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Janus 2005



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Filosofia e Bíblia, raízes da Europa

Fernando Belo *

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Em filosofia, uma aporia é um impasse lógico, uma contradição insanável. Foi o que se alojou no coração da teologia cristã, quando, no passo do II ao III século da nossa era, Clemente de Alexandria e sobretudo Orígenes, filósofos convertidos ao cristianismo cruzaram a Bíblia, conjunto de narrativas, e a filosofia, argumentação gnosiológica sobre definições. Aquelas contam acontecimentos sucedidos (mas também ficções) nos seus contextos sociais e culturais: são portanto singulares. Pelo contrário, os textos gnosiológicos rompem com os contextos, escrevem fora do tempo, das pessoas e das circunstâncias, estruturam-se à base da cópula intemporal da definição (e equivalentes) que só conhece o singular ‘é’ e o plural ‘são’, o que os torna capazes de asserções de carácter geral ou absolutas, de relações intemporais e permanentes, de argumentos de autoridade, do tipo clássico o humano é um animal racional/todos os humanos são mortais.

A filosofia (como a lógica e as ciências) pode então pretender a um conhecimento novo das coisas da realidade, separadas estas do contexto que as originou e as sustém: conhecimento de razão, de causas e efeitos, das essências-substâncias dos vivos e dos entes em geral, conhecimento que permitirá hierarquizá-los através dos seus conceitos (as ciências modernas exibirão essa separação nos muros dos seus laboratórios). Também a alma (platónica) capaz deste conhecimento será ‘separável’ do corpo (antes deste nascer e depois dele morrer), o que dará o ‘sujeito’ e a ‘consciência’ às filosofias europeias.

A narrativa bíblica, escrita por centenas de mãos anónimas, conta uma história do Mundo e dos Hebreus, que começou no tempo com uma criação, que é datada pelas gerações sucessivas de antepassados desde Adão e que terminará um dia em parusia gloriosa e terrível. Deus, o actor principal da narrativa bíblica, é a fonte e o termo do Céu e da Terra, isto é do Universo e de todas as suas coisas. Há assim uma globalidade ‘contada’ que fornece, se se pode dizer, uma outra espécie de razão, impensável para os filósofos gregos, que a teologia cristã forjará a partir dos conceitos que estes lhe forneceram. A Igreja veiculou uma ‘mensagem’ sobre a ressurreição do Messias que anunciou desde o Pentecostes acima das particularidades linguísticas e dos usos antropológicos, sendo assim a teologia a alçar a filosofia grega ao ‘universal’ ocidental. Ora, segundo Aristóteles, não há ciência do singular, ou seja não pode haver ciência de acontecimentos históricos, como os relativos a Israel e a Jesus. Há aporia, portanto.

 

Grécia e Europa

Foi a Grécia que inventou a democracia e a filosofia, presentes fabulosos oferecidos à Europa vindoura, mas que esta recebeu em ordem inversa, quando era ainda bem bárbara aos olhos das civilizações de Bizâncio e do Islão: a filosofia e a literatura antigas, a Bíblia judaica e cristã, as instituições romanas, todas a velaram no seu berço. Onde Atenas foi da civilização democrática à filosofia os Europeus vieram da filosofia à civilização democrática. Usemos a terminologia marxista para contrariar a respectiva doutrina: na Grécia, a filosofia relevou da superestrutura, enquanto que na Europa ela penetrou na infraestrutura, levada pela teologia ao coração das relações de parentesco. Claro que os camponeses e os nobres guerreiros eram iletrados; mas tinham perto deles clérigos com um mínimo de formação doutrinal que levavam as pessoas a assimilarem com as narrativas da Bíblia sementes de filosofia (ontoteologia, disse Heidegger) que as grandes civilizações asiáticas ignoram: um só Deus causa-criadora de todos, almas imortais em cada um, os entes vivos e as coisas em geral podem ser ‘definidos’, separados dos seus contextos. Com resistências, é claro: santos, anjos e demónios das religiões populares, relíquias, imagens, rituais, promessas, a proliferação pré-monoteísta de santuários de santos e de nossas senhoras que se fazem guerra uns aos outros, e ainda as magias das feiticeiras, atesta a sobrevivência dum fundo politeísta de Deuses bárbaros, os seus rituais à mistura com os do cristianismo oficial.

