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O sistema de resolução de litígios da OMC

Teresa Moreira *

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O Sistema de Resolução de Litígios da OMC aplica-se a todas as matérias objecto dos Acordos – Acordos sobre o Comércio de Mercadorias, o Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços e o Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Ligados ao Comércio –, ao contrário dos oito procedimentos do Acordo do GATT de 1947, prevendo maior rapidez de regras processuais e prazos, assim como a consagração da regra do “consenso negativo” para a aprovação de decisões pelo Órgão de Resolução de Litígios.

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Sistema de Resolução de Litígios (SRL) da OMC (1) “...é um elemento fulcral de garantia da segurança e previsibilidade do sistema multilateral de comércio” (artigo 3.º, n.º 2 do Memorando de Entendimento sobre as Regras e Processos que regem a Resolução de Litígios – Anexo 2 dos Acordos que instituíram a Organização Mundial do Comércio), desempenhando um papel preponderante no enquadramento jurídico do comércio internacional. Estabelece um quadro jurídico claro para a resolução de diferendos bilaterais que surjam ao abrigo de um Acordo OMC e permite ainda assegurar o respeito das obrigações assumidas pelos membros sob os Acordos da OMC.

O Memorando de Entendimento constitui-se, por um lado, como um acordo multilateral, i.e., vinculando todos os membros da OMC (2) e, por outro lado, como um acordo horizontal, na medida em que se aplica aos litígios surgidos ao abrigo de qualquer dos Acordos da OMC (Acordos sobre o Comércio de Mercadorias, incluindo o GATT de 1994, o Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços – GATS (3) e o Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio – TRIPS).

O actual sistema caracteriza-se por: instituir um sistema integrado, i.e., um sistema que se aplica a todas as matérias objecto dos Acordos, ao invés dos oito procedimentos diferentes do regime anterior consagrado no Acordo GATT de 1947 (artigos 22.º e 23.º e códigos adoptados no ciclo de Tóquio); prever regras processuais e prazos mais céleres para as diferentes fases do processo, contrariando anteriores expedientes dilatórios (verificados aquando da constituição de painéis e na adopção dos respectivos relatórios); consagrar a regra do “consenso negativo” para a aprovação de decisões pelo Órgão de Resolução de Litígios (ORL) relativas a constituição de painéis e adopção dos respectivos relatórios, bem como dos relatórios do Órgão de Recurso, em substituição da anterior regra do consenso positivo (4) – todas as partes terão de rejeitar a decisão para impedir a sua adopção; por institucionalizar, ex nihilo, uma instância de recurso (Órgão de Recurso); e por permitir a retaliação cruzada, possibilitando a suspensão de concessões numa área distinta daquela onde se verificou o litígio.

A aplicação destas regras cabe ao Órgão de Resolução de Litígios, que corresponde ao Conselho Geral da OMC, reunido para efeitos contenciosos, (vide o artigo IV, n.º3 do Acordo que institui a OMC), sendo composto por representantes de todos os membros da OMC.

O processo de resolução de litígios divide-se em duas fases: uma fase de natureza preliminar e informal, na qual as partes procedem a consultas com vista à regulação amigável do litígio, ou recorrem a processos clássicos como os bons ofícios, a conciliação e a mediação, à qual se segue a fase dita contenciosa.

Neste âmbito, é criado um painel ou grupo especial (5) a pedido do queixoso, que apreciará o litígio, ouvindo as partes e terceiros membros da OMC que tenham um interesse substancial na questão em apreço, podendo ainda recolher outros contributos junto de peritos ou organismos, e apresentará as suas conclusões sob a forma de um relatório escrito. Caberá, depois, ao ORL adoptar o relatório, que apenas será rejeitado no caso de um “consenso negativo”(6), que verificará a existência ou não de uma infracção às regras multilaterais, recomendando e/ou sugerindo medidas a tomar neste contexto.

