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- JANUS 2007 -



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Religiões e geopolítica no confronto indo-paquistanês

Jean-Luc Racine *

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O hinduísmo marca, com a sua especificidade, o mundo indiano dos campos e das cidades, estendendo uma rede de lugares santos e de peregrinações desde os cimos gelados do Himalaia aos mares quentes do sul da península.
E também se tornou, com o desenvolvimento de um nacionalismo fundado no conceito de “hinduidade”, o vector de estratégias políticas que afectam, tanto o comportamento do governo hoje no poder em Nova Delhi, como a sua política regional e a sua visão do mundo. Face a uma Índia maioritariamente hindu, mas que se diz laica, o Paquistão afirmou-se, na partição do Império das Índias em 1947, como “terra dos muçulmanos”. No entanto, o “país dos puros” não alberga hoje senão um terço dos muçulmanos do subcontinente, e continua a ser-lhe difícil definir as relações entre o Islão e a nação. A instrumentalização do sentimento religioso e dos partidos islamitas por umas forças armadas desejosas de vantagens estratégicas, tanto no Afeganistão como em Caxemira, levou às derivas denunciadas pelo regime no pós 11 de Setembro.

 

As diversas identidades religiosas

A Ásia do Sul é o berço de duas grandes religiões, hinduísmo e budismo, cujas histórias se opõem notoriamente. O hinduísmo representa a resposta vitoriosa e popular de um modo de estar no mundo e de pensar o homem e o sagrado, herdeira dos Vedas e de quatro milhares de anos de história, face ao desafio do budismo, que, nascido no vale do Ganges no séc. VI a.C., se propagou por grande parte da Ásia, quase desaparecendo, ao mesmo tempo, da Índia. Pelo contrário, o Islão, levado por comerciantes árabes até às margens da Índia ocidental pouco depois da Hégira (622 d.C.), instalou-se na Índia há mil anos, pela pregação e pelas armas, e prosperou ali até ao apogeu do império Mogol, no séc. XVII. O cristianismo é ainda hoje muito minoritário (cerca de 2%), embora ultrapassando o sikhismo e jainismo, religiões autóctones; mas o seu papel local é mais importante do que parece (apesar de ter de se distinguir a sua expressão local e o que, na Europa, se lhe opôs: a filosofia das Luzes, vector ideológico da modernidade colonial, e o seu inimigo simétrico, também ele modernista: o projecto nacionalista das independências). Misturam-se, aqui, ao mesmo tempo, milhares de anos de história das ideias e de práticas religiosas, num subcontinente amiúde definido como terra de espiritualidades; dois séculos de inscrição de um projecto político centrado no Estado-nação; e, por fim, as interrogações contemporâneas sobre a questão identitária, infinitamente mais complexa do que sugere a desastrosa fórmula do choque de civilizações. Não abordamos aqui os modos de inserção no espaço do facto religioso vivido no quotidiano, que teriam de ser objecto de um estudo apropriado, em que todas as escalas de análise testemunhariam a fertilidade do facto religioso desde a arquitectura dos edifícios à estrutura ideológica das delimitações territoriais aldeãs e à distribuição geográfica das castas, à rede pan-indiana das peregrinações. Retenhamos, simplesmente, a poderosa inscrição territorial do fenómeno religioso, não só nas paisagens, mas também na própria concepção do hinduísmo, que se expandiu ao longo da história nesse triângulo indiano que é a sua morada original, mesmo se a diáspora o disseminou hoje pelo mundo fora. Se 98% dos 140 milhões de paquistaneses são muçulmanos indianos, o hinduísmo é comum a 82% dos mil milhões de indianos. Os 12,5% de muçulmanos da Índia são quase tantos como os muçulmanos paquistaneses ou do Bangladesh (130 milhões). Em conjunto, os muçulmanos da Ásia do Sul são uma peça fundamental daquilo que por vezes se designa por Islão periférico, exterior ao berço (no Médio Oriente) das origens. E não é só o seu número que conta, é também o peso das ideias. A Índia viu nascer movimentos de reforma e predicações que ultrapassaram as suas fronteiras.

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Nehru e os nacionalistas hindus

Duas concepções opostas confrontaram-se, quando começou a amadurecer o projecto nacionalista. E as duas reagiram, cada uma a seu modo, ao impacto colonial. A escola de pensamento representada por Nehru tentou conter a religião num segundo plano, para construir uma nação que transcendesse as suas pluralidades religiosas e também linguísticas, sociais e regionais, e fosse sustentável na dupla figura do secularismo, a laicidade à indiana e a dialéctica do uno e do múltiplo. Essa Índia, nascida a 15 de Agosto de 1947, dotou-se em 1950 de uma Constituição que celebrava o povo da Índia e a sua cultura compósita: um povo unido pela definição de cidadania, quaisquer que fossem as suas facetas; uma cultura onde a pluralidade das religiões tinha o seu lugar, apesar da espessura da história e da supremacia aritmética do hinduísmo. A ideologia dominante punha em destaque a imagem de uma Índia acolhedora para as religiões exteriores, de um hinduísmo plural por natureza e não conquistador por convicção. O triângulo indiano aparecia, assim, como lugar de encontro, em torno do bastião hindu, de múltiplas religiões, entre as quais o islão e o budismo, territorialmente bem implantadas no sub-continente. A outra escola de pensamento também foi influenciada pelo pensamento ocidental e pela organização do cristianismo, mais estruturado, propondo a reforma de certas práticas do hinduísmo (luta contra a sati, ensino feminino, por exemplo), mas sobretudo tentando implementar um outro projecto nacionalista, fundado na afirmação da identidade religiosa como cimento

