaram até à suspensão do envio de “capacetes azuis” para teatros de urgência. Ao mesmo tempo, países como a França e os EUA passaram a recusar agir militarmente sob comando onusiano — e este cenário de rotura significa que a ONU passou a “subcontratar” serviços militares. Kofi Annan é um defensor dessa subcontratação forçada e abandonou a defesa dos “capacetes azuis” — foi ele que, na Bósnia, testou o novo sistema, substituindo a Forpronu (Força de Protecção das Nações Unidas) por uma força multinacional sob comando da NATO (12.000 homens, 1.900 dos quais americanos). Este modelo de força multinacional, autorizada pela ONU mas já não constituída por “capacetes azuis”, foi igualmente testado na Libéria, Afeganistão, Congo, Costa do Marfim e Kosovo. Ainda subsistem 14 operações de manutenção de paz por soldados onusianos, pagas pela organização; são heranças do passado ou supervisões de cessar-fogo: Chipre, Golan, Serra Leoa, outras. A filosofia política do Secretário-Geral da ONU nesta matéria pode talvez resumir-se nestas duas citações suas (extraídas da conferência de imprensa que convocou, a 8 de Setembro de 2003, em Nova Iorque):

Sobre as operações de manutenção de paz: “Há casos em que se tem de começar por restabelecer a paz e estabilizar a situação antes de enviar uma missão de manutenção de paz. Os capacetes azuis não são um instrumento adaptado neste tipo de casos. Por isso argumentei contra a sua utilização, e a favor de forças multinacionais dirigidas por Estados-líderes no Afeganistão, na Costa do Marfim, na R.D. do Congo e na Libéria. Estabilizada a situação, uma missão robusta de manutenção da paz pode então intervir, desde que os Estados membros dispondo dos meios necessários aceitem disponibilizar esses meios à Organização. Infelizmente, alguns dos países dotados de meios militares substanciais (...) são hoje os mais reticentes em pôr as suas forças ao serviço de operações de paz da ONU...”

Sobre a crise da ONU: “A Organização das Nações Unidas encontra-se numa etapa crítica: se o Conselho de Segurança não reganhar a confiança dos Estados e da opinião pública mundial, os Estados fiar-se-ão cada vez mais apenas nas suas próprias percepções nacionais das ameaças emergentes e no seu próprio juízo sobre a melhor maneira de as afastar”.

O novo modelo depende, assim, da propositura de um Estado-pivot (ou Estado- líder) que intervém em situação de urgência, com a autorização da ONU, antecipando uma eventual utilização posterior de “capacetes azuis” ou seus sucedâneos. Esse Estado-pivot gere as contribuições de outros em tropas e materiais e garante o financiamento da intervenção — foi o que fez a França em Bunia (Congo), com a ajuda da África do Sul e Brasil.

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De facto, as operações originariamente mandatadas pelo Conselho de Segurança da ONU têm-se tornado mais raras, intervindo a organização a posteriori, geralmente para as apoiar. Mas, se a França fez questão em legitimar na ONU a sua intervenção em Bunia, definindo os limites da operação no âmbito das Nações Unidas, já a Grã-Bretanha evacuou estrangeiros da Serra Leoa e chegou a acordo militar posterior com as autoridades locais sem nunca recorrer à ONU para legitimar a sua intervenção ou as modalidades desta.

Hoje há a ideia clara de que só os EUA, a Grã-Bretanha e a França dispõem da capacidade para desempenhar a função de Estado-pivot em operações intercontinentais. O quadro de candidatos é completado pelas potências regionais africanas e as associações de Estados africanos para intervenções em países vizinhos, ou ainda pela Austrália, que interveio em Timor em 1999, sempre em articulação com a ONU. Têm sido os Estados-pivots os principais contribuintes com tropas, e, também por esse motivo, assumem naturalmente o comando da intervenção. Assim, se este modelo fosse adaptado à situação iraquiana, ninguém estranharia que os EUA assumissem o comando militar da força multinacional para ali deslocada (o que já constitui uma variante em relação ao “modelo afegão”).

 

O exemplo da SFOR

A engenharia de tal modelo suporta, conforme o seu perfil pontual, diversos tipos de variáveis. A legitimação pela ONU permitiu ao Canadá apoiar logisticamente a França em Bunia, depois de garantido o apoio decisivo da UE (operação Artémis). Na Costa do Marfim, a França desenvolve uma operação ao lado da CEDEAO e, desde Maio de 2003, paralelamente a uma pequena intervenção da ONU (a Minuci). Na Libéria, é a potência regional que actua como Estado-pivot, limitando-se os EUA a apoiá-la militarmente... e a financiá-la.

