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Portugal na ordem jurídica internacional: notas históricas

António Hespanha e José Calvet Magalhães *

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Portugal nasce integrado na ordem política e jurídica da respublica christiana medieval. A integração de Portugal na ordem jurídica europeia decorre também da recepção do direito romano, ainda no reinado de D. Afonso Henriques, tal como era estudado nas novas universidades italianas. A partir do séc. XIII até meados do séc. XVIII vigorou em Portugal o direito comum, ou seja, o mesmo que vigorava nos restantes países da Europa Ocidental. Com o iluminismo (Marquês de Pombal) é enfatizado o “direito pátrio”, publicando-se a Lei da Boa Razão (1769) e a Reforma dos estudos jurídicos (1772).

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Portugal, do ponto de vista político e jurídico, nasce integrado numa ordem europeia – a da respublica christiana medieval. O elo de amarração portuguesa ao conjunto da cristandade é constituído pela Bula Manifestis Probatum (1179), do Papa Alexandre III (Pereira, 1979). Esta vassalagem de D. Afonso Henriques ao Papa trouxe como consequência o reconhecimento de um ordenamento jurídico que a Igreja ocidental estava a constituir e a codificar – o direito canónico (que, no séc. XV, estará reunido no Corpus iuris canonici), ao qual os reis de Portugal logo reconhecem a eficácia interna.

Na Cúria Régia de Coimbra, de 1211, os direitos da Igreja já são expressamente reconhecidos como limites da ordem jurídica e política da Coroa (Silva, 1991).

O direito canónico regulava uma parte muito significativa da vida – desde a organização interna da Igreja e sacramentos a matérias puramente civis em que a aplicação do direito temporal conduzisse a pecado, sendo formalmente recebido como direito do reino nessas matérias até, praticamente, ao fim da monarquia. Porém, a integração de Portugal numa ordem jurídica europeia não decorre apenas desta integração na respublica christiana. Decorre ainda da recepção em Portugal, logo na corte de D. Afonso Henriques, do direito romano, tal como era estudado nas novas universidades italianas, com base no Corpus iuris civilis bizantino (530-565). O contínuo fluxo de juristas, leigos e eclesiásticos, entre o reino e as universidades da Europa rapidamente fazem esquecer muitas das peculiaridades do direito peninsular, basicamente contido no último código visigótico e reflectido em costumes locais (Silva, 1991).

A partir do séc. XIII, Portugal vive plenamente no âmbito da ordem jurídica europeia ocidental – o chamado direito comum. Dizer isto, pode parecer pouco, mas é muito. De facto, não pode deixar de se notar que o direito comum era, não apenas a ossatura do direito, mas também a constituição política dos reinos (Hespanha, 2001), a forma da política e a própria base da mundividência cívica e política das repúblicas. Ou seja, ao adoptar o direito comum como enquadramento do seu direito – o que prolonga até à segunda metade do séc. XVIII –, Portugal definiu a sua constituição política; e fê-lo, basicamente, nos mesmos termos em que o fizeram os outros reinos da Europa ocidental.

 

Componentes próprios

Não é, portanto, fácil encontrar componentes próprios na constituição jurídica e política portuguesa de Antigo Regime. Portugal foi, é certo, um dos primeiros reinos da Europa moderna a compilar o seu direito específico (nas Ordenação afonsinas, 1446; Manuelinas, 1512 [v., por último, ed. facsim. dir. Dias, 2002]; Filipinas, 1604). Mas estas apenas constituíam um corpo jurídico diferenciado em poucos temas: organização dos órgãos do governo central; regime das doações dos bens da coroa; um ou outro contrato. O resto, que era muito, era direito comum. Nem o espaço ultramarino suscitou, como nas “Índias” de Castela, um direito específico, justamente porque a ordem jurídica europeia reconhecia um amplo pluralismo jurídico e político a todas as comunidades, mesmo às não europeias, salvaguardados que fossem certos princípios básicos da moral pública e da religião estabelecida (Hespanha, 1995).

 

Os tempos tardo-modernos e contemporâneos

A partir da segunda metade do séc. XVIII, todo este edifício do direito comum começa a soçobrar perante a afirmação de poder dos monarcas ilustrados e perante a nova imagem ilustrada do mundo político. Portugal não constituiu excepção.