O recurso (7), se interposto, limita-se às questões de direito e interpretações jurídicas, culminando, de novo, num relatório que abrangerá conclusões e recomendações dirigidas à parte demandada, a aprovar pelo Órgão de Resolução de Litígios (ver tabela sobre o prazo dos procedimentos). Nesta sequência, a parte condenada deverá adoptar as medidas necessárias para corrigir o incumprimento, de acordo com as recomendações e decisões do ORL, dentro de um prazo razoável, eliminando as medidas consideradas incompatíveis com as regras multilaterais.

Caso não o faça ou adopte medidas insatisfatórias, a parte queixosa pode negociar compensações comerciais – voluntárias e acordadas entre as partes – ou suspender concessões (retaliações), as quais deverão ser autorizadas pelo Órgão de Resolução de Litígios, de nível equivalente ao nível do prejuízo sofrido pela parte queixosa, que, em caso de desacordo entre as partes, será determinado através de um processo de arbitragem. As medidas adoptadas, de carácter temporário necessariamente, serão mantidas até que a parte infractora adopte as medidas necessárias para cessar a infracção.

Na linha da inspiração neoliberal do sistema multilateral do comércio e ilustrando o carácter intergovernamental da OMC, o SRL privilegia uma solução positiva e mutuamente aceitável para as partes, conforme com os acordos abrangidos (8), preferindo as compensações à suspensão de concessões pelo efeito positivo das primeiras no comércio internacional (maior acesso ao mercado bilateralmente negociado ao invés do aumento dos obstáculos às trocas) mas encarando ambas como medidas temporárias, de último recurso, que se espera pressionem a parte infractora a repor a legalidade, corrigindo a medida incompatível com as regras multilaterais.

A mesma influência está subjacente ao papel cometido ao Órgão de Resolução de Litígios – apesar da competência decisória e fiscalizadora, não actua ex officio, antes intervindo sempre em resposta a iniciativas dos membros da OMC. Decorridos mais de 8 anos (de 1 de Janeiro de 1995 a 1 de Maio de 2003), o balanço do funcionamento do SRL é bastante positivo, ainda que o número de casos submetidos tenha vindo a aumentar gradualmente, em resultado da crescente liberalização comercial e do aumento dos fluxos de trocas, mas também devido à credibilidade do sistema, que se afirmou pela sua eficácia (ver tabela intitulada “Queixas notificadas à OMC”).

Os principais utilizadores da resolução de litígios da OMC têm sido os principais blocos comerciais – Comunidade Europeia (CE) e Estados Unidos da América (EUA) (9), ainda que alguns países em desenvolvimento tenham igualmente participado de forma mais activa neste domínio, apresentando queixas contra os países desenvolvidos e entre si (ver tabela relativa aos Casos envolvendo a UE e os EUA). Nesta data (1 de Maio de 2003), a CE está envolvida em 30 litígios activos, sendo queixosa em 16 casos e parte demandada nos restantes 14, envolvendo estes casos países como a Argentina, os EUA, a Austrália, o Brasil, a Índia, a Coreia, o Peru e a Tailândia.

As queixas comunitárias contra os EUA concentram-se na infracção às regras da OMC em sede de instrumentos de defesa comercial (medidas anti-dumping, de salvaguarda e direitos compensatórios) maioritariamente, (por exemplo, a lei anti-dumping de 1916, as medidas compensatórias relativas a tubos de aço; a Byrd Amendment), da violação de direitos de propriedade intelectual (marcas comerciais, direitos de autor e patentes – por exemplo, a legislação norte-americana sobre direitos de autor, a secção 211 – caso Pernod-Ricard; Secção 337 sobre direitos de autor) e do recurso frequente a subsídios que visam apoiar os designados sectores tradicionais, mais sensíveis, como o agrícola e o siderúrgico, ou sectores com tecnologias mais avançadas (ex: Foreign Sales Corporation; Bird Amendment; British Steel.)

