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Janus 2005



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A gestão de conflitos intra-Estado: a necessidade de novas abordagens

Carlos Branco *

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A eficácia do uso da força na gestão de conflitos intra-Estado tem dominado, na última década, o debate na comunidade dos especialistas em “Resolução de Conflitos”. Os argumentos utilizados pelos defensores dos méritos do uso da força tendem a valorizar apenas o fim das hostilidades e os aspectos malignos associados à violência, em detrimento da reconciliação das partes desavindas e da remoção das causas que estão na origem desses conflitos, sendo as intervenções militares na Somália, na Bósnia e no Kosovo ilustrativas, quanto a este aspecto, das profundas limitações do uso da força como um instrumento de “Resolução de Conflitos”.

A criação de sociedades multinacionais onde coexistam os diversos grupos étnicos é, presentemente, uma utopia. Mesmo quando sancionadas pelo direito internacional, as soluções encontradas limitam-se a produzir uma espiral de impasses, insatisfação e de problemas não resolvidos que se arrastam no tempo, susceptíveis de se reacenderem a qualquer momento. Académicos e praticantes têm dedicado muitas energias à “Prevenção de Conflitos” e ao Peacebuilding, os quais se tornaram campos centrais de investigação. Contudo, têm prestado pouca atenção aos aspectos da regulação da violência. Isto é, à sua eliminação, bem como dos meios violentos de prosseguir o conflito (1). O domínio da gestão dos conflitos intraestado tem primado pela ausência de inovação intelectual. A falta de um quadro conceptual coerente tem levado os mediadores a extrapolar as técnicas e os procedimentos de gestão da violência empregues nas guerras internacionais e aplicá-los aos conflitos intercomunais.

Continuando arreigados ao paradigma da combinação de diplomacia com força, o qual reflecte, em termos gerais, a velha escola da Guerra Fria em que os sujeitos dos conflitos eram os Estados, os mediadores de guerras civis têm falhado em ver as tremendas diferenças entre estes dois tipos de guerras, e a natureza da violência que lhes está subjacente. Urge, pois, desenvolver novas técnicas que substituam a lógica da soma zero criada pelo uso da força, por soluções em que predomine a lógica da soma positiva, vantajosas e aceites por todas as partes, que contribuam para a remoção das causas dos conflitos, e a construção de uma paz duradoura e sustentável.

 

Conhecer as sociedades

O processo da gestão da violência intercomunal tem de passar obrigatoriamente pela compreensão das sociedades assoladas pelo conflito, e pela análise rigorosa dos seus componentes estruturais, de modo a poder-se delinear estratégias de intervenção adequadas. Para além da compreensão do conflito e das suas causas, de um conhecimento pormenorizado da sua envolvente histórica, e de uma identificação clara dos objectivos estratégicos das partes, os mediadores necessitam de estudar profundamente as sociedades em questão. Um dos aspectos cruciais deste estudo prende-se com a caracterização dos principais actores da violência intercomunal: as elites, as quais competem pelo poder político, benefícios económicos e estatuto social, manipulando os distintos grupos da sociedade em seu benefício, incitando-os à hostilidade e à violência. Para além da história, a sociologia e a ciência política tornaram-se ciências de apoio fundamentais à “Resolução de Conflitos”. É necessário perceber como operam essas sociedades; como inter-reagem e se organizam as diferentes redes de poder (ideológicas, económicas, militares e políticas) nelas estabelecidas. Tornou-se imprescindível entender como é que estas redes se intersectam, sobrepõem, relacionam e influenciam mutuamente.

Por outro lado, deve-se ter em atenção a distribuição do poder social no interior de cada um dos partidos oponentes, e o modo de participação das diferentes elites no processo da decisão política. Isto é, como influenciam ou determinam as atitudes e os comportamentos das elites políticas. Na mediação de guerras inter-Estados, os mediadores negoceiam com as autoridades estatais, os únicos interlocutores representativos das partes em confronto à sua disposição. Nas guerras civis, o campo de manobra dos mediadores é muito superior. Os detentores formais do poder poderão não ser os únicos decisores políticos. No interior de cada facção, o poder encontra-se frequentemente fragmentado por diferentes subgrupos. As estratégias desenhadas pelos mediadores não têm tido normalmente em consideração a necessidade de se actuar sobre os protagonistas “não-políticos”, os quais poderão ser irrelevantes no caso de conflitos entre Estados, mas que não o são, de todo, nas guerras civis.