As reformas do Marquês de Pombal tocam também o direito (Lei da Boa Razão, 1769, Reforma dos estudos jurídicos, de 1772). Apesar de toda a ênfase agora posta na supremacia do “direito pátrio”, o amarramento à Europa é ainda maior, pois, tanto na lei como na doutrina, o impacto do iluminismo político e jurídico é esmagador. A própria lei de 1769 dispõe que, em matérias chave para a modernização do país – como as matérias políticas, económicas, mercantis e marítimas – as leis dos países mais avançados da Europa se apliquem directamente em Portugal. É o que acontece, nomeadamente, com o Código Civil Francês de 1804, que passa a ser correntemente citado como autoridade legislativa até à promulgação do Código Civil português de 1867.

No plano do direito constitucional, a mesma osmose tem lugar. As constituições portuguesas, ou se encostam aos modelos franceses, ou, as mais mitigadas (como a Carta Constitucional de 1826), aos modelos monárquico-constitucionais belgas e alemães. A doutrina segue o mesmo caminho, reconhecendo como constitutivos da ordem política os princípios liberais, tal como tinham sido definidos por B. Constant, por F. Guizot (1787-1874) ou por Stuart Mill (1806-1873). No último quarto do séc. XIX e no princípio do séc. XX, lê-se por A. Comte (1798-1857) e por todo o sociologismo político e jurídico, oriundo, sobretudo, de França (maxime, É. Littré, [1801-1881]) e de Itália (Santi Romano [1875-1947]; C. Lombroso [1835-1906], E. Ferri [1856-1929]).

Da Alemanha, por sua vez, chegava o impacto do Estado social autoritário de Bismarck (“Economia Nacional” [G. v. Schmoller [1838-1917]) e “socialismo catedrático” (A. Wagner [1835-1917]) e do cultivo de uma dogmática jurídica e política formalista (P. Laband [1838-1918], B. Windscheid (1817-1892).

As gerações dos juristas anos 20 a 50 do séc. XX inspiraram-se, largamente, nestes filões, que também não contradiziam abertamente as soluções autoritárias do Estado Novo. Se, no plano do direito constitucional, o regime de Salazar se destacava claramente das tradições demoliberais de uma parte da Europa, no domínio dos direitos civil e, mesmo, penal, a sua proximidade com os direitos do resto da Europa era evidente (cf., para detalhes, Hespanha, 2002).

 

Informação Complementar

O contributo português para a Ordem Jurídica Mundial

Fora da Europa, os portugueses contribuíram também para a gestação de uma ordem jurídica mundial. Tendo sido levados pela expansão para fora do âmbito da respublica christiana, cedo se dão conta de que os fundamentos de legitimidade do direito europeu (basicamente, a religião e a autoridade do Papa) não podiam valer para povos estranhos a esta cultura. Adiantando-se ao próprio Hugo Grócio (1583-1645), juristas portugueses e espanhóis fundam o novo direito internacional em traços da natureza humana, como o carácter sociável do homem e a inelutável necessidade humana de comunicar. Daqui faziam decorrer a liberdade de comércio e a liberdade de pregação. Mas também, a ilegitimidade da conversão forçada, da guerra de conquista, da escravização dos nativos, da observância de uma ética e justiça no desenrolar da guerra.

Independentemente do que tenha sido a prática, obras como as de Luís de Molina (1535-1600), professor em Évora, ou de Baptista Fragoso (1559-1639) (mais, porventura do que a de Serafim de Freitas (1570-1633), célebre pela sua polémica com Grócio acerca do princípio da liberdade dos mares) constituíram a base de um novo direito internacional à escala de todo o mundo.

A este direito internacional doutrinal somou-se um variegado direito internacional pactício, feito de pactos e tratados estabelecidos com os potentados ultramarinos, da Insulíndia e Malásia à África e Brasil (cf. Biker (1873-1879), Júlio F. J., Collecção dos tratados, convenções, contratose actos públicos celebrados entre a Corôa de Portugal e as mais potencias desde 1640, Lisboa. Imprensa Nacional, 22 vols.; Saldanha (1998), António Vasconcelos, Vincere Reges et Facere. Dos Tratados como Fundamento do Império dos Portugueses no Oriente, Lisboa, F. Oriente).