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Sublinhe-se que quase metade dos casos de não cumprimento das regras da OMC por parte dos EUA respeitam ao sector do aço (por exemplo: o caso da British Steel ou o Bird Amendment). (10)

Os potenciais litígios comerciais entre a CE e os EUA demonstram uma tendência para um diferente padrão dos diferendos transatlânticos, surgindo em áreas consideradas tecnológicas, às quais está subjacente considerável investigação científica (ex., Organismos Geneticamente Modificados e questões relativas à aviação civil): esta área é aquela onde se registam trocas comerciais bilaterais mais intensas, e uma concorrência acrescida, susceptível de gerar novas tensões nas relações comerciais entre os dois maiores parceiros comerciais. 

A segurança alimentar e a defesa do consumidor constituem, igualmente, novos temas subjacentes aos litígios comerciais transatlânticos (vejam-se as divergências de posições quanto aos litígios sobre as hormonas e os OGM).

Sublinhe-se, contudo, o esforço efectuado pela UE e pelos EUA, no sentido de dirimir alguns dos litígios que afectam as suas relações comerciais. Assim, em 2001, alcançou-se uma solução mutuamente aceitável para os litígios relativos ao regime comunitário de importação e distribuição de banana, e às medidas de salvaguarda impostas pelos EUA às importações de glúten de trigo originário da UE, os quais se arrastavam desde há vários anos. Estas iniciativas resultaram, em grande parte, da necessidade de os dois parceiros encontrarem uma plataforma de entendimento fundamental ao sucesso dos trabalhos na IV Conferência Ministerial da OMC.

 

A revisão do SRL

A revisão do SRL decorre da agenda incorporada dos Acordos de Marraquexe, tendo vindo a ser abordada desde a preparação da III Conferência Ministerial da OMC (Seattle,1999). O ciclo de negociações comerciais multilaterais em curso, a Agenda de Desenvolvimento de Doha, iniciado pela IV Conferência Ministerial da OMC (Doha, Qatar – Novembro de 2001), e a concluir até Janeiro de 2005, identificou a revisão do SRL como uma das matérias específicas a acordar até Maio de 2003.

As principais alterações previstas, tendo em vista aperfeiçoar as regras existentes e colmatar deficiências de base do sistema, referem-se:

• à redução dos prazos previstos ao longo de todos os procedimentos;

• à criação de um painel permanente para estabilizar esta estrutura e assegurar maior coerência do trabalho desenvolvido;

• à consagração do princípio da sequência, que clarifique a competência do painel inicial na apreciação da compatibilidade das medidas adoptadas pela parte condenada em execução das decisões e recomendações do ORL com os Acordos OMC, antes da possibilidade de iniciar as retaliações;

• à concessão de mais tempo aos países em desenvolvimento para que, quando queixosos, apresentem as suas primeiras observações;

• à sujeição a arbitragem e à aprovação pelo ORL da lista definitiva dos produtos alvo de retaliação e não apenas da equivalência entre o nível da retaliação e o nível do prejuízo (11);

• às alterações à moldura das compensações de modo a torná-las uma alternativa viável à suspensão de concessões (fixando um prazo mais dilatado para a sua negociação e a possibilidade de determinação do nível do prejuízo numa fase prévia e não apenas para fins de retaliação);

• ao acesso do público às sessões dos painéis, devendo, porém, ser vedado o acesso a sessões que lidem com informação confidencial;

• à apresentação de observações por partes terceiras (amicus curiae briefs) em termos semelhantes ao que se passa noutros Tribunais Internacionais, como é o caso do Tribunal dos Direitos do Homem.

 

Considerações finais

De um conjunto de regras precárias, de reduzida operacionalidade, evoluiu-se para um sistema ambicioso em matéria de eficácia, de celeridade e de coercibilidade, que pretende fazer face ao crescente alargamento do âmbito das relações comerciais internacionais modernas. Muito está ainda por fazer para se estabelecer uma verdadeira jurisdição comercial multilateral pois o sistema actual é dominado pelo carácter intergovernamental da Organização, atribuindo a imposição de medidas sancionatórias não ao Órgão de Resolução de Litígios, entidade imparcial, mas ao membro vencedor da contenda, que assim se limita a uma supervisão administrativa de um diferendo.