O que se chama civilização implica sociedades numa certa área geográfica com ligações entre si. Nas sociedades antigas, essas ligações tornam-se visíveis nas guerras, alianças e vassalagens, nos casamentos entre filhos e filhas de reis, na comparação dos mitos e cosmogonias, no comércio de materiais raros e preciosos destinados aos grandes edifícios reais e religiosos e ao luxo das cortes monárquicas; são estas que trocam, nomeadamente no que está relacionado com as diversas técnicas, com a escrita, com o cálculo astronómico e religioso. É esta rede de desejos, guerras e trocas que deixa ver o que ultrapassa cada sociedade, o seu tecido de usos ancestrais diferente e parente próximo do tecido de usos dos seus vizinhos. A Cristandade pré-europeia aqui evocada é assim a conceber como matriz duma civilização comum a sociedades feudais bastante diversas: antepassados e línguas, santuários e tradições, reis e senhores, interesses e desejos, guerras sempre renascentes.

A Igreja de Roma é o laço visível desta civilização, incluindo as redes das grandes Ordens monásticas, o latim como língua de cultura, as Universidades e as Ordens mendicantes. Ao prolongar o trabalho dos Copistas anónimos, a quem nos liga uma dívida imensa, as Universidades escolásticas dão-se-nos como a primeira grande oficina do que será a civilização europeia. Emergindo da religião quotidiana, foi onde algumas grandes figuras das civilizações antigas (profetas, filósofos, poetas) se tornaram também nossos antepassados, antepassados-de-civilização, à mistura com os das linhagens de cada sociedade. Que importa que Tomás de Aquino tenha vindo de Nápoles, Occam de Oxford e Copérnico de Colónia, que Cristóvão Colombo fosse genovês, tenha aprendido a sua arte com os navegadores portugueses e descoberto a América ao serviço de Castela, que Galileu fosse italiano, Descartes francês, Locke e Newton ingleses e Leibniz alemão. É a obra deles que os torna o conjunto dos antepassados da civilização europeia. Antesde mais é isso a Europa.

O lugar da filosofia ontoteológica no começo da civilização medieval de que saiu a Europa revela-se assim decisivo: a filosofia foi a trave da escola medieval e em seguida da escola europeia até hoje, do ensino primário ao superior: todo o saber que a escola dispensa – definições, conceitos, argumentos, métodos –, saiba-se ou não, tem o selo filosófico, como testemunham as raízes gregas e latinas que esmaltam as nossas línguas europeias, “o sistema conceptual europeu” (Heidegger). Tal é a obra da filosofia: elaborar conceitos, abrir novas possibilidades de pensar, de agir, de viver, de instituir. Ora, isto é infra-estrutural, pese a Marx embora, já que foi este saber escolar que entrou na linguagem dos sábios europeus e tornou possíveis todas as instituições que a Europa inventou: científicas, técnicas, económicas, políticas, jurídicas, democráticas, etc. A diferença entre a Grécia e a Europa é pois que aquela não mudou essencialmente a sua base económica (agrícola, supondo escravos e a mão militar), enquanto que, aos nossos olhos, a obra da Europa consistiu na sua maneira de, a partir mormente da invenção das máquinas e depois da electricidade, transformar a paisagem social, criar cidades imensas, se revolucionar a si mesma completamente. De forma muito resumida e limitando-nos a certos aspectos da evolução do pensamento europeu, como foi tal possível?

