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Janus 2005



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A tendência para a privatização da violência

Pedro Pezarat Correia *

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Desde que, com o Tratado de Westefália-Münster de 1648, nasceu o modelo do Estado moderno na Europa que depois se estenderia à escala global, a gestão da violência como instrumento do poder, no interior dos espaços políticos através das polícias e face ao exterior através das forças militares, constituía encargo público. Por isso Max Weber caracterizou o Estado como “(...) única fonte do direito à violência” que “(...) reclama para si (...) o monopólio daviolência legítima”. Regra que conheceu excepções, mesmo na era do Estado jacobino e centralizado. Onde as tarefas militares e policiais eram algo promíscuas como, por exemplo, nos impérios coloniais, o Estado delegava nas grandes empresas majestáticas a administração da violência.

 

Origens

Modernamente foi na área interna, a partir da década de 50 do século passado, com o avanço do neoliberalismo e o progressivo esvaziamento do Estado, que começaram a surgir empresas de segurança privada, inicialmente orientadas para a prestação de serviços a sociedades não estatais, mas que progressivamente foram tendo por clientes organismos do sector público e estatal. O princípio do monopólio da violência legítima estava posto em causa e foi com naturalidade que, a partir da década de 70, começou a estender-se ao domínio até aí reservado às forças militares.

 

Causas

As razões invocadas para explicar a privatização da violência e a génese de Empresas Militares Privadas (EMP) têm como denominador comum a emergência do neoliberalismo nos finais do século XX e o consequente esvaziamento do papel do Estado em áreas que sempre lhe estiveram reservadas. E o que abriu a porta às EMP foi a proliferação de Estados fracos em África, saídos da descolonização pós II Guerra Mundial. Tendo as EMP, frequentemente, sede e dirigentes em antigas potências coloniais, eram instrumentos de manutenção de sistemas neocoloniais. Mais recentemente, no pós Guerra Fria, algumas preocupações se vêm ouvindo com o previsível desenvolvimento lógico e natural da profissionalização da instituição militar, que se foi generalizando e que indicia duas tendências, a mercenarização e a privatização.

Tendências que convergem nas EMP como consequência de dois fenómenos interligados: a globalização e o consequente esvaziamento do papel do Estado; a Revolução nos Assuntos Militares (RAM) e o fim do paradigma clausewitziano na conceptualização da guerra. Abordei esta última questão na Janus 2002 com o texto “Repensar a guerra: o fim do monopólioclausewitziano”. A guerra deixa de ser, apenas, “um instrumento racional da política nacional”, já não é, exclusivamente, “a continuação da política por outros meios”, não se confina já ao Estado-nação, a valores e interesses nacionais, a forças armadas nacionais. A conjugação da caducidade dos paradigmas de Weber e Clausewitz criaram o terreno propício onde as EMP puderam frutificar. A detecção das causas que para tal mais têm contribuído permite a seguinte sistematização:

• Causas que se podem classificar de morais ou anímicas têm a ver com a quebra do sentido nacional e o consequente esvaziamento da identificação das forças armadas como pertença da nação, único factor que honra a condição militar; a que se associa a perda do sentido de solidariedade, o individualismo sobrepondo-se ao espírito de sacrifício pelo colectivo, o alheamento de valores que ultrapassem interesses egoístas.

• Causas relacionadas com o sistema internacional, nomeadamente a fragilização de alguns Estados, incapazes, por razões endógenas e exógenas, de garantirem o seu próprio poder e a segurança das comunidades.

• Causas decorrentes da influência crescente do modelo neoliberal, político e económico, tornado paradigma da globalização; daí a opção pelo privado em todas as actividades, o esvaziamento do Estado, que deixa de ser o único gestor e o único cliente da violência organizada; impõe-se a regra da divisão internacional do trabalho, da exploração das oportunidades do mercado, com as EMP exibindo a marca tecnocrática do profissionalismo e competência, oferecendo mais eficácia, mais rapidez, maior economia, melhor disciplina.

• Por fim, causas institucionais, derivadas da introdução do modelo profissional de instituição militar que, levando a uma brusca redução das estruturas e efectivos militares, disponibilizou mão-de-obra e quadros qualificados e lançou no mercado enormes arsenais de equipamentos a preços de saldo; enquanto as forças armadas, vendo limitada a sua capacidade de auto-suficiência, se viam forçadas a recorrer a serviços e apoios exteriores.

