Pesquisar

  Janus OnLine - Página inicial
  Pesquisa Avançada | Regras de Pesquisa 
 
 
Onde estou: Janus 2006> Índice de artigos > Conjuntura e tendências internacionais > Actualidade europeia e mundial > [ EUA: objectivos políticos sem meios militares adequados ]  
- JANUS 2006 -

Janus 2006



Descarregar textoDescarregar (download) texto Imprimir versão amigável Imprimir versão amigável


EUA: objectivos políticos sem meios militares adequados


Loureiro dos Santos *

separador

Depois da derrota dos EUA no Vietname, militares profissionais – all volunteer forces – substituíram os conscritos das Forças Armadas. São eles que combatem no Afeganistão e no Iraque, e têm de garantir a sustentação militar da estratégia global americana.

Nos anos 90, os objectivos estratégicos globais dos EUA eram prosseguidos prioritariamente com soft power . Para defender os seus interesses, recorriam basicamente à política externa, numa atitude multilateral, e mantendo os laços transatlânticos. Com o prestígio no zénite, usavam a pressão adequada, mas procurando a cobertura da ONU ou de outras organizações internacionais.

A estratégia militar que sustentava esta política visava a dissuasão, mais do que a intervenção, pretendia ter capacidade para combater duas guerras convencionais simultaneamente, e envolver-se em acções de peace-keeping e peace-enforcement , com apoio de aliados. As forças correspondentes provaram ter elevada capacidade de combate convencional, e envolveram-se em conflitos limitados de baixa intensidade nos Balcãs.

 

Bush e a nova estratégia global

Com as mesmas forças, a Administração Bush modificou radicalmente a estratégia global. Influenciada pelos neoconservadores, foi impulsionada depois dos atentados de 11 de Setembro de 2001. Um ano depois, é oficializada a “Estratégia de Segurança Nacional dos EUA” e concretizada: no discurso de membros da Administração (discurso do “eixo do mal”), numa diferente abordagem dos conflitos (caso da questão do nuclear da Coreia do Norte), e principalmente na invasão do Iraque, apoiada numa “coligação de vontades”, contornando o Conselho de Segurança. É uma estratégia global fortemente ideológica, que esquece o realismo que tantos êxitos proporcionou aos americanos e se destaca por: actuação unilateral; recurso a aliados conjunturais, em vez das alianças existentes; marginalização da ONU; utilização do hard power (força militar), sem ser em último recurso, e da guerra preventiva.

Na estratégia militar, acredita no poder das armas e no da tecnologia, para garantir invencibilidade no combate de elevada intensidade e obrigar outros países a vergar--se à vontade americana, sem necessidade de um grande e prolongado esforço, onde as forças terrestres (FT) desempenhem o seu tradicional papel decisivo.

 

Afeganistão e Iraque

Pouco tempo depois de terminadas as campanhas fulgurantes de derrube dos regimes afegão e iraquiano, a realidade impôs-se com toda a sua crueza.

Logo nos dias subsequentes à conquista de Bagdad, assistiu-se em directo à displicência com que os conquistadores olhavam para o caos e o vazio total de lei e de ordem, o que constituiu um erro táctico com repercussões estratégicas, seguido de dois erros políticos monumentais – o desmantelamento da administração e das forças armadas do país ocupado, que se traduziria na paralisação dos serviços essenciais e na potenciação da insegurança, lançando na resistência os quadros do regime derrubado.

A insurreição foi-se consolidando, criando uma situação tão insegura que a reconstrução do país ainda hoje marca passo. À luta baasista somou-se a resistência jihadista . O Iraque, onde não havia ligações ao terrorismo, tornou-se num íman para terroristas. Vêem aqui um campo de batalha essencial, no quadro da Jihad .

O pecado original da estratégia militar americana fora denunciado pelo general Shinseky, CEME dos EUA à data: efectivos demasiado reduzidos para a estabilização pós-conflito. Rumsfeld e Wolfowitz diziam que bastariam 50.000 militares. O general indicava mais de 300.000 efectivos, o que lhe valeu a demissão.

