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Janus 2004



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Portugal e a resolução pacífica de conflitos internacionais: o caso de Timor Leste

Patrícia Galvão Teles *

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A partir de 1983 a questão de Timor Leste passa da alçada da Assembleia Geral da ONU para o Secretário-Geral. Durante vários anos decorrem conversações entre este e os Ministros dos Negócios Estrangeiros de Portugal e da Indonésia, sendo suspensas em 1991, em consequência do massacre de Santa Cruz e reiniciadas somente um ano depois. A partir de 1995 as negociações ganham novo alento, realizando-se em 1999 um referendo ao povo timorense sobre a sua autonomia no seio da Indonésia ou a independência.

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Carta das Nações Unidas impõe a todos os seus Estados membros duas obrigações fundamentais paralelas: se, por um lado, os Estados devem abster-se de recorrer à força nas relações internacionais (art. 2º/4) devem, por outro, resolver todas as suas divergências por meios pacíficos (art. 2º/3).

Este princípio da resolução pacífica de conflitos é um dos princípios fundamentais do direito internacional contemporâneo, que antecedeu até a própria Carta das Nações Unidas e a interdição do uso da força.

 

Das Conferências de Haia à Sociedade das Nações

As Conferências sobre a Paz de Haia de 1899 e 1907 tiveram como ponto central a questão da resolução pacífica de disputas internacionais, dando lugar à adopção – sob a égide da primeira conferência – da Convenção de Haia sobre a Resolução Pacífica de Disputas Internacionais, revista durante a segunda conferência.

Esta Convenção, que ainda hoje se encontra em vigor para vários países, dispõe sobre os vários métodos de resolução de conflitos como, por exemplo, os bons ofícios, a mediação, as comissões internacionais de inquérito e a arbitragem, tendo criado mesmo um Tribunal Permanente de Arbitragem.

Sob o patrocínio da Sociedade das Nações foi adoptado em 1928 o Acto Geral para a Resolução Pacífica de Diferendos Internacionais, existindo também várias convenções de carácter regional sobre a matéria como o Tratado Inter-Americano de 1948, a Convenção Europeia de 1957 (da qual Portugal não é parte) e o Protocolo da Organização para a Unidade Africana de 1964.

 

A Carta das Nações Unidas

O Artigo 33.º da Carta das Nações Unidas dispõe que “as partes, numa controvérsia que possa vir a constituir uma ameaça à paz e à segurança internacionais, procurarão, antes de tudo, chegar a uma solução por negociação, inquérito, mediação, conciliação, arbitragem, via judicial, recurso a organizações ou acordos regionais, ou qualquer outro meio pacífico à sua escolha.”

Apesar de esta enumeração pretender ser apenas indicativa e não taxativa, os métodos elencados representam os meios aos quais as partes normalmente recorrem, abrangendo os meios político-diplomáticos, os meios judiciais e a resolução no âmbito de organizações internacionais.

É evidente que existe uma grande liberdade de meios para os Estados resolverem as suas controvérsias e é um princípio fundamental também nesta matéria que os Estados só aceitam um determinado meio através do seu consentimento prévio, quer seja ele expresso ou tácito.

Portugal, membro das Nações Unidas desde 1955, aceita hoje indubitavelmente o princípio fundamental da resolução pacífica de conflitos. A própria Constituição da República Portuguesa é clara ao afirmar no seu artigo 7.º/1 que “Portugal rege-se nas relações internacionais pelos princípios da independência nacional, do respeito dos direitos do homem, dos direitos dos povos, da igualdade entre os Estados, da solução pacífica dos conflitos internacionais, da não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados e da cooperação com todos os outros povos para a emancipação e o progresso da humanidade.”

 

A Declaração de Helsínquia e outras Declarações Políticas

A Declaração de Helsínquia de 1975, adoptada no âmbito da Conferência para a Segurança e Cooperação na Europa (CSCE, hoje convertida na organização OSCE), de que Portugal é signatário, veio reforçar o compromisso de Portugal para com a resolução pacífica de conflitos. O mesmo se pode dizer das resoluções relevantes da Assembleia Geral das Nações Unidas, como a Resolução 2625, de 1970, sobre os Princípios de Direito Internacional relativos às Relações de Amizade e Cooperação entre os Estados, e da Declaração de Manila de 1982 sobre a Resolução Pacífica de Conflitos.

 

Mecanismos de que Portugal é parte

Portugal é parte de várias e importantes convenções multilaterais que prevêem mecanismos de resolução pacífica de conflitos entre Estados e entre o Estado e os particulares (indivíduos ou empresas), designadamente judiciais, como o Tribunal Internacional de Justiça, o Tribunal Internacional do Direito do Mar, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e os Tribunais Arbitrais, incluindo o Tribunal Permanente de Arbitragem. Entre essas convenções contam-se, por exemplo, a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (1949), a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (1950), a Convenção de Washington sobre a Resolução de Disputas de Investimento (1965) e a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (1982).

