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Da diplomacia clássica à nova diplomacia

Luís Moita *

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O actual sistema de representação externa dos Estados nacionais – rede de embaixadas, corpo diplomático, outras instituições oficiais no exterior – poderá estar inadaptado ou em vias de sofrer alterações profundas, tanto mais quanto corresponde a uma estrutura razoavelmente conservadora, cujas raízes mergulham numa tradição europeia de mais de três séculos.

O cardeal Richelieu, primeiro-ministro de Luís XIII de França, cria em 1626 o primeiro organismo similar aos nossos ministérios dos Negócios Estrangeiros, em pleno período da guerra religiosa dita dos “30 anos”, numa altura em que a política externa francesa se dirigia a evitar a hegemonia dos Habsburgos na Europa. Contrariando a tendência natural de afirmar a aliança entre as cortes católicas, Richelieu opõe-se à católica Viena, invocando justamente a raison d'État : os interesses nacionais da França prevaleceriam sobre a solidariedade religiosa.

Pouco depois, quando os Tratados de West- fália põem termo à guerra, estabelecem-se algumas das bases do moderno sistema europeu de Estados-nações, dotados de soberania sobre determinada população, ocupando determinado território.

Estavam assim criadas as condições para a formação de uma rede diplomática feita de representantes permanentes dos Estados, acreditados junto de outros, prolongando os antecedentes originários das repúblicas italianas da Renascença.

O sistema de embaixadas remonta assim ao ancien régime , desenvolvendo-se desde o tempo do absolutismo real do séc. XVII até ao “concerto europeu” que foi dominante no séc. XIX e se estendeu por grande parte do séc. XX. Aliás, o Congresso de Viena de 1815, convocado pelo príncipe austríaco Metternich para organizar a vida internacional europeia após a aventura napoleónica, consolidou as regras funcionais dessa diplomacia clássica, assente precisamente na igualdade soberana dos Estados.

Desde o ancien régime , o embaixador é o representante pessoal do soberano. A soberania está personificada no rei, este mandata os seus delegados, coordena directamente a sua acção, a ele o embaixador presta contas. Por vezes, é certo, existe uma diplomacia paralela conduzida por emissários especiais detentores do “segredo do rei”. Mas, em regra, a representação externa é única e centralizada. Ainda hoje, mesmo em regimes políticos onde o governo é responsável pela condução da política externa, é sobre o chefe de Estado que recai a função simbólica de nomear embaixadores e de receber as credenciais dos diplomatas estrangeiros. No passado, a ligação ao soberano era bem mais que simbólica, quanto mais não fosse pela importância então detida pelos casamentos reais nas alianças das cortes europeias e nos mecanismos da sucessão dinástica.

Entendida como representação pessoal de soberano a soberano, a diplomacia era assim essencialmente bilateral, ocupando-se das relações Estado a Estado. Em circunstâncias excepcionais eram convocadas conferências internacionais, já de natureza multilateral, mas de um “multilateralismo pontual”, na medida em que se dissolviam quando terminava a agenda que as motivara. Citámos acima a Conferência de Viena de 1815, poderíamos acrescentar a Conferência de Berlim de 1884-85 ou a de Versalhes de 1919-20, como exemplos relevantes de momentos altos e excepcionais da diplomacia multilateral europeia. Fora esses casos, dominava a relação bilateral e mesmo essa era restrita e limitada, em conformidade com o panorama internacional da altura. Basta ver, a título de exemplo, que antes de 1914, em Roma residiam apenas duas dezenas de embaixadores e em Washington apenas catorze! Comparativamente, a maior concentração verificava-se em Viena, Londres, Paris e Berlim.

Esta diplomacia clássica era marcada pelo secretismo. Desenrolava-se em ambiente palaciano, longe dos olhares indiscretos dos súbditos, divorciada das opiniões públicas e mesmo ausente dos debates parlamentares. Os próprios tratados internacionais escondiam, com frequência, cláusulas secretas, como se incluíssem acordos inconfessáveis. Como adiante veremos, a prática generalizada da diplomacia secreta foi fortemente criticada no após-guerra 14-18, sendo então responsabilizada por muitos dos erros das políticas externas europeias.