O número de Shinseki fora calculado, em função das experiências de peace-keeping e peace-enforcing , recentes e passadas (campanhas de pacificação). Niall Ferguson (1), a partir da contra-subversão britânica no Iraque, em 1920, e vendo as tropas no terreno em relação à população existente (na subversão, o objectivo das partes é influenciar a seu favor os corações e as mentes da população), chega à conclusão de que, na actualidade, seriam necessários cerca de um milhão de efectivos. Embora os modernos equipamentos permitam reduções, convém recordar que em 1920 não existiam os condicionamentos em sentido contrário do ambiente mediático e do (des)respeito pelos direitos humanos. Mesmo sem considerar o número indicado por Ferguson como orientação matemática, é clara a insuficiência dos cerca de 160.000/170.000 efectivos no Iraque.

O desfecho da contra-subversão, conduzida especialmente pelas FT, dependerá do seu número e eficácia. Esta é a questão decisiva. A sua evolução ditará o resultado das campanhas em curso. Tanto no Iraque, o que começa a ser claro, como no Afeganistão, o que ainda é pouco nítido.

A manobra militar ainda não conseguiu acabar com a insegurança. O que, aliado a outros erros específicos, tem inviabilizado o êxito das manobras político-psicológica e económico-social.

 

Insegurança e contra-subversão

Apesar de os americanos terem sido forçados a mudar a sua atitude inicial (voltaram ao multilateralismo), e dos progressos políticos no Iraque depois das eleições de Janeiro de 2005, todos os indicadores revelam que a insurreição se mantém perigosa. Os atentados terroristas aumentam e os baasistas continuam activos, embora se busque atraí-los para o debate político. A guerra civil aparenta ser o objectivo da subversão, para a qual parecem preparar-se a resistência sunita e as milícias curda e xiita, que de facto controlam o país, dividindo-o por fronteiras étnico-religiosas. As forças militares e policiais iraquianas, e os civis, são os alvos preferidos. A cadência de ataques continua no nível do ano passado ou ultrapassa-o.

A estimativa do número de insurrectos não diminuiu, mantendo-se alguns dos seus santuários e reconstituindo-se outros.

Os militares iraquianos formados pela coligação não têm a operacionalidade desejável, apesar do aumento de instrutores americanos. Nos finais de Julho, dos 100 batalhões iraquianos já constituídos (incluindo forças policiais), só 10 estavam completamente equipados, e apenas 14.000 militares se consideravam plenamente operacionais. Tão cedo, estas forças não terão condições de substituir forças americanas substanciais. A polícia, infiltrada por insurrectos e criminosos, tem pouco préstimo. A motivação é baixa. Apenas as milícias dos partidos, sem este problema, têm alguma operacionalidade, o que faz temer uma sangrenta guerra civil.

Topo Seta de topo

A insuficiência de meios e o fracasso do multilateralismo

As FT americanas existentes para sustentar a estratégia global definida e posta em prática por Bush saldam-se em 33 brigadas (de manobra) do Exército (2) (mais 37 da Guarda Nacional) e 4 divisões dos Marines (3). A tomada de consciência da sua insuficiência foi o principal motivo da alteração da política americana, tentando o apoio de aliados no terreno. Sem êxito.

Tornou-se inevitável desenvolver esforços para aumentar o Exército com 10 a 15 brigadas. Recorrendo a transferências de pessoal dos outros ramos; instruindo especialistas menos necessários, em especialidades críticas (condutores, polícia militar, assuntos civis, infantaria, etc.); abrindo mais vagas para voluntários; reduzindo os efectivos de cada brigada, em troca do reforço do potencial conferido por novas tecnologias; retraindo o dispositivo no ultramar.

Desde o princípio do ano que não se alcançam os objectivos de recrutamento. A diminuição de voluntários deve-se à crescente impopularidade da guerra; na sua maioria, os americanos já consideram a guerra do Iraque prejudicial à segurança dos EUA, manifestam-se e querem o regresso das tropas, o que pode reflectir-se nas eleições para o Congresso. Cresce o número de pais que aconselham os filhos a não se alistarem; sobem as queixas dos militares, especialmente dos reservistas e da Guarda Nacional (GN), sobre o prolongamento das comissões; acentua-se o desgaste provocado pela incomodidade do serviço longe das famílias, e os mortos e feridos em combate. A erosão moral alarga-se, abrangendo já numerosos jovens oficiais (sobretudo capitães) oriundos de West Point (4).