A ONU de Kofi Annan não reclama direitos de autor sobre a fórmula que tem sido testada, nem tem proposto para ela figurinos excessivamente rígidos. De facto, os figurinos têm sido fabricados e aceites “por medida”. Ora, em Setembro de 2003, os EUA pediam ao Conselho de Segurança autorização para enviar para o Iraque uma “força multinacional sob comando unificado”, garantindo-lhe informação regular sobre todas as matérias respeitantes a tal força. Mas isso é já o que faz o Secretário-Geral da NATO: todos os meses envia ao Conselho de Segurança um relatório de uma página sobre as actividades dos 12.000 homens da SFOR na Bósnia-Herzegovina.

A França, embora insistindo que pretende um enfoque construtivo da questão iraquiana com os EUA, fez saber em Setembro de 2003 que “não nega aos americanos a possibilidade de assumirem o comando de uma força multinacional no

Iraque, desde que esta se ponha ao serviço de um governo iraquiano rapidamente constituído sob a égide da ONU”. A clara vontade de separar a condução do processo militar e a condução do processo político contrariava, frontalmente, o plano americano para o Iraque... e para a região. Esta declaração do ministro De Villepin foi, aliás, imediatamente classificada de “interessante”, mas “irrealista”, pelo secretário de Estado americano Colin Powell. A alteração do figurino adoptado pelos vencedores no Iraque pós-Saddam não seria fácil. Em todo o caso, bastaram quatro meses de “vitória da coligação” para que o problema da reconstrução iraquiana regressasse, pela mão da administração americana, a território multilateral e onusiano.

 

“Reforma radical” da ONU

Ao mesmo tempo, Kofi Annan inaugurou a sua “rentrée” de 2003-2004 com um discurso de paladino da reforma “radical” da ONU. Refira-se, entre os seus desafios, que incluem fortes críticas ao ECOSOC (Conselho Económico e Social da organização):

• O Conselho de Segurança deixou de reflectir “as realidades geopolíticas do séc. XXI” e tem de se tornar mais representativo para que as suas decisões ganhem legitimidade;

• A Assembleia Geral, instância preferida pelos EUA nos anos 50, quando o Conselho vivia paralisado pelos vetos soviéticos, tornou-se depois um fórum anti-americano, quando os países em vias de desenvolvimento se aliaram aos satélites soviéticos, e tem hoje de se modernizar; as suas ordens de trabalhos estão pejadas de temas repetitivos e estéreis, muitas vezes só interessam a um pequeno número de Estados, e as suas decisões não suscitam, frequentemente, qualquer interesse exterior;

• O antigo Conselho de Tutela, adormecido bem como as suas funções, deve ser revitalizado ou extinto (qualquer mudança tem de ser aprovada por dois terços dos 191 Estados membros). Embora não desejando afastar os EUA da “reforma radical” da ONU — pelo contrário —, Kofi Annan sabia que as emendas francesas e alemãs à proposta americana para obter a ajuda internacional no Iraque faziam o seu jogo: essas emendas visavam suprimir o papel político de Paul Bremer e confiá-lo ao Secretário-Geral da ONU (ideia inicialmente avançada pelo México e pelo Chile). Kofi Annan seria então encarregado de acertar com o Conselho Governativo iraquiano um calendário de transmissão de poderes, sendo que todo o processo de transferência de soberania se deveria passar sob a égide da ONU.

Quanto ao financiamento da reconstrução, os dois países europeus propunham a criação urgente do IAMB, um conselho consultivo obrigado a verificar a transparência dos fundos e sua aplicação. Tudo propostas inaceitáveis, na altura, para Washington. Só o futuro dirá em que se traduziu o confronto esboçado em Setembro de 2003. Mas, seja qual for o compromisso a que ele tiver dado ou dê origem, um gesto foi feito para forçar o regresso dos EUA ao cenário multilateral — quer pelos próprios EUA, quer pelos seus opositores. E, em resultado da evolução complexa da separação entre poder militar e poder político nos processos de reconstrução nacionais, algo do que o “modelo afegão” tem de positivo para uma futura ONU pode, também, estar a fazer o seu caminho no Iraque.

 

Informação Complementar

Reconstrução versus Soberania

Se a exploração do seu petróleo correr como previsto pelos EUA, o Iraque ocupado vai ter um Orçamento de Estado de 13 mil milhões de dólares para 2004 — primeiro da era pós Saddam, à margem da dotação de 20 mil milhões directamente gerida pelo administrador Paul Bremer da CPA (Coalition Provisional Authority). A gestão Bremer previa gastar 6,6 mil milhões na rede eléctrica nacional, 5 na reorganização das forças armadas locais, (40.000 soldados, mais 90.000 polícias e guardas fronteiras), 2 na reabilitação da indústria petrolífera e o resto na multidão de obras públicas de todo o género de que o país precisa.