Seguindo os procedimentos adoptados na gestão de conflitos entre estados, os mediadores inclinam-se a dialogar exclusivamente com os líderes políticos, esquecendo o potencial de gestão de conflito de outras fontes de poder social (ideológicas, económicas e militares) que não as políticas (2). Os grupos envolvidos numa guerra civil tendem a organizar-se de um modo semelhante ao dos Estados de onde emergem, nomeadamente no que respeita ao estabelecimento de redes de poder no seu interior. Cada um deles passa a ter os seus próprios exércitos, as suas fontes económicas, as suas próprias igrejas, etc. Passam a integrar no seu seio uma imensa diversidade de redes de interacção social que se sobrepõem, influenciam e intersectam com maior ou menor intensidade.

O mediador deverá procurar “medir” cada uma dessas fontes de poder social, assim como identificar o seu grau de intersecção e a capacidade de influência mútua. Será preocupação primária do mediador aqueles que se encontram no topo daqueles poderes, isto é, as elites. Para além de se identificarem os detentores do poder político, é imprescindível identificar os actores “não-políticos” com capacidade para condicionar e influenciar as decisões políticas e, simultaneamente, mobilizá-los para intervir na dinâmica do processo de paz. As probabilidades de êxito do mediador aumentam consoante os aliados que consiga arranjar no interior da própria sociedade. O êxito da mediação da guerra civil em Moçambique, pela Comunidade de Santo Egídio, que culminou com a assinatura do Acordo Geral de Paz, em Roma, a 4 de Outubro de 1992, deve-se, em grande parte, à compreensão deste processo (3).

O processo de reconciliação foi o resultado de um persistente exercício de persuasão levado a cabo pelas elites religiosas junto das elites políticas, fazendo-lhes ver que tinham ambas mais a ganhar na mesa das negociações do que no campo de batalha: do clero anglicano sobre os responsáveis da Frelimo, e do clero Católico sobre os responsáveis da Renamo. O envolvimento, com sucesso, das elites religiosas num processo de reconciliação política que erradicou a violência da sociedade moçambicana, de um modo consistente, abrindo as portas à construção de uma paz sustentável e duradoura, é uma confirmação empírica de que se pode provocar a reconciliação política recorrendo à acção e à influência de grupos organizados, existentes na sociedade, sobre as elites políticas. Ainda à luz dos conceitos avançados, e em contraposição com o caso moçambicano, é possível identificar oportunidades desperdiçadas pelos mediadores, nos casos em que a gestão de conflitos falhou como, por exemplo, na Bósnia.

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A relevância dos actores “não-políticos”

A pouca preocupação colocada no estudo da sociedade bósnia levou a que se efectuassem leituras incorrectas da correlação de forças sociais e da respectiva distribuição de poder e, muito em particular, do modo como essa correlação evoluiu ao longo do conflito. A estratégia de mediação conjunta do conflito armado na Bósnia, levada a cabo pela ONU e pela CE, foi concebida como se se tratasse de uma guerra de agressão em que dois países – Jugoslávia e Croácia – invadiram um terceiro – a Bósnia –, em vez de uma guerra civil. À partida, as escolhas dos mediadores estavam profundamente condicionadas. Devido à lógica de guerra internacional que lhes foi imposta, teriam de lidar com chefes de Estado, como os únicos representantes dos Estados em questão, em vez dos chefes das facções beligerantes.