Numa grande percentagem dos tratados bilaterais de que Portugal é parte, existe uma cláusula de resolução de conflitos que dispõe que as divergências que possam surgir entre as partes a propósito da interpretação ou aplicação do tratado devem ser resolvidas pacificamente entre as partes, mediante negociações diplomáticas. Certos tratados, como por exemplo os relativos à promoção e protecção de investimentos, prevêem a possibilidade de as partes e os próprios investidores recorrerem a mecanismos específicos, como, por exemplo, ao Centro Internacional de Resolução de Diferendos de Investimento (CIRDI), criado pela Convenção de Washington acima referida.

Portugal é também parte desde 1911 do Tribunal Permanente de Arbitragem, criado em 1900 e o primeiro mecanismo global para a resolução de litígios interestaduais, a que recorreu, por exemplo, para resolver um diferendo de carácter territorial com a Holanda em Timor-Leste (interpretação do tratado de fronteiras de 1904 relativamente a Oecusse-Ambeno), sendo a sentença arbitral datada de 25 de Junho de 1914.

O Tribunal Permanente de Arbitragem, que consiste essencialmente numa lista ou painel de árbitros de onde se pode escolher um determinado número para formar um tribunal arbitral, destinava-se inicialmente a resolver litígios interestaduais. Contudo, hoje em dia pode ser utilizado também para resolver diferendos com organizações internacionais e também empresas multinacionais. Se entre 1900 e o início dos anos 90 apenas 25 casos tinham sido objecto de decisão deste Tribunal, dos quais apenas dois após 1945, nos últimos dez anos tem-se assistido a um aumento de litígios que lhe foram submetidos.

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Portugal aceita também a jurisdição do Tribunal Internacional de Justiça, contando já com três casos nesta instância judicial (ver texto sobre “Portugal e o Tribunal Internacional de Justiça”), relativos ao direito de passagem em território indiano, ao caso de Timor-Leste e à actuação da NATO contra a ex-Jugoslávia em resposta à situação do Kosovo.

 

Informação Complementar

O caso de Timor-Leste como exemplo da resolução pacífica em acção: As negociações entre Portugal e a Indonésia sob os auspícios do Secretário-Geral das Nações Unidas

Em consequência da invasão e ocupação de Timor-Leste pela Indonésia em 1975, Portugal viu-se envolvido num complexo processo de resolução pacífica deste conflito, que envolveu o recurso à Assembleia Geral e ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, à Comissão dos Direitos do Homem, ao Tribunal Internacional de Justiça e um longo processo de negociações diplomáticas entre Portugal e a Indonésia.

Na Resolução 37/30 de 23 de Novembro de 1982, a Assembleia Geral solicitou ao Secretário-Geral das Nações Unidas que iniciasse “conversações com todas as partes directamente interessadas, com vista a explorar caminhos para alcançar uma solução global para o problema”.

Foi assim a partir de 1983 que a questão de Timor Leste passou da Assembleia Geral para o Secretário-Geral. Os “bons ofícios” do Secretário-Geral, exercidos através de conversações com Portugal e a Indonésia, estiveram durante vários anos longe de bem sucedidos. Estes encontros regulares entre os Ministros dos Negócios Estrangeiros dos dois países eram, no entanto, praticamente a única forma de relacionamento entre Portugal e a Indonésia, uma vez que as relações diplomáticas haviam sido cortadas em 1975. O diálogo entre as partes nem sempre foi fácil, dadas as divergências fundamentais quanto ao estatuto do território e o exercício do direito à autodeterminação.

Inicialmente, as conversações centraram-se em medidas de confiança entre as partes e em melhorar a situação no território. Por exemplo, foi negociada a autorização para o Comité Internacional da Cruz Vermelha levar a cabo as suas actividades humanitárias no território e também para uma visita de uma delegação parlamentar portuguesa, que nunca chegou a ter lugar. As conversações foram suspensas em 1991 em consequência do massacre de Santa Cruz, tendo sido reiniciadas apenas um ano depois.

A partir de então, o Secretário-Geral e os ministros dos Negócios Estrangeiros das duas partes discutiram em reuniões regulares o acesso e visitas ao território por parte das Nações Unidas e de organizações humanitárias e de direitos humanos e a promoção de um fórum de diálogo para os timorenses, para “trocar pontos de vista para explorar ideias de natureza prática que possam ter um impacto positivo na situação de Timor-Leste e contribuir para a criação de uma atmosfera que permita alcançar uma solução para a questão de Timor-Leste”.

Após 1995, rápidos progressos foram alcançados relativamente a uma solução global para o problema de Timor-Leste. As conversações tripartidas sob os auspícios das Nações Unidas começaram a ter lugar também ao nível de altos funcionários dos respectivos Ministérios dos Negócios Estrangeiros (SéniorOfficials Meetings) com o representante pessoal do Secretário-Geral. As conversações entraram então numa fase “mais substancial e confidencial”.

