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- JANUS 2007 -



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Os judeus entre a exclusão e a integração

Esther Mucznik *

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A máxima talmúdica de que “a lei do país é a nossa lei” foi a regra de ouro das minorias judaicas ao longo de dois mil e quinhentos anos de diáspora: respeitar as leis, normas e tradições dos países de exílio, perseverando obstinadamente nas suas próprias, mesmo na maior adversidade, como forma de assegurar a sua sobrevivência. Será esta a chave da bem sucedida integração dos judeus nos países onde constituem minorias?

 

O Exílio no pensamento teológico judaico

No pensamento rabínico, a diáspora judaica é vivida como um exílio – a perda e a ausência da pátria, Jerusalém – e este conceito encontra-se desde muito cedo na própria Bíblia. “Os teus descendentes serão estrangeiros num país que não lhes pertence” (Gn 15,13), diz Deus a Abraão numa alusão ao futuro desterro da sua descendência. No entanto, na tradição religiosa rabínica, o exílio e a dispersão não são fenómenos irreversíveis: consequência da transgressão pecaminosa dos mandamentos, se Israel se voltar de novo para Deus, Ele “terá piedade de ti, porá fim ao teu exílio (...) e reconduzir-te-á depois ao país que os teus pais possuíram e que, por tua vez, possuirás ...” (Dt. 30, 3-5).

No pensamento judaico, a estadia dos hebreus no Egipto, “a casa da servidão”, tornou-se o paradigma do exílio e simultaneamente da libertação. Com efeito, se Moisés é o primeiro redentor, virá o redentor último, o Messias da casa de David, que trará de volta o povo de Israel à sua pátria. Esta visão do exílio como punição divina e, simultaneamente, a convicção inabalável de retorno à pátria perdida, é a principal componente do judaísmo ao longo de mais de 2000 anos, o ponto de convergência de uma memória nostálgica, de uma visão utópica e de uma obrigação religiosa. “Para o ano que vem em Jerusalém”, é a prece milenária até hoje anualmente proferida com o mesmo fervor.

 

De Oriente para Ocidente...

A diáspora judaica inicia-se com a deportação das dez tribos “perdidas” do reino de Israel pelos assírios no fim do século VIII antes da era cristã e prossegue com a destruição do Templo de Salomão e a deportação dos habitantes da Judeia para a Babilónia em 586 (a.C.). Quando 50 anos mais tarde o rei Ciro da Pérsia autoriza o retorno dos exilados, já existe uma diáspora judaica em torno da bacia do Mediterrâneo, para além da Babilónia. Esta tendência acentua-se com a helenização da região e sobretudo com a conquista romana.

Alguns historiadores estimam em 6 milhões o número de judeus no início da era cristã – perto de um em cada dez habitantes do império romano. Até ao século X da era comum, a maioria da população judaica vivia no Médio Oriente: o principal centro cultural e espiritual era a Babilónia. Na época medieval, praticamente todos os países da Europa albergam comunidades judaicas, mas as perseguições entre os séculos XIII e XVI levam a novas mudanças: no seguimento das sucessivas expulsões, de Inglaterra e de França e em particular de Espanha e Portugal, uma parte dirige-se para a Europa Oriental, em especial para a Polónia, outra refugia-se no Império Otomano. Assim, da Antiguidade até à época moderna, as principais migrações judaicas dirigem-se do Ocidente para Oriente.

As migrações, voluntárias ou coercitivas, são pois uma constante da história judaica. A cada etapa, as comunidades organizam a preservação da sua identidade religiosa. Mas ao mesmo tempo, adaptam-se ao país de acolhimento, falam a língua, integram os elementos culturais do meio ambiente no seu modo de vida e de pensamento. Em contrapartida, contribuem com a sua própria especificidade: o intercâmbio é desigual, mas o mundo contemporâneo não seria o que é sem os contributos culturais, científicos e ideológicos dos judeus.

 

A comunidade, a única forma possível de integração

Os fundamentos de instituições de governo autónomo, incluindo as sinagogas, datam do período do primeiro exílio babilónio. Essas instituições combinavam conceitos baseados na experiência soberana na Terra de Israel com estruturas sociais e ideológicas originárias do mundo onde evoluía a diáspora. Desde o século II antes da era cristã, os judeus que viviam em Alexandria tinham a sua própria corporação autorizada a conduzir os assuntos segundo a lei judaica, a construir sinagogas e a enviar para Jerusalém impostos para o Templo. No Império Romano, os judeus podiam ser julgados pelos seus próprios tribunais e segundo as suas leis: este sistema constituiu a base de uma autonomia legal única, que iria caracterizar a vida judaica durante quase 20 séculos e desempenhar um papel determinante na sua continuidade.