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Portugal e o Direito Internacional

Embora alguns princípios de comportamento dos Estados no plano internacional, geralmente reconhecidos, remontem à Antiguidade, os internacionalistas consideram, usualmente, que o conceito de direito internacional, como um ramo distinto de normas jurídicas universalmente aceites, surgiu, no início da Idade Moderna, sobretudo a partir da obra fundamental de Hugo Grotius (1583-1645) De Jure Belli et Pacis, publicada em 1625, na esteira de teorias desenvolvidas pelos pensadores peninsulares Francisco de Vitoria (1488-1546) e Francisco Suarez (1548-1615).

Durante a Idade Média, os reinos cristãos reconheciam a autoridade temporal do Papa e as bulas e outros documentos pontifícios eram por eles aceites como fonte de direito internacional.

Afonso Henriques, ao proclamar a independência de Portugal e depois de ter obtido o reconhecimento do rei de Leão e Castela, seu antigo suzerano, não descansou enquanto não obteve o reconhecimento da sua realeza pelo Papa, o verdadeiro reconhecimento internacional, o que levou trinta e nove anos a conseguir e foi efectivado pela bula de Alexandre III Manifestis Probatum, de 23 de Março de 1179. Os reis de Portugal procuraram sempre legitimar a posse e uso dos domínios que foram descobrindo, como resultado das grandes navegações marítimas, no direito vigente naquela época, emanado dos decretos pontifícios. Já em 12 de Fevereiro de 1345, o rei D. Afonso IV dirigiu uma carta ao Papa Clemente VI, sustentando que as ilhas Canárias eram do domínio português, em virtude do princípio da “vizinhança”, desenvolvido pelos glosadores Baldo e Bártolo.

Na sequência dos descobrimentos marítimos, os reis portugueses obtiveram sempre o reconhecimento papal das novas terras que iam encontrando. O Tratado de Tordesilhas, de 7 de Junho de 1494, pelo qual Portugal e a Espanha partilharam entre si as terras que iam descobrindo, foi reconhecido pela bula Ea quae pro bono pacis, do Papa Júlio II, de 24 de Janeiro de 1506.

O direito internacional com base nos decretos pontifícios só era, naturalmente, reconhecido no âmbito do que se chamava a Cristandade. Com a Reforma e o surgimento dos nacionalismos europeus, no início da Idade Moderna, a unidade cristã quebrou-se e a autoridade temporal do Papa, como reguladora da vida internacional, passou a ser largamente contestada. Em breve os reinos cristãos se envolveram numa acesa e prolongada guerra, que durou trinta anos, em que a força passou a ser a única base da resolução dos conflitos entre os Estados europeus.

Foi o trágico espectáculo desta luta fratricida que levou Grócio a elaborar um compêndio de normas internacionais baseadas na razão e não na teologia. A guerra dos Trinta Anos terminou em 1648, data do chamado Tratado de Westfália que, na verdade, integra uma série de tratados, principalmente os negociados em Münster e Osnabrück. O tratado estabeleceu um conjunto de importantes princípios que passaram a constituir o quadro legal e político das relações inter-estatais da Idade Moderna. Entre esses princípios contavam-se o reconhecimento de uma sociedade de Estados baseada na soberania territorial; o reconhecimento da independência dos Estados cujos regimes jurídicos todos deviam respeitar; e o reconhecimento da legitimidade de todas as formas de governo e da liberdade de religião (cujus regio, ejus religio).

Em suma, estabeleceu-se um conceito secular das relações internacionais, substituindo o conceito medieval de uma autoridade religiosa universal agindo como árbitro final da Cristandade. Esta nova concepção deu origem às novas teorias da “razão de Estado” e da “balança do poder”.

Ainda antes de iniciada a guerra dos Trinta Anos, Grócio publicou, em 1608, anonimamente, um pequeno tratado intitulado DeMare Liberum (1), no qual difundia a doutrina que o mar alto era livre e que os portugueses não tinham direito algum sobre os mares com base em concessões pontifícias. A obra foi contestada por vários autores, entre os quais o português Fr. Serafim de Freitas que em 1623 publicou, em Valhadolid, um tratado com o titulo De justo imperio lusitanorum asiatico. A tese de Serafim de Freitas, baseada sobretudo no direito pontifício altamente contestado, não evitou que o princípio do “mar livre” viesse a ser universalmente reconhecido como princípio fundamental do direito internacional, sobretudo após o tratado de Westfália.

