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O direito internacional, esse estranho ser

José Manuel Pureza *

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O Direito Internacional surgiu no contexto dos Tratados de Vestefália de 1648, com base numa lógica da preservação da soberania dos Estados, da regulação mínima da paz e da guerra e da distribuição de competências entre os diferentes Estados. Ao longo da segunda metade do séc. XX, em consequência dos processos de universalização, o Direito Internacional começa a imiscuir-se no reduto soberano dos Estados em nome dos interesses comuns da comunidade internacional, passando de uma lógica orientadora do tipo bilateral-minded para uma lógica community-minded.

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A expressão “Direito Internacional” terá sido usada pela primeira vez por Jeremy Bentham, em 1780, em contraposição aos direitos nacionais. Não é um facto menor que essa expressão tenha vindo substituir uma outra, correntemente usada até então para denominar o conjunto de regras comum a todos os homens e deduzido da razão natural: o “direito das gentes”. E não é um facto menor porque nessa substituição vai sintetizada a grande variedade de perspectivas de análise do que tem sido a evolução histórica do Direito Internacional.

 

Evolução histórica do Direito Internacional

Em primeiro lugar, trata-se de uma evolução marcada por uma constância: a da necessidade/possibilidade de um ordenamento jurídico para o sistema interestatal. A fragmentação da paisagem político-jurídica em Estados-nação, simbolicamente originada nos Tratados de Vestefália de 1648, determinou a emergência de um corpo de regras de relacionamento entre os Estados centrado em torno de uma preocupação estratégica: a preservação das soberanias. O Direito Internacional nasce, portanto, vocacionado para ser garantia, acima de tudo, da horizontalidade e da descentralização da sociedade de Estados-nação europeus iniciada em Vestefália. Neste contexto, a garantia das soberanias territoriais, a regulação (por mínima que fosse) da paz e da guerra e da distribuição de competências entre os diferentes Estados constituíram o núcleo de preocupações centrais que deram razão de ser ao Direito Internacional.

O Direito Internacional tradicional, produzido e pensado por/para um tal sistema de relações sociais, apresentava quatro traços característicos fundamentais.

Em primeiro lugar, a sua interestatalidade. O Direito Internacional tradicional apresentou uma vocação marcadamente minimalista, oferecendo-se como destinado a garantir a coexistência entre Estados que procuravam sobretudo ignorar-se reciprocamente. Quer do ponto de vista de formas e fontes (primazia absoluta dos tratados bilaterais), quer do ponto de vista dos conteúdos das decisões estruturantes deste corpo de regras (de tribunais arbitrais ou mesmo judiciais), o Direito Internacional nascente aparece indissociavelmente ligado a uma lógica competencialista defensiva.

Em segundo lugar, a territorialidade. O Direito Internacional tradicional seguiu uma lógica segmentada de regulação, orientada pelo princípio estruturante do respeito pelas fronteiras e pela integridade territorial de cada Estado, tendo como consequência o primado da jurisdição territorial de cada Estado em matéria, quer de elaboração das leis quer de administração da justiça.

Em terceiro lugar, o bilateralismo. A reciprocidade foi a filosofia estruturadora de todo o Direito Internacional tradicional. Isso evidencia-se, desde logo, na sua elaboração, como se comprova pelo papel determinante atribuído ao consentimento dos Estados, quer expresso (nas convenções internacionais) quer tácito (na formação de normas de costume internacional).

Finalmente, uma quarta marca: o relativismo. A qualificação do Direito Internacional como um bric-à-brac, avançada pela literatura de referência, revela essa sua natureza débil. A relevância da vontade de cada Estado na definição de obrigações jurídicas internacionais, a discricionaridade da sua apreciação por cada Estado e, mais que tudo, a alegada neutralidade do Direito Internacional relativamente à orientação valorativa, quer da ordem internacional no seu todo quer da política interna dos Estados, são expressões cabais desta fisionomia relativa do ordenamento jurídico interestatal.

Os processos de universalização, socialização e humanização que marcaram a evolução do Direito Internacional ao longo da segunda metade do século XX, transformaram esse tradicional ordenamento competencialista num Direito Internacional “de regulamentação”, que penetra no reduto soberano dos Estados, limitando-o, em vista da satisfação de interesses comuns da comunidade internacional no seu conjunto.

São várias as grelhas de análise propostas pelos autores para captar esta mudança. Refiro duas: a do argelino Mohamed Bedjaoui, para quem o Direito Internacional oligárquico, dos Estados e de coordenação, terá dado lugar a um Direito da comunidade internacional, para os seres humanos e de finalidades; e a de Bruno Simma, segundo o qual a grande novidade imposta no Direito Internacional pela inovadora centralidade da protecção internacional dos direitos humanos, da protecção transnacional do ambiente e do combate por uma solução justa dos desequilíbrios Norte-Sul, é a superação do velho direito bilateral-minded, minimalista e fundado numa escrupulosa reciprocidade, por um direito community-minded.