Este equívoco infligiu danos irreparáveis à acção diplomática. Não só os mediadores não identificaram como prioridade a compreensão do funcionamento interno das diferentes facções beligerantes, como a estratégia adoptada inviabilizou a potencialização dos actores “não-políticos” em prol do processo de paz. Isso foi particularmente óbvio no que respeita ao lado sérvio. Ao contrário do que pensavam os mediadores, a liderança bósnia sérvia era politicamente autónoma, não se encontrando subordinada a Belgrado. Contudo, tinha do seu lado os altos signatários da Igreja Ortodoxa, a qual historicamente foi sempre muito activa politicamente. Com a ajuda daquela foi possível aos bósnios sérvios reterem apoio popular na Sérvia, fundamental para contrabalançar as tentativas de isolamento político de Karadzic, levadas a cabo por Milosevic, particularmente evidentes a partir de 1993, quando aqueles não aceitaram o Plano Vance-Owen.

Os mediadores subestimaram a influência exercida pela hierarquia ortodoxa sobre a liderança bósnia sérvia, não conseguindo capitalizar tal facto em seu proveito. Por outro lado, poucos entenderam o significado da feroz competição entre políticos e generais bósnios sérvios pelo controlo dos mecanismos da decisão política. Os mediadores actuaram como se aqueles mecanismos fossem um domínio exclusivo das elites políticas, cuja figura central era Karadzic, o que não era verdade. Não houve a percepção de que no lado bósnio o poder político se encontrava fragmentado por diferentes entidades, e uma parte substancial dele encontrava-se nas mãos das elites militares. Mladic era, do ponto de vista político, mais influente do que Karadzic. Segundo esta linha de raciocínio teria sido mais sensato escolher Mladic como interlocutor ou, pelo menos, tentar envolvê-lo de um modo mais assertivo no processo negocial.

Milosevic foi dos poucos que percebeu e utilizou a influência exercida pelos altos dignitários da Igreja Ortodoxa sobre as elites militares e políticas bósnias sérvias. Foi com a ajuda da hierarquia religiosa, apesar do antagonismo e da hostilidade ideológica que os separava, que Milosevic conseguiu convencer os bósnios sérvios a aceitá-lo como chefe da equipa sérvia às negociações de paz. Uma avaliação incorrecta da correlação de forças no interior dos diferentes grupos, e do seu relacionamento com os grupos vizinhos afins fez com que os mediadores a influência de Milosevic sobre os bósnios sérvios e, consequentemente, desenhassem uma estratégia de mediação condenada ao fracasso. Ao não se encontrar em Belgrado mas em Pale a solução para a guerra, não fazia sentido que a mediação internacional tivesse concentrado os seus esforços em Milosevic.

 

Envolver as autoridades tradicionais no processo de paz

Em sociedades pré-industriais, onde coexistam estruturas tribais com outras formas de organização social mais avançadas, os mediadores devem utilizar o poder e a influência exercida pelas autoridades tradicionais sobre os protagonistas do conflito, tornando-os parceiros do processo de paz e da reconciliação nacional. Foi essa a estratégia da missão de paz da ONU na Somália (UNOSOM), na fase que precedeu o uso da força. Havia na sociedade somali um potencial de reconciliação a explorar, proporcionado pelos anciãos de todas a regiões do país, assim como vários antigos agentes sociais, políticos e administrativos, incluindo oficiais da polícia. Os acordos obtidos com os “Mais Velhos” a nível regional, os quais tinham um efectivo ascendente sobre o líderes das diferentes facções, ajudaram a reduzir gradualmente os combates e permitiram a distribuição da ajuda humanitária no interior do país. Com a ajuda dos anciãos, foi possível persuadir os líderes das facções a aceitaram a presença de 500 soldados da ONU em Mogadishu.

No Sul do país, apoiada pelos anciãos, com quem conseguiu estabelecer sólidas relações de cooperação e entendimento, a UNOSOM não só criou uma dinâmica de paz, como os levou a juntarem-se para discutir soluções para o conflito, promovendo novos dirigentes que pudessem ser alternativas credíveis aos líderes das facções. No Norte, obteve-se um importante consenso entre diferentes clãs e subclãs, e a sugestão da ONU para se organizarem administrações locais e regionais foi intensamente discutida e gradualmente implementada. Pretendia-se, assim, criar gradualmente um ambiente que conduzisse a conversações de paz, com o envolvimento de representantes de todas as regiões, escolhidos pelas comunidades locais e não tutoradas pelos chefes das facções, à semelhança daquilo que se chegou a fazer com os intelectuais representantes das diferentes regiões.

