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Direito penal comparado: os sistemas penais e a pena de morte

Fernando Silva *

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Na última década acentuou-se o movimento internacional no sentido da abolição da pena capital à escala global, no seguimento das reformas penais europeias dos séculos XVIII e XIX. Os EUA, a China e o Irão representaram em 2002, 81% das execuções de sentenças de pena de morte. Na teoria do direito penal discute-se sobre a adequação da pena de morte aos objectivos das penas, considerando-se que não cumpre a função de dissuasão sobre a comunidade da prática de crimes, muito menos a função de recuperação dos que os praticam, resultando unicamente numa prática desumana e atroz.

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O debate sobre a pena de morte está longe de ter chegado ao seu termo, o conflito de posições acompanhou a história da humanidade, dividindo-se essencialmente entre os que rejeitam a adopção desta medida penal e os que o consideram instrumento fundamental de justiça penal. As reformas penais que nos sécs. XVIII e XIX se difundiram pela Europa traduziram claras intenções de promoção de uma progressiva abolição da pena capital. O séc. XX nesta matéria fica claramente marcado por uma corrente abolicionista, que conheceu uma evolução contínua, apenas afectada nos períodos correspondentes às duas grandes guerras mundiais, épocas nas quais a admissibilidade da integração da pena de morte foi sempre equacionada, nomeadamente para os crimes de guerra.

Na última década, o movimento abolicionista intensificou-se e a comunidade internacional foi sendo mais interveniente nesta matéria, procurando demover os Estados que recorrem a este instrumento de justiça penal, propondo soluções alternativas como medida penal a aplicar para os crimes cometidos, ainda que a sua gravidade justifique uma reacção penal mais rigorosa. Recentemente alguns casos tornaram-se mais mediáticos, desencadeando uma verdadeira onda de censura perante determinadas condenações e execuções.

Os países que têm sofrido maior pressão no sentido da abolição da pena de morte têm sido os EUA, essencialmente por se ter em consideração que a abolição desta medida penal no Estado americano influenciaria decisivamente os países que o acompanham na posição retencionista; a China, nomeadamente pelo elevadíssimo número de execuções que se regista neste país tão fechado à comunidade internacional (os dados oficiais dão conta de mais de mil execuções anuais); e os países islâmicos, sobretudo pela natureza dos crimes sujeitos a tal medida penal.

Um dos casos que tornou a desencadear a discussão em torno da pena de morte foi o de Amina Lawal, uma cidadã nigeriana condenada à morte pelo seu país por ter cometido o crime de adultério, não obstante ter sido absolvida.

A situação actual pode caracterizar-se por uma tendência generalizada para os Estados, de, pelo menos na prática, abandonarem a execução destas medidas penais, mas estando ainda a uma distância considerável de esta situação atingir expressão absoluta.

 

A pena de morte no contexto dos fins das penas

Na teoria do direito penal, a discussão sobre a aceitação ou a recusa da pena de morte situa-se num plano mais abrangente sobre a temática dos fins das penas. Esta problemática confunde-se com a própria origem e história do direito penal. Quando o Estado chama a si o poder de punir os cidadãos que cometam factos tipificados pela lei como crime, assume a procura de determinadas finalidades que fundamentem esta acção e que orientem as opções de política criminal. Podemos encontrar na aplicação e execução de uma pena funções que vão desde a ideia retributiva, até fins de prevenção geral, e de ressocialização do agente. Procurando simultaneamente a aplicação de um castigo a quem lesou bens jurídicos fundamentais através do cometimento de um facto cominado pela lei como crime que a pena funcione como elemento de dissuasão sobre a comunidade para evitar a prática de crimes, e ainda que o agente que cometeu o facto possa encontrar na medida penal aplicada um meio para a sua recuperação, cessando o estado de delinquência que o afecta.

O problema associado à pena de morte assenta no difícil reconhecimento da sua função de cumprir cabalmente qualquer finalidade, traduzindo uma pena desumana e cruel, falhando nas suas intenções.

Cesare Beccaria notabilizou-se como um dos principais defensores de um regime abolicionista, esforçando-se por demonstrar a inutilidade da pena de morte pelo exemplo de atrocidade que dá aos homens.

O Direito Penal deve pautar-se pelo princípio da Humanidade das Penas, obrigando a reconhecer que o delinquente, qualquer que seja o delito que tenha cometido, é um semelhante, um ser humano, que tem direito a ser tratado como tal e a ver proporcionadas as oportunidades de reintegração na comunidade. O que conduz obrigatoriamente à imposição de abolição da pena de morte, que nem permite nenhum tipo de ressocialização, nem sequer proporciona uma garantia de paz social. É esta a razão por que a maioria dos Estados não apenas a aboliu do seu sistema penal, como determinou a sua inconstitucionalidade.