Os iraquianos têm consciência de que a maior fatia dos fundos da reconstrução vai beneficiar empresas americanas, embora a Bechtel, por exemplo, insista em que adjudicou a empresas locais 41 dos 75 contratos que assegurou com a dotação inicial de 680 milhões de dólares do Senado americano. E também é verdade que há uma empresa iraquiana — a Zagil Wireless — entre a multidão de concorrentes privados às três redes de telemóveis que a CPA quer instalar (no Norte, na região de Bagdad e no sudeste, em torno de Bassorá) e que deveriam estar operacionais em Janeiro de 2004.

O Orçamento iraquiano previsto para 2004 deve crescer — sempre segundo as previsões americanas — para 20 mil milhões a partir de 2005. Mas, desde o Verão de 2003, tudo depende da guerrilha que se instalou no país: a sabotagem do pipeline do Norte (que, até ao início da guerra, levava um milhão de barris de petróleo por dia até ao porto turco de Ceyhan) obrigou a baixar em mais de um terço as previsões de receitas para 2003.

Foi neste contexto que o presidente George W. Bush pediu mais 87 mil milhões de dólares ao Congresso para a reconstrução iraquiana, o que, somado aos 79 já aprovados, torna a operação na mais cara desde o Plano Marshall para a Europa, a seguir ao fim da Segunda Guerra Mundial. Note-se que, segundo a actualização das contas de Donald Rumsfeld, a principal fatia deste orçamento vai pura e simplesmente para a manutenção das tropas americanas no terreno: se o seu custo mensal era, a meio de 2003, de 3,9 mil milhões de dólares/mês, então serão precisos 46,8 apenas para as manter — aos níveis dessa data — em 2004. Mas muitas das despesas militares têm sido sucessivamente subavaliadas: por exemplo, um relatório do Conselho Nacional de Segurança americano prevê, baseando-se na experiência dos Balcãs, que será preciso meio milhão de homens para garantir a segurança no Iraque do pós-guerra, em vez dos cerca de 150.000 ali mantidos após o fim das “operações militares principais”, e que Rumsfeld garantiu durante meses serem suficientes.

O esforço para colmatar o “vazio” de segurança, a partir do Verão de 2003, deu sobretudo origem à proliferação de milícias de tipo libanês (um fantasma que nem Washington nem a UE querem ver reencarnado), particularmente notória entre os xiitas. As milícias xiitas, fiéis a distintas lideranças, vêm acrescentar-se aos “peshmerga” curdos (que os americanos tentam desesperadamente reconverter em bombeiros, guardas fronteiriços e florestais). E os sunitas, historicamente dominantes embora não maioritários, têm repetidamente afirmado que não aceitarão ficar para trás na corrida às armas. Se os sunitas estão habituados a dominar o país, os curdos sonham com um Estado próprio e os xiitas são tendencialmente próximos do Irão.

O próprio Conselho Governativo instalado por Paul Bremer, e a quem compete a tarefa de redigir uma proposta de Constituição para o novo Iraque onde as principais famílias étnicas e religiosas se sintam representadas, teme que os americanos acentuem a pressão a favor, não da “descentralização pragmática” que parecem defender, mas de uma solução política federal, que enfraqueceria a manutenção de um Estado-Nação forte e unificado (e qualquer poder central), afrontando o nacionalismo iraquiano e abrindo caminho ao agravamento das tensões entre as três principais componentes étnicas do país. Há que estar preparado para um tal cenário, pensam todos.

Uma das razões por que se acentua, entre muitos iraquianos, a esperança num futuro papel reforçado da ONU, é precisamente porque vêem nas Nações Unidas a única ajuda possível a caminho de uma soberania política congregadora, capaz de impedir a rotura interétnica e expressa num calendário que conduza rapidamente a eleições. Essa esperança começou também a ganhar peso entre membros da Liga Árabe, cada vez mais aberta à tutela política (provisória) da ONU no Iraque ocupado, desde que tal tutela seja acompanhada pela retirada progressiva, e sensível, das tropas ocupantes.

Também a importância da ONU na gestão de um eventual fundo a criar na conferência internacional de doadores marcada para Outubro de 2003 em Madrid tem, por outro lado, sido salientada por países da UE. O programa “petróleo por alimentos” expira em Novembro de 2003. O dinheiro do programa tem sido carreado para o DFI (Development Fund for Iraq). Mas, face às incertezas sobre o destino do DFI depois de Novembro, há países europeus que já exigem que a ONU passe a monitorizá-lo de perto, e que se opõem a que os EUA tenham acesso a ele, a não ser após auditorias fiáveis à sua situação.

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* João Maria Mendes

Licenciado em Filosofia pela Universidade de Lovaina (Bélgica). Doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa. Professor na ESCT e na UAL. Sudirector do Observatório de Relações Exteriores da UAL.

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