Esta dinâmica esboroou-se quando Nova Iorque, à revelia da UNOSOM, anunciou o envio de 3.000 soldados para o território sem informar os líderes dos países vizinhos, e sem consultar os líderes somalis e a comunidade de anciãos. Um posterior anúncio de que a ONU iria enviar reforços adicionais, uma vez mais sem consultar as autoridades locais, contribuiu decisivamente para a rápida deterioração das condições de segurança, colocando um ponto final nos esforços de conciliação dos diferentes grupos pela via diplomática.

 

Informação complementar

A BÓSNIA NOVE ANOS APÓS DAYTON

A intervenção internacional na Bósnia é uma demonstração pungente de que as guerras civis não se resolvem através da power politics tradicional. O fim da violência não significa que o conflito se encontre resolvido. O uso da força externa dirige-se normalmente aos sintomas e não às origens da conflitualidade, revelando uma profunda incapacidade para eliminar as fontes de incompatibilidade. Apesar da famosa Ponte Velha de Mostar ter sido recentemente reconstruída, as pontes entre comunidades continuam em ruínas, não podendo ser reparadas pela força. Apesar de um investimento internacional massivo, o regresso dos refugiados não ocorreu a um nível suficiente que permitisse restaurar a diversidade populacional do período pré-guerra. A situação económica é ruinosa e a maioria dos cidadãos está no desemprego.

A cooperação entre as elites dos três grupos é a excepção em vez da norma. Os políticos locais estão permanentemente em desacordo, e muitos deles ou são ineptos, ou mais ou menos abertamente opostos a tomar decisões que possam pôr em causa a sua posição no interior da respectiva comunidade étnica. A Bósnia continua a ser flagelada pela divisão de facto do seu território. O Estado comum existe mais no papel do que na prática. A intervenção militar internacional no período pós-Dayton proporcionou segurança, mas realizou poucos dos seus objectivos de longo prazo. A reconstrução económica tem sido mais superficial do que estrutural. A reconciliação moral e psicológica permanece um objectivo longínquo. No curto prazo, a reintegração política das três entidades bósnias, da maneira pretendida pela comunidade internacional, é pura e simplesmente irrealizável.

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1 Para informação mais detalhada sobre esta matéria ver, por exemplo, os relatórios da Amnistia Internacional (Serbia and Montenegro (Kosovo/Kosova) The March Violence: KFOR and UNMIK’s failure to protect the rights of the minority communities) e da Human Rights Watch (Failure to Protect: Anti-Minority Violence in Kosovo, Março 2004).
2 O conflito pode assumir expressões violentas e não-violentas. Utilizaremos neste texto a expressão “Gestão de conflitos” por ser a que se encontra consagrada na literatura da especialidade e corresponder a um conceito preciso, quando na realidade ela tem mais a ver com a gestão da violência. Sempre que for adequado utilizaremos o termo “violência” em vez de “conflito”.
3 Sobre as “Fontes de Poder Social” ver o trabalho de Michael Mann com o mesmo nome editado pela Cambridge University Press, Cambridge, 1997.
4 A explicação avançada neste texto para o sucesso do processo de mediação do conflito em Moçambique, liderado pela Comunidade de Santo Egídio, não é consensual. Há quem atribua, por exemplo, o fim do conflito armado em Moçambique ao desgaste provocado nos contendores pelos dezassete anos de guerra e, sobretudo, à convicção de que nenhuma das partes poderia vencer a outra, aquilo que se designa no jargão do Conflict Resolution “Impasse doloroso” (Hurting Stalemate).

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* Carlos Branco

Oficial do Exército. Doutorando em “Resolução de Conflitos” no Instituto Universitário Europeu.

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