São fundamentalmente três as evoluções que marcaram esta trajectória do Direito Internacional, de Vestefália para a era da globalização.

  • Em primeiro lugar, mudou a lógica de regulação internacional dominante. Para autores como Wolfgang Friedmann, René-Jean Dupuy ou Antonio Cassese, a um direito de mera coexistência acrescentou--se, sobretudo ao longo do século XX, um direito de cooperação activa. Quer dizer, o papel do Direito Internacional deixou de se limitar à garantia da paz negativa, feita de ausência de conflitos (delimitando competências entre os Estados) e foi gradualmente incluindo novas áreas de regulação que consubstanciam uma aspiração à paz positiva ou estrutural – económica, social, ambiental, etc. – as quais arrancam da interdependência crescente entre os Estados e apelam ao seu co-envolvimento, incluindo formas de partilha de soberania em quadros institucionais acordados. A um direito que procura as vias de “how to keep them peacefully appart”, foi-se adicionando um direito preocupado com “how to bring them actively together”.
  • Em sentido muito próximo, pode situar-se a transição de um direito liberal, oligocrático e descentralizado para um direito social, democrático e institucionalizado, como sugere Pastor Ridruejo. Quer dizer, enquanto o Direito Internacional tradicional se assumiu como um ordenamento competencialista, bilateral-minded e concebido tacticamente para satisfazer os interesses das potências dominantes em cada momento, o Direito Internacional contemporâneo exibe inúmeros traços de elaboração e aplicação institucionalizadas (de que as organizações internacionais são o principal suporte), evidencia preocupações de regulação material (dos direitos humanos à protecção do ambiente, até à promoção do desenvolvimento, por exemplo) e, com base nestes pólos, veicula a afirmação de uma ordem pública mundial. Esta evolução pode captar-se no novo registo não estritamente bilateral e recíproco que as regras internacionais nos novos domínios de regulação têm assumido. 
  • A terceira grande dinâmica de mudança sofrida pelo Direito Internacional situa-se no terreno teórico. Nas suas origens, este discurso normativo foi marcado pela tensão entre jusnaturalismo e positivismo. A primeira escola advogava que, na ausência de um legislador internacional, o Direito Internacional seria fundamentalmente uma expressão do direito natural que rege todas as relações humanas, incluindo as internacionais. Esta primeira matriz do pensamento jus-internacionalista vinca, portanto, o que Martii Koskenniemi designou por “padrão descendente” de justificação do Direito Internacional, isto é, a fundamentação da ordem jurídica internacional “na justiça, nos interesses comuns, no progresso, na natureza da comunidade mundial, ou em outras ideias semelhantes às quais é comum o facto de serem anteriores ou superiores ao comportamento, vontade e interesse do Estado”, “um código normativo (...) que efectivamente impõe de que modo um Estado pode comportar-se, qual pode ser a sua vontade e quais podem ser os seus legítimos interesses”. A esta matriz jusnaturalista cedo se contrapôs uma perspectiva positivista, centrada não sobre o dever-ser do Direito Internacional mas sim sobre a exposição do Direito Internacional positivado em normas escritas ou costumeiras concretas. A lógica positivista sublinha, portanto, o “padrão ascendente de justificação do Direito Internacional”, já que, de acordo com esta óptica, a validade e a eficácia das normas jurídicas internacionais hão-de fundar-se não em ordens de valores suprapositivas e distanciadas da realidade, mas, ao invés, radicar na proximidade para com os comportamentos correntes dos Estados e sobretudo para com os seus interesses. De algum modo é ainda sobre esta dupla raiz que se constrói a pluralidade contemporânea de posições teóricas sobre a regulação jurídica das relações internacionais.

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Pluralidade de abordagens teóricas

Esta diversidade assenta, segundo R. Beck, na resposta a quatro questões: que relação existe/deve existir entre as regras internacionais e a moral?; o que leva os actores internacionais a cumprirem as regras internacionais?; que influência têm os factores de política interna no comportamento face às regras internacionais? E, como são formuladas as normas internacionais? Assim se pode obter, segundo aquele autor, uma matriz construída segundo dois eixos. O primeiro incide sobre o método. Esse eixo tem como referências, de um lado, o empirismo (com o positivismo como sua expressão maior) e, do outro, a teoria crítica. O outro eixo da matriz estrutura-se em função dos objectivos fundamentais perseguidos por cada escola, indo das abordagens explicativas – centradas sobre a análise descritiva dos mecanismos de vinculação internacional dos Estados – às abordagens prescritivas, preocupadas principalmente com a enunciação das regras que obrigam no sistema internacional e com a proposta de novas regras, em função de critérios valorativos como a justiça, a dignidade humana ou a igualdade.