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Do aristotelismo à Física

A teologia platónica e agostiniana, adequada a um cristianismo de monges, guerreiros e camponeses, sofreu uma transformação decisiva no século XIII, mormente pela escrita de T. de Aquino, que fez de Aristóteles o mestre-escola da Europa futura. A ultimação da elaboração do Monoteísmo deve-se à sua Sumateológica, da qual Occam desenvolverá uma crítica de cariz platónico. Pode-se com efeito compreender o nominalismo como o lugar textual em que o trabalho milenário de escrita e pensamento dos Antigos chega a um termo, ao desenho enfim em estado puro da ontoteologia: o Primeiro Motor (que na Physica aristotélica é totalmente alheio ao nosso mundo, ignorando-o) é agora, de forma indissociável, um com o Deus criador da Bíblia, é a causa primeira e última de todo e qualquer ente vivo ou coisa, que conhece directamente, sem conceito nem essência, na sua singularidade, cada cabelo da sua cabeça, cada pensamento escondido, eternamente presente à alma de todo e qualquer cristão, muito mais profundamente do que no deserto bíblico em que era necessário que Moisés servisse de mediador; ora isso estará na origem da representação filosófica na alma, no sujeito, sem já ter que passar obrigatoriamente (como no tomismo) pela mediação empírica e sensível: é o que nos é familiar como ‘ideia’, intenção, conceito (a linguagem fica de fora). Ora, esta representação mental jogou, com outros factores, na ruptura da física de Galileu com o aristotelismo.

Por um lado, esta presença da eternidade divina permite que o tempo, permanecendo do lado do acidental, possa ser tomado como uma dimensão mensurável, à semelhança da medida da terra (geometria) ou do espaço, o qual deixa de ser o lugar dos vivos e das coisas para ser apenas a nossa ‘extensão’. Como se os humanos, nos laboratórios, fossem exteriores ao tempo e ao espaço. Estes prestam-se assim ambos ao trabalho do matemático, do algébrico, cuja invenção da notação, na mesma época, fez dele uma escrita universal, susceptível de funcionar igualmente em cada língua particular sem ser alterada por ela, guardando indemne o seu carácter essencialmente operatório.

As medidas do tempo e do espaço prestam-se igualmente à experimentação técnica por esses verdadeiros artesãos que são Galileu e Newton, os dois grandes físicos do século XVII que fabricaram com as suas mãos os modelos dos seus laboratórios. Neles, universal e particular farão um nó indissociável, como se se tratasse dum deslocamento retorcido em que a aporia teológica encontrou uma verdadeira ‘solução’ mas secularizada, como Kant, mais newtoniano do que Newton, foi o primeiro a compreender. É certo que ele não pôde largar a matriz da ontoteologia, pôde no entanto retirar os seus ângulos estruturais do conhecimento: de Deus, da alma e da coisa-em-si (substância), a sua razão pura e crítica não sabe nada. Despedido assim, este triunvirato tinha todavia prestado serviços inestimáveis a esta ingrata ciência moderna: ao conceder a dignidade duma alma às mulheres e aos escravos do fim do império, foi o trabalho delas e deles, o trabalho das mãos, que foi também dignificado, como nunca nos filósofos gregos nem nos guerreiros aristocratas. A burguesia dos burgos (de que Marx faz um imenso elogio no Manifesto) releva desta dignificação cristã do trabalho bem feito como cuidado das coisas, dos instrumentos e do seu uso, sem os quais não teria havido Física. Arquimedes, por exemplo que Galileu admira, não escreveu nada da sua ciência de engenheiro porque era uma arte útil, portanto vil e mercenária. A própria matéria foi dignificada pelo acto criador na teologia tomista, que assim ofereceu à Europa um aristotelismo em que a matéria, ‘boa’, é susceptível de experimentação em vista do conhecimento laboratorial. Eis duas boas razões, entre antropologia, teologia e filosofia, para os Gregos não terem tido acesso à nossa ciência experimental.