Em 1996, as partes começaram a discutir um eventual quadro para a solução da questão de Timor-Leste e outros assuntos relacionados, tais como a preservação e promoção da identidade cultural do povo timorense e as relações bilaterais entre Portugal e a Indonésia. A 12 de Fevereiro de 1997, o então recente Secretário-Geral Kofi Annan anunciou a nomeação de Jamsheed Marker, do Paquistão, como seu representante pessoal para a questão de Timor-Leste, que o passaria a representar em todas as funções de bons ofícios.

Jamsheed Marker visitou a Indonésia e Timor-Leste pela primeira vez entre 16 e 23 de Dezembro de 1997. Após a renúncia do Presidente Suharto em Maio de 1998, o Presidente Habibie e o ministro dos Negócios Estrangeiros Ali Alatas apresentaram uma proposta nova de uma autonomia especial para Timor-Leste e para a libertação de Xanana Gusmão e de outros prisioneiros timorenses se Portugal e as Nações Unidas aceitassem a integração de Timor-Leste na Indonésia. De acordo com a proposta indonésia, a autonomia limitada para a “província” de Timor-Leste não incluiria as áreas da defesa, negócios estrangeiros ou finanças. Portugal e os timorenses rejeitaram esta proposta tal como inicialmente formulada.

Contudo, uma nova fase nas negociações tripartidas sob os auspícios das Nações Unidas iniciou-se em Agosto de 1998, na qual as partes iriam discutir o estatuto especial de autonomia proposto pela Indonésia, tendo sido acordado que as negociações procederiam sem prejuízo das posições de princípio das partes. Portugal e a Indonésia concordaram também em envolver representantes timorenses nestas conversações (inclusive nas discussões sobre o estatuto político do território), e em discutir a redução de tropas presentes no território, a abertura de secções de interesses nos respectivos países e a facilitação de obtenção de vistos.

Durante a ronda de conversações seguintes, em Outubro de 1998, Portugal e a Indonésia discutiram duas propostas de autonomia formuladas pelas Nações Unidas e uma proposta para abertura de secções de interesses diplomáticos, inspirada num acordo semelhante entre os Estados Unidos e Cuba. No final de Janeiro de 1999, a secção de interesses portuguesa foi estabelecida nas instalações da embaixada holandesa em Jacarta, e a secção de interesses indonésia na embaixada tailandesa em Lisboa.

Apenas uns dias antes da abertura das secções de interesses no final de Janeiro de 1999, a Indonésia anunciou, para surpresa de todos, que se a proposta de autonomia fosse rejeitada pelos timorenses, estes poderiam então optar pela sua independência. Isto é, após um processo de consulta popular, a rejeição da autonomia levaria à independência do território, e esse processo de consulta deveria ser uma votação directa e universal supervisionada pelas Nações Unidas.

Tendo presente a possibilidade de um Timor-Leste independente, Portugal e as Nações Unidas começaram igualmente a planear um eventual período de transição para a independência. Um grupo de contacto foi criado pelo Secretário-Geral, reunindo os Estados Unidos, Japão, Austrália, Nova Zelândia, Reino Unido e Canadá, para supervisionar o processo de mediação sob os auspícios das Nações Unidas.

Na ronda de conversações de Fevereiro de 1999, a Indonésia reiterou que aceitava conceder aos timorenses a oportunidade de aceitarem ou rejeitarem a proposta de autonomia, mas opôs-se à possibilidade de realização de um verdadeiro referendo, sustentando que a consulta se deveria realizar por outros meios.

Finalmente, em Março de 1999, as partes concordaram que as Nações Unidas seriam responsáveis pela organização e supervisão de uma consulta popular durante o ano de 1999 que abrangeria tanto os timorenses que se encontravam no interior do território como na diáspora. As partes acordaram que a votação teria lugar em Julho ou Agosto e que se os timorenses optassem pela rejeição da autonomia, as Nações Unidas supervisionariam o período de transição para a independência, com a assistência de Portugal, a potência administrante, e de outros países.

A Indonésia ainda insistiu em não designar a consulta como referendo e várias modalidades foram ponderadas, desde um voto directo até ao envio de uma missão das Nações Unidas para apurar a vontade do povo ou a eleição de uma assembleia ou conselho timorense representativo que decidiria a aceitação ou rejeição da autonomia ou ainda uma votação itinerante pelo território e diáspora durante vários dias. Outro ponto relativamente ao qual as partes demoraram a chegar a um acordo dizia respeito à manutenção ou não da presença militar indonésia em Timor-Leste durante o processo de consulta.

Mas foi assim, após um longo processo de negociações diplomáticas, que Portugal e a Indonésia concluíram três acordos em Nova Iorque, a 5 de Maio de 1999 – sem prejuízo para as respectivas posições de princípio quanto ao estatuto de Timor-Leste –, que permitiram que os timorenses fossem finalmente consultados sobre o futuro do seu território: autonomia no seio da Indonésia ou independência.

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* Patrícia Galvão Teles

Doutorada em Direito Internacional Público pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais da Universidade de Genebra, Suíça. Professora Auxiliar na UAL. Consultora do Departamento de Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

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