Têm sido tomadas medidas, algumas inovadoras, para atrair voluntários para o exército. Sem efeitos visíveis nem impacte imediato. Sobem os “prémios” pecuniários de recrutamento, especialmente para actividades críticas, chegando a atingir 100.000 dólares; duplicam as indemnizações por morte em campanha (250.000 dólares). Melhoram os incentivos ao serviço e os bónus de realistamento são cada vez maiores. Os gastos com pessoal constituem grossa fatia das despesas com as forças em operações (no Iraque, cerca de 5.000 milhões de dólares/mês), e há dificuldades logísticas.

Por outro lado, alarga-se a idade limite de alistamento nas Forças Armadas. Até há pouco, era 35 anos. Subiu para 39, na Reserva e na GN. Em Julho, o Pentágono decidiu propor ao Congresso a idade limite de 42 anos, para todos os ramos (activo e reservistas). O recrutamento estende-se a cidadãos com escolaridade cada vez menor, e já houve quem propusesse a adopção de normas que perduraram no Império Romano, e são típicas da legião estrangeira – conferir a nacionalidade norte-americana a quem combata pelos Estados Unidos, durante um certo período de tempo (5).

 

Objectivos estratégicos sobredimensionados

A mais importante constatação estratégica que se retira de tudo isto é que os Estados Unidos estão em muita dificuldade para sustentar militarmente os ambiciosos objectivos estratégicos globais estabelecidos. As suas FT encontram-se no limite, e sobre-estendidas. Os seus empenhamentos actuais não permitirão reagir a qualquer outra crise que exija uma resposta militar de média dimensão. Se houver que manter 100.000 efectivos no Iraque por mais quatro anos, a 101ª divisão aerotransportada (reserva geral) terá de participar nas rotações normais, e a duração das comissões poderá ter de deslizar.

Engajados como estão, os Estados Unidos precisam de modificar urgentemente esta situação, pois ela confere a iniciativa aos seus adversários, que podem aproveitar para retirar vantagens em áreas específicas, como o Irão e a Coreia do Norte.

Mas a situação apresenta-se ainda mais grave. As capacidades militares terrestres norte-americanas não permitem sequer manter o actual esforço durante muito mais tempo.

Os reservistas e a GN estão no limite das suas possibilidades. Já não há condições para que 40 a 45% dos efectivos do Iraque sejam constituídos por estas forças, pois quase todos os seus elementos já cumpriram o tempo de comissão definido. Com a rendição que está a iniciar-se, a sua percentagem passará para apenas 10/20%. 80/90% passará a ser de militares no activo, que entram já na segunda comissão, no Iraque ou no Afeganistão (alguns na terceira), com a expectativa moralmente desgastante de poder prolongá-la e/ou repeti-la, pouco tempo depois.

 

A retirada necessária

Esta constatação aconselharia fortemente a começar a retirar do conjunto dos teatros de operações, a partir dos princípios de 2006, forças terrestres suficientes para: por um lado, refrescar os combatentes, evitando a exaustão das unidades e permitindo o seu emprego operacional; por outro, reganhar capacidade para responder a outras crises que exijam resposta militar, e tomar a iniciativa, quando for caso disso. A primeira finalidade, por si só, obrigaria a retirar forças substanciais do Iraque. Aliás, como foi previsto no memorando britânico vindo a lume, em Julho passado, onde se pretenderia reduzir os efectivos no Iraque, de 176.000 para 66.000. Segundo planos americanos, 14 das 18 províncias iraquianas transitariam para a responsabilidade dos iraquianos.

Embora sem descartar a hipótese de ter de manter o actual esforço, esta previsão tem sido confirmada posteriormente por declarações de vários chefes militares dos EUA, entre declarações contraditórias da Casa Branca e do Pentágono. O primeiro-ministro iraquiano, Ibbrahim Jaafari, em 27 de Julho, disse que “tinha chegado a hora de planear a transição coordenada do controlo militar, das mãos dos americanos para as dos iraquianos”.