As comunidades locais estabeleceram um modo de vida baseado no judaísmo: sinagogas, tribunais, escolas, instituições filantrópicas e banhos rituais formavam um complexo centralizado, dirigido por autoridades religiosas reconhecidas e regulado pela lei religiosa judaica, a halacha . Múltiplas organizações tomavam conta de todos os aspectos da vida quotidiana. A comunidade era responsável pela cobrança dos impostos, pela recolha permanente de fundos destinados a resgatar os cativos, à hospedagem dos viajantes, à assistência aos velhos, doentes, viúvas e até aos dotes para as jovens pobres. O centro da vida judaica era a sinagoga, cujas funções incluíam, para além da oração, a escola e outros espaços sociais e jurídicos.

Com as expulsões de Inglaterra e de França no século XIII o centro de gravidade do judaísmo europeu passou para a Polónia onde a comunidade adquiriu uma autonomia e um poder sem igual, nomeadamente através do “Conselho dos Quatro países”, espécie de parlamento judaico. No Império Otomano, cada província tinha o seu rabino-chefe, reconhecido pela Sublime Porta como o representante da comunidade.

Tal como as suas congéneres da Europa central e de leste, as comunidades judaicas ibéricas tinham um elevado grau de autonomia, elegendo os seus próprios órgãos, praticando livremente o seu culto, decidindo os impostos internos, regendo-se pelo seu direito, o direito talmúdico, e jurando pela Torá. Eram, no entanto, mais institucionalizadas, mais hierarquizadas, com uma dependência mais estreita do rei, nomeadamente através de uma aristocracia judaica que sobressaía pela sua riqueza e cultura, reflexo da ascensão social e económica dos judeus.

A comunidade ou o Kahal foi a forma encontrada de sobrevivência espiritual e física do judaísmo e simultaneamente um terreno fértil de uma vivência religiosa e cultural muito rica. Mas ela era, também, reflexo da sua dependência e marginalização social: um corpo autónomo, estranho à sociedade, relacionando-se com ela não em termos de igualdade, mas numa relação de inferioridade que oscilava entre a tolerância e o ódio, entre a convivência e a exclusão, sujeito a uma legislação restritiva, nomeadamente por influência do Concílio de Latrão (1215).

Sabemos que esta legislação foi aplicada de modo desigual, em função da relação de forças em cada momento. Mas, tal como a ideologia que a fomenta, ela é o quadro em que se move a presença judaica no Ocidente europeu entre os séculos XII e XVI. No império otomano, apesar de muito menos persecutório, o estatuto de dhimmi (protegido), reservado aos não muçulmanos, não deixa de ser também uma situação de menoridade política e social.

Em síntese, até à Revolução Francesa, o principal instrumento de integração social – colectiva, não individual – foi a comunidade, o kahal , único interlocutor do poder, meio de defesa da população judaica contra as pressões e agressões exteriores, garante da sua segurança e da continuidade das suas instituições religiosas e culturais identitárias. Para o judeu medieval, a vida em comunidade não é apenas a única forma possível de cumprir os mandamentos religiosos, mas é também a única forma possível de vida.

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A integração individual: o tempo da ilusão

Em menos de cem anos, entre meados do século XIX e meados do século XX, o mundo judaico conheceu transformações mais profundas e radicais do que durante os perto de 20 séculos que se seguiram à sua expulsão de Jerusalém. A Emancipação, o Holocausto e a criação do Estado de Israel são três acontecimentos que representam um autêntico terramoto na vivência judaica.

A Emancipação judaica ou seja, o acesso a uma cidadania plena, à igualdade de direitos e deveres jurídicos e políticos, consequência da Revolução Francesa e do espírito das Luzes, abriu uma nova era de convivência, participação e integração social dos judeus, cidadãos de pleno direito de um Estado que também passava a ser seu. A religião é relegada para o foro íntimo de cada um, torna-se uma questão de consciência individual, de carácter privado e a-histórico. Doravante, os judeus relacionam-se directamente e individualmente com o Estado do país onde vivem, como cidadãos iguais em direitos e deveres, pelo menos teoricamente. Uma das principais características do judaísmo nessa época é o ardente desejo de integração que conduz os judeus a adoptarem a língua, a cultura e os desafios patrióticos dos seus países. Foi assim que mais de 100 mil judeus serviram no exército alemão na guerra de 14/18, dos quais 12 mil morreram em combate contra os seus próprios irmãos do exército francês em nome de pátrias que acreditaram serem suas.