 

Novo mercenariato

Quando, na década de 60, se deram as primeiras intervenções de grupos militares privados no interior de jovens Estados africanos, contra ou a favor dos poderes de facto e internacionalmente reconhecidos, a comunidade internacional não hesitou em classificá-los de mercenários, de soldados da fortuna ou até, mais depreciativamente, de “cães de guerra”. Tinham sempre por missão instruir, treinar, equipar, aconselhar e enquadrar forças governamentais ou rebeldes e, como exclusiva motivação, benefícios financeiros. Mas as suas actividades acabavam por servir, objectivamente, os países de origem dos seus chefes, apenas destes porque o resto do contingente era uma mescla de nacionalidades ou apátridas. Foi o que levou a que a ONU aprovasse, em 1977, um Protocolo Adicional à Convenção de Genebra, definindo a condição de mercenário.

Mais recentemente, quando começavam a proliferar as EMP, a Assembleia Geral da ONU aprovou a Resolução 44/34 de 4 Dezembro 1989, que reafirma a condição de mercenário do Protocolo Adicional, mas abrangendo, também, as empresas recrutadoras (cf. o texto “Caracterização de “mercenário”...”). A identificação das EMP com actividades mercenárias não é consensual, porquanto cobrem uma gama de tarefas muito heterogénea: a reestruturação e organização, a consultoria e assessoria, a prevenção da criminalidade e protecção de pessoas, instalações e bens, o apoio logístico, tecnológico e informático, o fornecimento de equipamentos bélicos, a formação e treino, até ao envolvimento operacional directo, sendo algumas destas tarefas mais linearmente identificáveis com actividades mercenárias do que outras. Esta indefinição assumiu maior acuidade quando EMP começaram a ser utilizadas em acções de manutenção da paz da ONU, o que terá levado o secretário-geral a sentir necessidade de clarificar o estatuto das EMP face ao conceito de mercenário.

Em 1996 nomeou um relator especial, o peruano Enrique Bernales Ballesteros, que produziu um estudo concluindo não deverem todas as EMP ser rigorosamente consideradas mercenárias. Torneando algum impacto negativo nas respectivas opiniões públicas, governos de países membros corresponderam a compromissos assumidos com a ONU contratando EMP. Assim aconteceu na Serra Leoa, Seychelles, Comores, Zaire, Libéria, Ruanda, Congo, Uganda, Sudão, Angola, Papua Nova Guiné, Sri Lanka, Oman, Arábia Saudita, ex-Jugoslávia, Colômbia. É uma óbvia consequência de a RAM ter “legitimado” conflitos que não são interiorizados pelas comunidades como correspondendo a interesses nacionais, inibindo os Estados de mobilizarem forças regulares apesar de serem já de modelo profissionalizado. E é também consequência da incapacidade revelada pela ONU para intervir rápida e oportunamente e de se confrontar com carência de fundos para as cada vez mais frequentes solicitações, obstáculos que as EMP se afirmam capazes de ultrapassar.

O próprio secretário-geral terá admitido, em 1999, o recurso a EMP para controlar confrontos nos campos de refugiados no Ruanda, mas a pouca receptividade encontrada levou-o a recuar. Contudo, alguns Estados-membros continuam a enquadrar as EMP no conceito de mercenários, logo insusceptíveis de serem legitimadas pela ONU. E há, de facto, uma contradição de raiz entre forças internacionais de paz da ONU, subordinadas ao CS, a estatutos de imparcialidade e que visam a resolução de conflitos, e EMP que nunca são neutrais face aos Estados que as contratam e cuja sobrevivência depende da existência de conflitos.

As maiores EMP são fundadas e administradas por personalidades militares e políticas altamente influentes nos Estados de origem e, frequentemente, actuam como agentes de extensão das suas políticas externas, camuflando acções de agressão ou intervenção de um Estado sobre outro sem passarem pelo controlo dos mecanismos democráticos dos Estados. Até os principais membros do CS/ONU, nomeadamente os EUA, que têm recorrido a serviços das EMP, vêem com reservas a possibilidade de ser a ONU a contratá-las, porque poderia constituir o precedente para a formação de uma força militar permanente da ONU, instrumento de um futuro Estado ou Confederação Mundial de que os EUA, actual potência imperial global, nem querem ouvir falar.

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Efeitos perversos

As EMP são produto de uma época, de um quadro das relações internacionais e da geografia política dominante. A perpetuação da violência serve os seus objectivos, pois é o ambiente que fornece perspectivas de mercado e as EMP são empresas multinacionais e é pela lógica do mercado que se regem. As apregoadas vantagens de eficácia, rapidez e baixos custos, actuando em paralelo ou em substituição de forças militares clássicas, contribui para desacreditar a instituição militar e para a emergência de tipos de poder alheios ou opostos ao próprio Estado. A tendência das EMP é para privilegiarem intervenções em zonas onde os seus serviços possam ser autofinanciados com a exploração de recursos locais, em detrimento de eventuais objectivos humanitários. Não sendo controladas por instâncias políticas estatais, nem mesmo por estruturas militares institucionais, não são politicamente responsabilizáveis. Risco agravado pelo facto de o domínio de alguma tecnologia de ponta facultar o acesso a equipamentos sofisticados, das comunicações, informática, ou mesmo das armas de destruição maciça, que podem ser colocados ao serviço dos mais variados clientes, incluindo rogue states ou mesmo redes internacionais do crime organizado.