Em 1640, em plena guerra dos Trinta Anos, que envolvia a Espanha, Portugal libertou-se do monarca espanhol proclamando um rei português, D. João IV. Este procurou logo obter o reconhecimento internacional da sua realeza. O reconhecimento papal já não era bastante nem sequer viável, dada a influência que a Espanha tinha em Roma. Tratava-se aliás de reconhecer a “realeza” de D. João IV e não a independência de Portugal que, mesmo durante o reinado dos soberanos espanhóis, nunca deixara de ser juridicamente reconhecida. Através de uma vasta acção diplomática, D. João IV conseguiu obter em 1641-1642 o reconhecimento da Inglaterra, da França, da Holanda e da Suécia e, finalmente, após uma guerra que durou vinte e sete anos, os seus sucessores obtiveram o reconhecimento da Espanha em 1668 e da Santa Sé em 1670.

Pelo chamado Jay Treaty, celebrado em 1794, entre a Grã-Bretanha e os Estados Unidos da América, que definiu as fronteiras entre este último Estado e os territórios britânicos no Canadá, assim como a navegação no Mississipi, foi inaugurado o sistema moderno de arbitragem para resolver pendências entre Estados. Portugal recorreu, algumas vezes, com considerável êxito, a este método, muito popularizado na segunda metade do século XIX e princípios do século XX. Destacam-se as arbitragens favoráveis a Portugal que resolveram as pendências com os Estados Unidos da América, sobre um pedido de indemnização pela destruição do corsário americano General Armstrong, no porto da Horta, por uma formação naval britânica; com a Grã-Bretanha sobre a posse da ilha de Bolama e sobre o domínio da parte sul da baía de Lourenço Marques.

Na longa história de Portugal, muitos foram os casos em que diferentes governos recorreram ao direito internacional para procurar resolver problemas de interesse nacional, o que nem sempre foi favorável, visto que, em certas conjunturas históricas, por vezes a força dos adversários se sobrepôs ao direito. Em virtude da limitação de espaço, registo apenas os casos acima referidos, como episódios ilustrativos do recurso de Portugal ao direito internacional vigente.    

(José Calvet de Magalhães)

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1 - O “Mare Liberum Seu de Jure quod Batavis Competit ad Indicana commercio, dissertatio” constitui o capítulo XII do tratado De Jure Praedae, que se manteve inédito até 1868.

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* António Hespanha

Professor Catedrático na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Professor Catedrático convidado da UAL. Investigadorhonoráriodo ICS.

* José Calvet Magalhães

Embaixador. Professor Associado na UAL. Membro da Academia Portuguesa de História.

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Bibliografia

DIAS (2002), João José Alves, Introdução de Ordenações Manuelinas: livros I a V: Reprodução em fac-símile da edição de Valentim Fernandes (Lisboa, 1512-1513): Livro Primeiro, Lisboa, C.E.H.U.N.L..

HESPANHA (1988), António Manuel, notas de tradução a John Gilissen, Introduction historique au droit, Bruxelles, 1984, Lisboa, Gulbenkian.

Id. (1995), Panorama da história institucional ejurídica de Macau, Macau, Fundação Macau.

Id. (2001), “Qu’est-ce que la constitution dans les monarchies ibériques de l’époque moderne”, Themis, 4, 5-18.

Id. (2002), Historia de la cultura jurídica europeia. Síntesis de un milénio, Tecnos, Madrid.

PEREIRA (1979), Isaías da Rosa, “O papa Alexandre III e a bula “Manifestis probatum” A. P. H. – 8º centenáriodo reconhecimento de Portugal pela Santa Sé: bula“Manifestis probatum” – 23 de Maio de 1179, Lisboa, A.P.H., p. 115-141.

SILVA (1991), Nuno Espinosa Gomes da, História do direito Português: fontes de direito, 2ª edição. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.

 

Bibliografia (Informação Complementar)

E. Prestage, As relações diplomáticas de Portugal com aFrança, Inglaterra e Holanda de 1640 a 1668.

José Calvet de Magalhães, Breve história diplomática de Portugal.

Marcello Caetano, Portugal e a Internacionalização dos problemas africanos. Fauchille, Traité de Droit International Public, vol.I.

Paulo Merêa, Estudos de História do Direito – Novos Estudos de História do Direito.

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