Neste quadro, o embaixador é então o representante de um poder soberano junto de outro poder soberano. Além dele, só o soldado goza de idêntica prerrogativa. Do ponto de vista clássico, as relações externas de um Estado circunscrevem-se à diplomacia e à guerra. Na situação inevitavelmente conflitual onde se afrontam interesses nacionais incompatíveis, o antagonismo entre Estados ou é susceptível de resolução por via negocial – e há lugar para a diplomacia – ou o uso da força armada se impõe – e a guerra surge com naturalidade. O diplomata e o militar personificam a representação exterior, ora pacífica, ora violenta. Esta concepção domina em absoluto a maneira tradicional de interpretar as relações internacionais, de acordo com o paradigma “realista” e o seu lógico entendimento da função diplomática.

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O retrato-robô do embaixador clássico

A análise do perfil-tipo do embaixador, digamos “clássico”, permite identificar alguns traços marcantes.

Antes de mais ele é um aristocrata. A generalidade dos embaixadores provém da corte, dos círculos afectos ao soberano. Por exemplo na Inglaterra, entre 1815 e 1914, só dois embaixadores (George Canning e Edward Grey) não eram lordes ou filhos de lorde; e uma verificação idêntica se poderia fazer para os casos francês, russo, piemontês ou espanhol… Em contraste com os postos consulares, habitualmente ocupados por comerciantes, os titulares das embaixadas são em regra fidalgos ou elementos das elites cortesãs.

O embaixador clássico integra assim um grupo social bastante homogéneo e elitista, por vezes fechado sobre si próprio e com propensão para etiquetas e protocolos. Habitualmente tem cultura cosmopolita e com certa frequência é oriundo dos meios literários, como provam nomes tão diversos e de tempos tão diferentes como Almeida Garrett, Chateaubriand, Saint-Jonh Perse ou Pablo Neruda.

Do seu retrato consta ainda uma particularidade que é a de falar francês, até há pouco a língua diplomática por excelência. Esta tradição remonta aos tempos de Luís XIV e ao ascendente então detido pela corte francesa, que tornou Paris no principal centro diplomático europeu, ao mesmo tempo que declinavam tanto o prestígio papal como a importância dos dialectos alemães, propiciando a afirmação do francês como língua veicular internacional.

O embaixador clássico possuía normalmente formação jurídica e até aos nossos dias os diplomados em Direito têm sido a grande fonte de recrutamento do pessoal diplomático. O relacionamento de Estado a Estado era visto como interacção de sujeitos de direito internacional, daí a vantagem da preparação na área jurídica, tanto mais que os tratados eram a forma corrente de contratualizar as relações inter estatais, quase sempre bilaterais, mais raramente multilaterais. Numa visão restritiva do conjunto das relações internacionais, privilegiava-se o conhecimento das normas jurídicas e dos procedimentos contratuais entre Estados soberanos.

E, como é sabido, as funções do representante do Estado no exterior consistiam essencialmente na observação dos acontecimentos políticos do país onde estava acreditado, em especial os que afectavam as relações bilaterais, na informação acerca dos mesmos e na troca de mensagens entre os governos respectivos. Na sua agenda podiam estar assuntos comerciais ou económicos, mas os temas dominantes eram os políticos e os estratégicos.

Em suma, o diplomata-tipo saído dos tempos do ancien régime garantia o grau máximo e quase exclusivo de representação entre poderes soberanos, no âmbito de uma relação bilateral e num estilo de secretismo próprio de ambientes palacianos, observando, informando, e transmitindo mensagens de conteúdo eminentemente político.

 

Superando a diplomacia clássica

A seguir à I Guerra Mundial, os contornos da diplomacia passam por mudanças relevantes. Como já referimos, as opiniões públicas eram então muito críticas em relação ao secretismo das práticas diplomáticas, reputado como um dos principais factores negativos que conduziram ao desencadear das hostilidades. Não será por acaso que o primeiro dos “catorze pontos” do presidente Wilson para a nova ordem internacional nesse pós-guerra era justamente o fim da diplomacia secreta. Reclamava-se a eliminação de cláusulas confidenciais nos tratados e a democratização dos temas internacionais, designadamente através do controlo parlamentar da tomada de decisões em matéria de política externa. Como é sabido, neste domínio percorreu-se um longo caminho, sem prejuízo de se manterem as práticas das discretas conversações de corredor, mesmo nas instâncias mais “abertas”.

Outra transição importante está no gradual aparecimento da diplomacia multilateral, que viria a transformar significativamente a fisionomia da comunidade internacional.