As presentes propostas para a revisão do SRL tentam, de algum modo, aperfeiçoar o seu funcionamento, promovendo uma maior transparência. Em face da complexidade e da especificidade das matérias contidas nos Acordos OMC, difícil será a evolução para uma jurisdicidade acrescida, um desafio que exigiria um consenso só susceptível de ser alcançado com uma revisão profunda das finalidades prosseguidas pela OMC e pela clara definição de um projecto comum com contornos diferentes dos actuais.

__________
1 - A Organização Mundial do Comércio, a mais recente organização internacional económica de vocação universal, foi criada em 15 de Abril de 1994, pelos países participantes na Conferência de Marraquexe, no termo do oitavo ciclo de negociações comerciais multilaterais realizado sob a égide do Acordo Geral sobre Pautas Aduaneiras e Comércio (GATT), de 1947, o ciclo do Uruguai (1986/1993). A OMC entrou em funcionamento em Janeiro de 1995, assim como os Acordos multilaterais relativos ao comércio de mercadorias – agora integrando no sistema os produtos agrícolas e os têxteis e vestuário e regulando as medidas de investimento relacionadas com o comércio – ao comércio de serviços, enquadrado, pela primeira vez, a nível multilateral e aos direitos de propriedade intelectual relacionados com o comércio.
2 - Contrapondo-se aos acordos plurilaterais que vinculam apenas os países que a eles adiram (ex. Acordo sobre Mercados Públicos).
3 - Sem prejuízo das normas especiais que possam surgir no âmbito de alguns Acordos específicos, como é o caso do Acordo sobre o Dumping (artigo VI do GATT de 1994), entre outros.
4 - No sistema anterior todas as partes tinham de estar de acordo com a decisão de condenação, incluindo o próprio, o que, naturalmente, inviabilizava a aprovação de decisões.
5 - 3 a 5 indivíduos altamente qualificados, cuja selecção é efectuada por acordo entre as partes na contenda ou, não o havendo, pelo ORL, com base numa lista de peritos previamente definida.
6 - A aplicação desta regra pode levar à curiosa situação em que apenas a posição da parte queixosa poderá ser suficiente para a aprovação da decisão. Sublinhe-se, no entanto que, como vimos, ao ORL cabe aprovar ou não o relatório do painel e, nessa medida, a decisão de condenação deverá estar contida no relatório do painel. Ou seja, a parte queixosa não é soberana sobre a decisão, pois esta alicerça-se num relatório de peritos.
7 - O Órgão de Recurso é composto por 7 especialistas, nomeados por 4 anos, 3 dos quais deverão analisar cada caso, o que lhe garante maior estabilidade face aos painéis, de composição muito variável o que se reflecte numa menor homogeneidade dos relatórios.
8 - Que tem sido alcançada num número significativo de casos – 40, desde 1 de Janeiro de 1995 (fonte: OMC, “Update of WTO Dispute Settlement Cases”, doc. WT/DS/OV/13, 1.5.2003).
9 - Tendo em conta os volumes de comércio e de investimentos entre a CE e os EUA e a intensa concorrência entre ambos.
10 - Fonte: Comissão Europeia, Direcção-Geral Comércio, doc. ref. 177/03, 26.3.2003.
11 - Esta proposta tem por objectivo contrariar a técnica de carrossel adoptada pelos EUA (introduzida pela aprovação de uma emenda ao Trade Act de 1974, designada Carousel Retaliation Act), que permitiria mudar, periodicamente, a lista dos produtos alvo de retaliação de forma a neutralizar os efeitos de eventuais medidas “anti-retaliação” levadas a cabo pela parte condenada, v.g. atribuição de subsídios estatais aos sectores afectados.

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* Teresa Moreira

Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Assistente Convidada da mesma Faculdade.

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