No período que vai do final do século XIX até à ascensão do nazismo, o judaísmo no Ocidente europeu conheceu uma plenitude cultural excepcional, frequentemente comparada à idade de ouro do judaísmo espanhol no século XII. Não é por acaso que, entre 1905 e 1936, treze prémios Nobel são atribuídos a judeus... Mas a verdade é que, em resultado da discriminação de séculos, a emancipação nunca representou uma verdadeira igualdade social. Urbanos e cosmopolitas, os judeus permaneceram sempre uma categoria estranha, relativamente marginal, excluída da administração, do exército, nalguns casos da magistratura e do ensino e, sobretudo a partir de 1890, tiveram de enfrentar um anti-semitismo crescente, com os seus ideólogos, os seus activistas, a sua imprensa. Os judeus foram os “bons alunos” da Alemanha e da França: decoraram os seus clássicos e defenderam até ao fim as ideias da “ Aufklarung ” ou das “ Lumières ”. Mas o seu entusiasmo pela cultura europeia foi, em geral de sentido único, não suscitando do outro lado nenhum interesse, nenhuma curiosidade pela cultura judaica, pelas suas raízes, obras ou história. É exactamente por isso que mais tarde, depois de consumada a catástrofe, o filósofo judeu-alemão Guershom Scholem podia escrever com a dor e a raiva do conhecimento póstumo: “A esmagadora maioria de nós vivia (...) num insuportável engano voluntário, tomando os seus desejos pela realidade e iludindo-nos com uma ilusória harmonia judaico-alemã que não correspondia a nada”.

Mas seria possível prever o impossível?

 

Uma cartografia em mudança

O despertar não podia ser mais brutal. Cidadãos nacionais de países diferentes, é colectivamente, como judeus, que serão alvo do maior e mais bárbaro genocídio da história. De uma certa forma, podemos dizer que o Holocausto acabou com o judaísmo europeu – em primeiro lugar dizimando cerca de dois terços, mas também destruindo uma cultura, uma língua e um modo de vida com mais de mil anos. As aldeias judaicas na Europa Oriental, o yiddish com a sua literatura terna e cheia de humor, o teatro e inúmeros jornais, a gastronomia, os costumes, uma religiosidade simultaneamente fervorosa e tolerante, tudo isso desapareceu para sempre no fragor da catástrofe.

Dizimados colectivamente, é igualmente como colectivo que procurarão uma forma de sobrevivência – através da criação do Estado de Israel. Expulsos de Jerusalém pela violência dois mil anos antes, é de novo pela violência que a ela voltam, numa cruel simetria histórica. A profecia de Theodor Herzl realizou-se da pior maneira, mas realizou-se.

Desde o final da guerra e da criação do Estado de Israel, a cartografia do judaísmo mundial alterou-se substancialmente: os seus pólos mais dinâmicos estão hoje em Israel e nos Estados Unidos. Subsistem no continente europeu cerca de dois milhões de judeus, mas a sua face mudou completamente: na Europa Ocidental são maioritariamente oriundos da África do Norte, no seguimento da descolonização e da criação do Estado de Israel; no Leste europeu, deixou praticamente de haver judaísmo, em consequência do Holocausto, do comunismo e da emigração. Por uma daquelas ironias a que a história nos habituou, a única comunidade judaica da Europa em franco crescimento é aquela que se pensava banida para sempre: a alemã – crescimento devido à instalação de uma parte significativa de judeus da ex-URSS.

Apesar de todo o dinamismo, força e criatividade do judaísmo americano, a única comunidade em franco desenvolvimento é a israelita, com perto de 7 milhões de judeus, na qual a consciência nacional se sobrepõe cada vez mais à consciência religiosa. É impossível saber o que nos reserva o futuro: se olharmos apenas do lado judaico, a tendência parece ser para o desaparecimento progressivo da diáspora e a reunião do povo judeu em Israel, cumprindo assim a profecia de Torá e, de forma mais terrena, de Theodor Herzl. Mas se olharmos para o mundo e, em particular, para o mundo árabe e muçulmano, nada é menos certo...