 

Técnica: a solução da aporia

Ora bem, haverá que concluir que a técnica das máquinas, ligada essencialmente às ciências físicas e químicas, é o retorno inesperado da solução da velha aporia resultante do cruzamento das duas escritas em Alexandria: com efeito, a técnica é simultaneamente e indissociavelmente universal e histórica. Por um lado, é universal, já que se espalha por todos os países, quaisquer que sejam as suas línguas e usos, substituindo estes e tendendo à uniformização que se sabe; por outro lado, os seus made inJapan ou made in Portugal, as suas marcas, modelos e modas, exibem o seu carácter essencialmente histórico. Retorno inesperado, já que tanto a separação do Deus bíblico como a das almas intelectuais eram guiadas por preocupações éticas e tinham deixado desdenhosamente de lado os usos técnicos que os mitos da repetição ancestral protegiam. Ainda é possível que haja filósofos que se choquem se lhes acontecer lerem estes argumentos.

Os vários desvios ocidentais, de que assinalámos alguns, vieram acabar numatransformação generalizada como nunca sevira, nas grandes rupturas dos Modernoscom os seus antepassados, no queNietzsche chamou a “morte de Deus” e queKant como que pré-anunciou. Podemosdistinguir três vagas. A) a que diz respeitoao mundo intelectual: a reforma do ensinono início do século XIX, introduzindo nosliceus e nas universidades as jovens ciênciase expulsando Aristóteles do seu lugartradicional. B) a que diz respeito ao êxodorural para as novas indústrias dos ditosproletários (só têm ‘prole’, crianças quealimentar), cortados dos usos das aldeias  abandonadas. C) a terceira enfim, após aguerra, quando automóveis e toda a espéciede máquinas electro-domésticas mudaramdos pés à cabeça os usos quotidianos epromoveram as mulheres e os jovens àcidadania e à liberdade. Maio de 68 foi afesta desta emancipação. Em todos estestrês casos, o filho já não faz como o seupai, a filha como a sua mãe: terá sido aondeo sagrado ancestral sofreu o golpe maisforte.

 

Informação Complementar

A MORTE DE DEUS

A tradição política também é uma herança. A democracia, sem dúvida, vinda dos Gregos, mas há mais. Assim como o socialismo e a sua preocupação de justiça, não teria sido possível sem o “não haja pobres no meio de ti” (Deut 15, 4) e sem a utopia da república de Platão, também o individualismo e o liberalismo não seriam possíveis sem as almas, a de Platão e a cristã. O que parece ser confirmado pelo facto de nenhuma das grandes civilizações asiáticas ter chegado à modernidade sem passar pela importação da técnica ocidental, como se as suas escritas de ruptura com o sagrado mítico não tivessem conseguido ir além das experiências espirituais de cada um. Tudo se passa pois como se o Deus monoteísta tivesse sido a passagem necessária entre o sagrado ancestral de antanho e a nossa cultura moderna e técnica.

Um dos paradoxos da história que aqui tão rapidamente contei, o paradoxo de Galileu, é que a razão astronómica e física deste tenha posto em questão essas primeiras grandes ‘razões modernas’ de outrora, as quais tinham tornado possível esta razão moderna europeia: a ‘razão cristã’ (‘moderna’ na sua génese: a escrita de Paulo faz romper com a lei hebraica) tornara-se holística, religiosa, voltou ao ‘sagrado’ medieval, antes que a cisão protestante, assente na leitura da Bíblia, lhe tenha restituído a historicidade; a outra, a Physica de Aristóteles, ocupando-se dos seres vivos, não era adequada à era das máquinas.

A morte de Deus não é mais do que a laicidade moderna, a secularização. As próprias igrejas cristãs foram obrigadas – a católica oferecendo aliás fortíssimas resistências (desde a inquisição e do antimodernismo feroz do Syllabus) – ao aggiornamento, isto é a tentar substituir a velha catequese das crianças por instituições de cultura moderna da fé, tendo em conta a novidade dos tempos secularizados. A fé cristã parece ter que ser intelectualmente cultivada para poder durar e testemunhar, não poder mais contar com a cristandade sociológica que a sustentava.

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* Fernando Belo

Professor de Filosofia da Linguagem da Faculdade de Letras de Lisboa. Jubilado.

 

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