Esta cartografia plural das abordagens teóricas do Direito Internacional fornece uma base para a resposta à “pergunta fatal”: mas afinal que influência real têm as normas de Direito Internacional no comportamento efectivo dos Estados e dos demais actores principais do sistema de relações internacionais? A resposta a esta questão há-de ser também ela plural, oscilando entre os pólos extremos do desdém realista por um Direito Internacional visto como puro “epifenómeno” e o juridicismo que olha o mundo sob o prisma exclusivo do cumprimento ou incumprimento de regras. A. C. Arend identifica três grandes abordagens deste problema.

A primeira é a do realismo estrutural, em que pontuam autores como K. Waltz, R. Gilpin ou J. Mearsheimer. Nesse pensamento, não há lugar para o reconhecimento de força independente às normas internacionais. Com efeito, o primado absoluto da conquista de poder como forma de acautelar os interesses nacionais num contexto de permanente dilema de segurança conduz os Estados, de acordo com os realistas, a entender as normas internacionais como meros instrumentos de conveniência. Por outras palavras, o realismo estrutural aceita a existência de regimes e normas internacionais mas concebe o seu surgimento apenas quando servem os interesses dos Estados.

A segunda abordagem é, para Arend, a do institucionalismo racionalista, cujo nome mais destacado é indiscutivelmente S. Krasner, seguido por toda a escola dos regimes internacionais. Para esta abordagem, o Estado age como um actor racional, em busca da permanente maximização dos seus interesses. Deste ponto de vista, a vinculação a normas internacionais pode ser vantajosa ou conveniente para os Estados, por diversas razões: redução dos custos de transacção entre eles, estabilização das expectativas, promoção da cooperação a longo prazo e criação de condições para a imposição da aplicação das regras, numa base de reciprocidade e não de centralização institucional. Em síntese, para a escola dos regimes internacionais as normas internacionais têm real influência sobre o comportamento dos Estados mas tal influência é determinada, em última análise, pela ponderação racional feita pelos próprios Estados.

Finalmente, a proposta construtivista desenvolvida por autores como R. Cox, J. G. Ruggie, F. Kratochwil ou A. Wendt. Ao contrário da proposta realista, para a qual o poder no sistema internacional se afere por indicadores puramente materiais (poder militar, recursos naturais, capacidade económica), o pensamento construtivista sugere que a estrutura do sistema internacional é uma estrutura socialmente construída. O que significa duas coisas: em primeiro lugar, que há elementos não materiais, como as normas e as instituições internacionais, que integram a estrutura do sistema internacional tal como os elementos materiais; em segundo lugar, que os próprios elementos materiais só ganham sentido na estrutura do sistema à medida que os Estados desenvolvam sobre eles expectativas partilhadas através da interacção.

Como exemplo, Wendt refere que “500 armas nucleares britânicas são menos ameaçadoras para os Estados Unidos do que 5 armas nucleares da Coreia do Norte, porque os britânicos são amigos dos Estados Unidos e os norte-coreanos não, e a amizade ou inimizade é função de expectativas partilhadas”. Por outro lado, para os construtivistas a identidade e os interesses dos Estados não são dados fixos e muito menos predeterminados. Quer dizer, ambos são criados, pelo menos em parte, pela interacção e podem mudar por força da mesma interacção.

Enquanto os teóricos dos regimes internacionais condicionam a criação e desenvolvimento de instituições e regimes à respectiva coincidência com os interesses racionalmente definidos pelos Estados, os construtivistas admitem que a vinculação de um actor internacional a uma norma internacional pode mudar a sua identidade e a representação que faz dos seus interesses. Com base nestes dois pressupostos, a proposta construtivista sublinha que as normas internacionais fazem parte do sistema internacional out there. De duas maneiras. Em primeiro lugar, desempenhando uma função constitutiva do próprio sistema, conformando-o tal como é. As regras jurídicas que cumprem essa função são princípios de primeira ordem [first-order principles] sobre os quais assenta todo o sistema jurídico internacional. Em segundo lugar, as normas internacionais desempenham, na sua esmagadora maioria, uma função reguladora, sobretudo definindo competências e a sua respectiva articulação e atribuindo valor normativo a pretensões e acções dos actores internacionais.

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* José Manuel Pureza

Professor Associado na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Coordenador da Licenciatura em Relações Internacionais. Coordenador do Núcleo de Estudos para a Paz do Centro de Estudos Sociais.

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