Começam a surgir reticências sobre as “boas razões” para a utilização de EMP em acções de paz da ONU, principalmente quando equacionadas face aos efeitos perversos que evidenciam e para os quais os Estados foram despertados. Além de que as missões de paz exigem operações de cada vez maior amplitude e duração, para as quais as EMP não estão vocacionadas. E a verdade é que não há razões válidas para que, se as missões de paz forem definidas pela ONU sem ambiguidades e sem suspeitas de servirem interesses particulares de uma ou outra potência, não possam ser cumpridas por forças armadas regulares modernas.

 

Informação Complementar

CARACTERIZAÇÃO DE “MERCENÁRIO” DE ACORDO COM A RESOLUÇÃO 44/34 DA AG/ONU

Artigo 1º

É mercenário quem:

• É especialmente recrutado localmente ou no estrangeiro para combater num conflito armado;
• É motivado para tomar parte nas hostilidades essencialmente por lucros privados e promessas de uma parte em conflito, ou em seu nome, de compensações materiais substancialmente superiores às prometidas ou pagas a combatentes de patente e funções semelhantes das forças armadas dessa parte;
• Não é nacional de uma das partes em conflito nem residente no território controlado por uma das partes em conflito;
• Não é membro das forças armadas de uma das partes em conflito;
• Não foi enviado por um Estado que não é parte no conflito em missão oficial como membro das suas forças armadas.

Mercenário é também quem:

• É especialmente recrutado localmente ou no estrangeiro para participar num acto de violência concertado para: derrubar um governo ou minar a ordem constitucional de um Estado; minar a integridade territorial de um Estado;
• É motivado para nele tomar parte essencialmente por lucros privados e promessas de pagamento de compensações materiais;
• Não é nacional nem residente do Estado contra o qual tal acto é dirigido;
• Não foi enviado por um Estado em missão oficial;
• Não é membro das forças armadas do Estado em cujo território ocorreu o acto.

 

Artigo 2º

Quem recrutar, utilizar, financiar ou treinar mercenários, como definidos no artigo 1 da presente Convenção, viola os objectivos da Convenção.

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* Pedro Pezarat Correia

Oficial General Reformado. Docente Convidado do Curso de Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Conferencista colaborador do Instituto de Defesa Nacional e daUAL. Autor de várias obras sobre as áreas da geopolítica e da geoestratégia.

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Bibliografia

AGUIRRE, Mariano
– “A construção de um conhecimento complexo sobre conflitos armados modernos”. Fogo sobre os media. Coimbra: Quarteto Editora, 2003.

CHALIAND, Gérard; RAGEAU, Jean-PierreAtlas dumillénaire, la mort des empires (1900-2015), Paris: Hachette Littératures, 1998.

CORREIA, Pedro Pezarat – “Análise geoestratégica de Portugal”. Nação e Defesa n.º 101. Lisboa: IDN, 2002. “Repensar a guerra: o fim do monopólio clausewitziano”. In Janus 2002. Lisboa: Público/UAL, 2001.

CREVELD, Martin VanLa transformation de laguerre. Paris: Éditions des Roches, 1998.

KALDOR, MaryNew & old wars: organized violencein a global era. Cambridge: Polity Press, 1999.

LILLY, Damian – “The privatisation of peacekeeping: prospects and realities”. Disarmament forumn.º 3, s.n.: United Nations Institute for Disarmament Research, 2000.

SANTOS, Victor Marques dos – “A privatização da violência legítima”. Nação e Defesa n.º 98, Lisboa: IDN, 2001.

SCHULHOFER-WOHL, Jonah – “Should we privatise the peacekeeping?”. Washington Post, May 2000.

SHEPPARD, Simon – “Foot soldiers of the new world order: the rise of the corporate military”. New LeftReview, EUA, March/April 1998.

VAZ, Nuno MiraCivilinização das forças armadasnas sociedades demoliberais, Lisboa: Ed. Cosmos/IDN, 2002.

“As empresas militares privadas”. Jornal do Exército n.º 478. Lisboa: EME, Outubro 1999.

WEBER, MaxA política como profissão. Lisboa: Edições Universitárias Lusófonas, 2000.

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Dados adicionais
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