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A abolição da pena de morte em Portugal

Portugal notabilizou-se por ser o país pioneiro em relação à abolição da pena de morte, bem como na renúncia à sua execução mesmo antes de abolida, permitindo enquadrá-lo com a maior relevância no quadro internacional pelo impulso que motivou relativamente aos outros países, estando necessariamente reconhecido como dos Estados que mais pugnou pela defesa do direito à vida. Uma análise de direito penal comparado centrada na abordagem sobre a atitude dos Estados face à pena de morte estaria incompleta sem a referência especial à evolução no sistema penal português.

O primeiro passo no sentido da abolição da pena de morte ocorreu no reinado de D. Maria II, quando, em 1852, foi aprovado o Acto Adicional à Carta Constitucional que, no seu art.º 16.º, estipulava a abolição da pena de morte para os crimes políticos. Em 1863 foi apresentada pelo deputado Ayres de Gouveia uma iniciativa parlamentar no sentido de estender a abolição da pena de morte a todos os tipos de crime civis, o que veio a ser acolhido pela lei de 1 de Julho de 1867, já no reinado de D. Luís, mantendo-se essa possibilidade para os crimes militares.

O ano de 1867 fica marcado pela intenção do Estado português em assumir uma atitude abolicionista da pena capital. Foi já após a instauração da República que a pena de morte foi abolida para todos os crimes (1911), embora esta situação sofresse um retrocesso com a participação de Portugal na I Guerra Mundial, que motivou a readmissão da pena de morte em caso de guerra, embora sem perturbar a caracterização geral do sistema acolhido anos antes. A última execução em Portugal data de 1914, mas relativamente a crimes civis não se regista nenhuma execução posteriormente a 1846.

Em 1976, a Constituição da República Portuguesa veio a consagrar definitivamente a proibição da pena de morte em Portugal para todos os crimes, passando a consagrar o art.º 24º: “1. A vida humana é inviolável; 2. Em caso algum haverá pena de morte”.

O sistema português passou a considerar no seu texto constitucional o que há mais de cem anos era prática: a não aceitação de condenações e execuções com a pena capital.

 

Análise comparativa dos sistemas em relação à pena de morte

A evolução no sistema penal português pode considerar-se modelar. Actualmente mais de metade dos países do planeta aboliram a pena de morte. A tendência ao longo do século XX foi a de erradicar a pena de morte. Muitos Estados, embora não tenham acolhido esta medida oficialmente, aplicam-na na prática. Encontramos quatro modelos possíveis em relação a esta matéria:

• Sistema abolicionista geral – que contempla a abolição da pena de morte para todos os crimes, independentemente da sua natureza; segundo os últimos dados oficiais, são 76 os países que se caracterizam por este modelo;

• Sistemas abolicionistas apenas para crimes comuns, mantendo excepções associadas a crimes de guerra ou militares, sendo 15 os países com este sistema adoptado;

• Sistemas abolicionistas na prática, que, apesar de não terem eliminado do seu sistema penal a pena de morte, por força de compromissos internacionais ou pura e simplesmente por questão de política de Estado, não fazem aplicar esta pena.

Qualquer destes sistemas corresponde a regimes que oficialmente ou em termos práticos, se qualificam como abolicionistas, por manterem uma atitude de rejeição em relação à pena de morte.

• Sistemas retencionistas – que mantêm e aplicam a execução da pena de morte, apenas variando os tipos de crime aos quais se aplicam, embora seja comum encontrarmos o homicídio como exemplo de crime sujeito a esta medida penal.

Apesar de esta ser a situação actual, atendendo à evolução mais recente, é de esperar um crescendo dos países nos quais se proíbe esta pena. Podemos falar de um movimento abolicionista internacional que se tem difundido e influenciado os sistemas, pois na última década a média dos países que anualmente promoveram a abolição da pena de morte para todos os crimes é superior a três. Desde 1985 foram mais de 50 os países que o fizeram; ao invés, no mesmo período apenas 4 países reintroduziram no seu sistema a pena de morte (o Nepal, as Filipinas, a Gâmbia e a Nova Guiné).

A pressão sobre os países retencionistas tem sido grande e movida não apenas pelos outros países mas também por organismos internacionais. Os EUA, a China, e o Irão são os países que mais têm sofrido esta influência; embora ocupem em conjunto 81 % das execuções oficiais durante o ano de 2002; durante este último ano conhecem-se 1.526 execuções, e 3.248 sentenças de condenação à pena capital. Portugal situa-se no quadro internacional como um dos países que mais contribuiu para a evolução no sentido de se manter e motivar a eliminação desta pena cruel, desumana e degradante dos sistemas jurídico-penais.

 

Acordos internacionais para abolição da pena de morte

Os Estados têm celebrado mesmo alguns tratados nos quais assumem o compromisso de não restabelecer a pena de morte, ou de a abolir, ou, não a abolindo, de não a aplicar na prática, e este acordos internacionais têm contribuído para diminuir o número dos países retencionistas, sendo mesmo possível encontrar situações em que a causa da não aplicação da pena de morte advém do respectivo acordo.