As organizações intergovernamentais, de carácter sobretudo técnico, surgem nos finais do séc. XIX, no rasto da criação da União Postal Universal em 1874. Mas é a Sociedade das Nações que inaugura em força a era do multilateralismo, abrindo um novo campo para o exercício da diplomacia. Doravante, a representação externa do Estado não mais se esgota nos contactos bilaterais e passa a actuar em plataformas de dimensão crescentemente alargada.

Em simultâneo, as interacções entre as sociedades multiplicam-se exponencialmente, os processos transnacionais tornam-se mais densos, as fronteiras físicas são abatidas por movimentos humanos, por fluxos culturais, por permutas de informação, por permeabilidades económicas – enfim, estamos longe dos Estados soberanos, fechados nos seus territórios.

Estas óbvias transições repercutem-se na natureza e no estilo da prática diplomática. O embaixador, delegado do soberano, perde o exclusivo da representação do país para o exterior. A seu lado, surge uma enorme variedade de agentes, de novos actores, de novas formas de representação. O relacionamento internacional deixa de se circunscrever ao nível de Estado a Estado para se alargar à escala de sociedade a sociedade.

Por seu lado, a agenda do trabalho diplomático também se alarga substancialmente. Para além das tradicionais funções dominadas pelos assuntos políticos bilaterais, as relações exteriores abrem-se aos mais diversos domínios e integram mesmo as chamadas questões globais, por imposição das próprias dinâmicas objectivas.

Pouco a pouco, ganha corpo uma nova diplomacia, uma diplomacia cujos agentes já não são apenas os embaixadores clássicos, uma diplomacia que se confronta com as opiniões públicas e as instituições democráticas, uma diplomacia que não se limita ao bilateral e se desenvolve no multilateral, uma diplomacia, enfim, que já não trata apenas da política interestatal mas se interessa por múltiplas frentes, com relevo para a problemática económica e incluindo a “gestão da globalidade”. No caso peculiar dos países actualmente membros da União Europeia estas transições são acrescidas de um outro factor que é o da emergência de uma política externa comum.

Face a tais mudanças, importa desenvolver estas novas dimensões, o que se fará no texto seguinte.

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Informação Complementar

ANTECEDENTES HISTÓRICOS

Desde que há comunidades políticas organizadas existem processos de representação de centros de poder junto de outros. Nos tempos passados, essa representação era exclusivamente pontual e fazia-se através de delegados ou enviados especiais, mandatados para uma missão concreta. Tinham designações muito diversas, ora núncios, ora legados, mas acabou por prevalecer o termo derivado do latim medieval ambactiare – embaixador, o que anda em missão.

Desde a Antiguidade são conhecidos tratados negociados entre unidades políticas: já assim nas Cidades-Estado da Mesopotâmia, ou nas tribos judaicas, ou entre egípcios e hititas. Na civilização grega, as cidades trocavam “oradores” e criaram-se sistemas mais organizados, como eram as Ligas formadas por coligações de polis, como foram a Liga de Delos constituída por Atenas contra os persas, ou a Liga do Peloponeso pilotada por Esparta. Em contraste com os gregos, nos romanos não há notícia de algo similar – apesar do envio de “legados”, dir-se-ia que neles a força militar dispensava uma diplomacia regular…

Todavia, após algumas manifestações no Império de Bizâncio, é nas Repúblicas italianas do séc. XIV que verdadeiramente nasce o sistema diplomático. As Cidades-Estado e outros territórios que então coexistiam na Itália – Veneza, Florença, Génova, Milão, os Estados Pontifícios, o Reino das Duas Sicílias – criaram uma rede de contactos regulares entre si e com outros Estados europeus, designadamente a França e a Espanha. Basta ver que, segundo os historiadores, o Duque de Milão Francesco Sforza abriu a primeira missão permanente na República de Génova, em 1455 (ver B. Biancheri, Accordare il mondo – la diplomazia nell'età globale , Laterza, Roma 1999).

Pouco depois, a Sereníssima República de Veneza estabeleceria o primeiro sistema organizado de representações diplomáticas: os embaixadores rodavam entre várias capitais por períodos de três anos, eram acreditados com documentos formais e recebiam instruções precisas quanto à amplitude do seu mandato e aos objectivos da sua missão.

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* Luís Moita

Vice-reitor da UAL.

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