 

Uma integração bem sucedida

No mundo ocidental, no pós-guerra, a integração judaica é bem sucedida. Cidadãos como os outros, participam activamente em todas as esferas da sociedade. Pertencem em regra geral à média burguesia, com óbvias excepções para cima e para baixo. São médicos, advogados, jornalistas e negociantes; são escritores, artistas e professores; são simples empregados; alguns, muito menos, estão na política – o que se diria de um primeiro-ministro ou de um presidente da república judeu?

O simples colocar desta questão mostra que o preconceito não desapareceu. O Holocausto fez do anti-semitismo um tema tabu, mas este não acabou, faz parte da cultura ocidental. Na própria consciência judaica ele também deixou marcas indeléveis: a percepção de que “aconteceu, pode voltar a acontecer” está sempre presente, o que tem como consequência uma maneira de estar no mundo algo desconfiada, um sentimento de precariedade e de solidão. O Holocausto intensificou a identidade judaica, o que se traduz na criação de numerosas instituições comunitárias, associativas e de beneficência, mas simultaneamente reforçou a sua componente dramática com uma dimensão de tragédia iminente.

Apesar de tudo, as décadas do pós-guerra constituíram, sem dúvida, o período mais pacifico da presença judaica no Ocidente. Em contrapartida, no mundo oriental, elas são provavelmente das mais dolorosas: no seguimento da criação do Estado de Israel, cerca de 700 mil judeus viram-se obrigados a sair de países onde a sua presença era milenar: Iraque, Egipto, Síria, Líbano, Marrocos, Argélia... Em todos estes países, a presença judaica tornou-se indesejável e alvo de discriminações, pogroms , expulsões...A maioria refugiou-se no Estado de Israel, outros em França, Espanha ou nas Américas. Actualmente o mundo árabe é um deserto judaico.

Mas, embora de outra forma, a criação do Estado de Israel, o interminável conflito israelo-árabe e o incremento do anti-semitismo no Médio Oriente, acabam também por se reflectir na integração judaica no ocidente europeu, através da exportação do conflito, nomeadamente pelo radicalismo árabe e muçulmano presente na Europa. A fronteira entre anti-sionismo e anti-semitismo é cada vez mais ténue, na medida em que, com demasiada frequência, os judeus são alvo colectivamente da ira anti-israelita.

A criação e a existência do Estado de Israel no seguimento do Holocausto determinou a sua centralidade na identidade judaica e obrigou a repensar os termos da cidadania dos judeus da diáspora. Mesmo para aqueles que nunca pensaram em emigrar para Israel, a sua relação com Israel é intensa, afectiva e existencial. A propósito da Guerra dos Seis Dias, em 1967, Raymond Aron afirmava: “Sou o que se pode chamar um ‘judeu assimilado' (...) Mas se as grandes potências, segundo o cálculo frio dos seus interesses, deixarem destruir o jovem Estado que não é o meu, esse crime, modesto à escala do número, tirar-me-ia a força de viver e acredito que milhões e milhões de homens teriam vergonha da humanidade.”

Como Aron, milhões de judeus da diáspora sentem esta angústia existencial, identificando a sua própria existência com a do Estado de Israel. Tal como Aron, essa relação com Israel não entra em confronto com a sua pertença nacional. A sua lealdade, participação e respeito pelas leis, cultura e costumes dos países onde vivem é total e essa é a chave da sua integração. As formas dessa integração foram mudando ao longo dos séculos, mas os judeus nunca tentaram impor aos outros a sua própria identidade, religiosa ou cultural. Apenas quiseram a liberdade de a praticar, não abdicando nunca dela. Foi esta sabedoria a chave da sua integração e simultaneamente a razão da sua rejeição.

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* Esther Mucznik

Diploma Universitário de Estudos Literários Secção Sociologia. Licence e preparação da maîtrise em Sociologia, Sorbonne, Paris. Curso de História Judaica e Holocausto no Instituto de Estudos do Holocausto, Yad Vashem, Jerusalém. Frequência do Curso Superior de Ciência das Religiões na Universidade Lusófona. Curso de liderança judaica na Leatid Europe, Centro Europeu de Formação de Líderes, Veneza, Itália. Investigação e organização do arquivo histórico da Comunidade Israelita. Membro da direcção da Comunidade Israelita de Lisboa desde 1992 e sua Vice-Presidente desde 2000.

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