Veremos se a evolução política do Iraque (conclusão do processo de aprovação da Constituição, e eleições para o novo governo) se desenvolve positivamente. E se é possível isolar e conter a insurreição jihadista , e, ao mesmo tempo, organizar forças militares e policiais iraquianas que garantam a segurança. Ou as expectativas americanas são tão baixas que já não contemplam a garantia de segurança como condição prévia para a retirada?

No cenário mais favorável, será sempre conveniente manter um conjunto poderoso de unidades norte-americanas, como reserva operacional. O que irá de encontro a um dos objectivos estratégicos dos EUA, na área – dispor de forças numa posição central da região do Golfo, em condições de actuar nos países vizinhos. Mas não deve ser excluída a pior das hipóteses – o caos e a guerra civil no Iraque, com o consequente partido que o terrorismo islamista faria dum cenário destes.

Como diz um especialista: na impossibilidade de aumentar substantiva e rapidamente as forças terrestres norte-americanas, há que escolher entre duas opções: manter a actual situação e ter esperança; ou retirar forças do Iraque e ter esperança.

Topo Seta de topo

Informação Complementar

PODEM AS DEMOCRACIAS VENCER GUERRAS OFENSIVAS PROLONGADAS?

Está na ordem do dia a seguinte questão: será possível a uma democracia vencer guerras ofensivas prolongadas, com forças profissionais, num ambiente de globalização mediático? A resposta, se positiva, leva a outra: será possível, mesmo nos EUA, haver forças profissionais suficientes, para o conseguir?

Teoricamente, seria possível manter uma guerra ofensiva prolongada indefinidamente, desde que o número de profissionais fosse suficiente para manter a segurança, sem se exaurirem. O facto de serem profissionais torna os militares mais imunes aos efeitos mediáticos negativos que guerras deste tipo comportam. Só que esta hipótese parece dificilmente exequível, tendo em vista os custos exagerados que efectivos de tal monta implicariam. Foi o que sucedeu à França, na guerra da Indochina. Mesmo num país tão poderoso como os Estados Unidos, parece inultrapassável este poderoso condicionamento de natureza económico-financeira.

Resta o recurso ao draft . O serviço militar obrigatório é bem mais sensível aos efeitos psicológicos de cansaço produzido por guerras prolongadas. Também aqui, há exemplos históricos recentes que o demonstram, dos quais o mais citado é a guerra do Vietname. Mas tem a vantagem de ser economicamente mais acessível.

Uma democracia apenas se deve envolver em empenhamentos militares ofensivos prolongados, se e quando os seus objectivos forem entendidos pelos cidadãos como plenamente justificados, e isso exige a sabedoria da sua correcta escolha e adequada explicação, pela respectiva direcção política, não é tarefa fácil. Nestas condições, o recurso ao draft poderia resolver o problema.

Forças totalmente profissionais só terão êxito se os seus efectivos forem suficientes para evitar a sua própria exaustão. Poderá isto ser viável, sem a exaustão económica do país, o que provavelmente também conduzirá à derrota?

separador

1 “ Cowboys and Indians ”. The New York Times , 24 de Maio de 2005.
2 Call - Center for Army Lessons Learned. http://call.army.mil
3 Call - Center for Army Lessons Learned. http://www.usmc.mil
4 A este respeito, leia-se “ The Not-So-Long Gray Line ”, por Lician K. Truscott IV. The New York Times , 28 de Junho de 2005.
5 Max Boot, “ Defend America, Become American ”. Los Angeles Times , 16 de Junho de 2005.


separador

* Loureiro dos Santos

General reformado. Autor de vários livros sobre assuntos de Estratégia, História Militar, Segurança e Defesa, e Relações Internacionais. Colabora regularmente com os meios de comunicação social como analista destes assuntos. Foi professor do IAEM, do IAEFA e do ISCSP. Foi Director do IAEM, assim como Vice-Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, Chefe do Estado-Maior do Exército e Ministro da Defesa Nacional.

Topo Seta de topo

 

- Arquivo -
Clique na edição que quer consultar
(anos 1997 a 2005)
_____________

2005

2004

2003

2002

2001

1999-2000

1998

1998 Supl. Forças Armadas

1997
 
  Programa Operacional Sociedade de Informação Público Universidade Autónoma de Lisboa União Europeia/FEDER Portugal Digital Patrocionadores