 

Informação Complementar

Análise comparativa dos sistemas em relação à pena de morte

Países abolicionistas para todos os crimes, e ano da decisão definitiva da abolição da pena de morte para todos os crimes:

Andorra (1990), Angola (1992), Austrália (1985), Áustria (1968), Alemanha (1987), Azerbaijão (1998), Bélgica (1996), Bulgária (1998), Camboja (1989), Canadá (1998), Cabo Verde (1981), Colômbia (1910), Costa Rica (1877), Costa do Marfim (2000), Croácia (1990), República Checa (1990), Dinamarca (1978), Djibuti (1995), República Dominicana (1966), Espanha (1995), Timor-Leste (1999), Equador (1906), Estónia (1998) Finlândia (1972), França (1981), Geórgia (1997), Grécia (1993), Guiné-Bissau (1993), Haiti (1987), Honduras (1956), Hungria (1990), Islândia (1928), Irlanda (1990), Itália (1994) Liechtenstein (1987), Lituânia (1998), Luxemburgo (1979), Macedónia (antiga Rep. Jug.) (1991), Malta (2000), Maurícia (1995), Moldávia (1995), Mónaco (1962), Moçambique (1990), Namíbia (1990), Nepal (1997), Holanda (1982), Nova Zelândia (1989), Nicarágua (1979), Noruega (1979), Paraguai (1992), Polónia (1997), Portugal (1976), Roménia (1989), S. Marino (1865), S. Tomé e Príncipe (1990), Seychelles (1993), República Eslovaca (1990), Eslovénia (1989), África do Sul (1997), Suécia (1972), Suíça (1992), Turquemenistão (1999), Ucrânia (1999), Reino Unido (1998), Uruguai (1907), Cidade do Vaticano (1969), Venezuela (1863);

 

Países abolicionistas, menos para casos excepcionais, normalmente associados a situações de guerra ou crimes militares, sendo abolicionistas para os crimes comuns, com referência ao ano em que foi decidida essa abolição bem como o ano em que foi executada a última sentença de morte:

Albânia (2000), Argentina (1984) Bolívia (1997, datando a última execução de 1974), Bósnia-Herzegovina (1997), Brasil (1979, ocorrendo a última execução em 1855), Chile (2001), Chipre (1981, a última execução ocorreu em 1962), El Salvador (1983, sendo executada a última pessoa em 1973), Fiji (1979, com última execução em 1964), Israel (1954, com a última execução a ser aplicada em 1962, Peru (1979);

 

Países abolicionistas na prática, incluindo países com acordos internacionais de não utilização da pena de morte, sendo países que não aplicam a pena capital, embora mantenham a pena de morte para crimes como o homicídio, sendo de crer que a política estabelecida é no sentido de não realizarem execuções, com referência à data em que foi praticada a última execução:

Butão (1964), Brunei (1957), Burkina Faso (1988), República Centro-Africana (1981), República do Congo (1982), Gâmbia (1981) Granada (1978), Madagáscar (1958) Maldivas (1952) Mali (1980) Nauru (desde a independência) Níger (1976) Papua Nova Guiné (1950), Federação Russa, Samoa (desde a independência) Senegal (1967), Sri Lanka (1976), Suriname (1982), Tonga (1982), Turquia (1984).

 

Países que mantêm a pena de morte:

Afeganistão, Argélia, Antígua e Barbuda, Arménia, Bahamas, Bahrein, Bangladesh, Barbados, Bielorrússia, Belize, Benim, Botswana, Burundi, Camarões, Chade, China, República Democrática do Congo, Cuba, Dominica, Egipto, Guiné Equatorial, Eritreia, Etiópia, Gabão, Gana, Guatemala, Guiné, Guiana, Índia, Indonésia, Irão, Iraque, Jamaica, Japão, Jordânia, Cazaquistão, Quénia, Kuwait, Quirguistão, Laos, Líbano, Lesoto, Libéria, Líbia, Malawi, Malásia, Mauritânia, Mongólia, Marrocos, Myanmar, Nigéria, Coreia do Norte, Omã, Paquistão, Autoridade Palestiniana, Filipinas, Qatar, Ruanda, Santa Lucia, São Vincente e Grenadinas, Arábia Saudita, Serra Leoa, Singapura, Somália, Coreia do Sul, Sudão, Suazilândia, Síria, Taiwan, Tadjiquistão, Tanzânia, Tailândia, Trindade e Tobago, Tunísia, Uganda, Emirados Árabes Unidos, Estados Unidos da América (embora esteja proibida em alguns estados), Uzbequistão, Vietname, Iémen, Zâmbia, Zimbabwe.

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* Fernando Silva

Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Docente na UAL. Doutorando em Direito.

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Dados adicionais
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