nacional: o projecto teve os seus ideólogos mais resolutos nos anos 20 e 30, quando o nacionalismo hindu ganhou corpo, e não pôs em questão matérias de dogma ou de doutrina: antes fustigava o enfraquecimento dos hindus, perdidos no labirinto das suas querelas sectárias, face ao Islão conquistador desde o ano 1000, data dos sucessivos raids de Mahmud de Ghazni contra os templos e centros de poder indo-gangéticos.
O declínio do império Mogol não corresponde ao acordar dos hindus: sucedeu-lhe o poder técnico-comercial da Companhia das Índias, que levou para a região a supremacia do império britânico, portador do cristianismo. Esta escola nacionalista hindu, derrotada em 1947, saboreia hoje a sua desforra. Mas subestima-se com frequência o papel que ela desempenhou antes da independência, acicatando tensões com a minoria muçulmana, que finalmente veio a optar pela secessão.

 

A Liga Muçulmana

Face ao projecto político do Congresso Nacional indiano, em torno das figuras emblemáticas de Gandhi e de Nehru, e, a fortiori , face ao projecto do nacionalismo hindu, a Liga Muçulmana defende os interesses da sua comunidade, amalgamando as duas escolas de pensamento opostas, e afirmando que o Congresso é, sobretudo, a máquina política do hegemonismo hindu. A Liga afirmou, assim, uma terceira concepção da identidade religiosa na região. Dirigida por um antigo membro do Congresso, Mohammad Ali Jinnah, fez suas em 1940 as teses separatistas, defendidas em 1933 por um estudante muçulmano indiano de Cambridge, Chaudhary Rahmat Ali, que propunha a criação de um Estado independente, o Paquistão, nas cinco províncias maioritariamente muçulmanas que formavam o então noroeste do Império britânico: Punjab, margens do Afeganistão, Caxemira, Sind e Baluquistão. Evoquemos uma passagem significativa do discurso de Jinnah (à Liga Muçulmana Pan-Indiana, em Lahore, Março de 1940): “É muito difícil entender porque é que os nossos amigos hindus não percebem a natureza real do islão e do hinduísmo. Nem um nem outro são religiões no sentido estrito do termo, mas sim ordens sociais distintas. É um sonho pensar que hindus e muçulmanos poderão um dia fundar uma nacionalidade comum. Essa ideia falsa de uma nação indiana ultrapassou os limites, é responsável pela maioria das perturbações que bem conhecemos e levará a Índia à ruína se não revirmos a tempo tais concepções. Hindus e muçulmanos pertencem a duas filosofias religiosas, a dois sistemas de práticas sociais, a dois mundos literários diferentes. Não se casam uns com os outros, não comem juntos, pertencem a civilizações diferentes fundadas em ideias que se opõem (...). Hindus e muçulmanos bebem de fontes históricas diferentes, as suas epopeias de referência são diferentes, os seus heróis são diferentes; muitas vezes, o herói de uns é o vilão dos outros, vitórias e derrotas invertem-se. Associar estas duas nações, uma minoritária, a outra maioritária, num Estado único levará necessariamente a um descontentamento crescente e à destruição do que um governo de tal Estado poderá ter construído”.

 

A religião na base da secessão

Esta afirmação da diferença, esta “teoria das duas nações” de que nasce, a 14 de Agosto de 1947, o Paquistão, é exactamente o oposto da teoria indiana da nação defendida pelo partido do Congresso. No entanto, Jinnah não defendia a criação de um Estado islamita, governado por imãs ou mulemas. Ele próprio foi um muçulmano morno, como Savarkar, ideólogo do nacionalismo hindu, foi sobretudo agnóstico. No islão de um como no hinduísmo do outro, o que mais conta é o sentimento de identidade comunitária, percebido como fundamento da consciência nacional. E um e outro também faziam cálculos aritméticos: enquanto Nehru forja uma nação plural e englobante, Jinnah e Savarkar fazem contas. Os hindus são maioritários e são os “filhos da terra”, diz Savarkar; compete-lhes, por isso, definir a nação. Os muçulmanos são minoritários, constata Jinnah, e assim o sufrágio universal condená-los-á a ser aritmética e politicamente dominados pela maioria hindu a não ser que criem o seu próprio Estado. Onde? Onde são maioritários. Daí resultará o Paquistão bicéfalo de 1947, que acrescenta ao bastião do noroeste imaginado por Rahmat Ali em 1933 (menos Caxemira, imediatamente objecto de litígio) a Bengala muçulmana, tornada Paquistão Oriental. A geografia política que se recompõe, sobre as ruínas do império britânico, gerando dois Estados-nações e não um só, inscreve, assim, a religião como critério decisivo de identidade nacional. De modo positivo no Paquistão, que impôs a partição (conduzida em trágico banho de sangue de que são responsáveis ambas as partes); de modo negativo na Índia, que lutou pela unidade sob duas bandeiras: a de um Nehru que recusava os princípios da diferença fundadores da teoria das duas nações, e a dos nacionalistas hindus, que não negavam a diferença mas queriam impor a regra da maioria, em nome da unicidade da Mãe Índia, cujo corpo, amputado dos seus dois flancos pela partição, deveria ter permanecido inteiro, no espaço histórico da “hinduidade” triunfante – o das suas fronteiras naturais. Essa “Grande Índia”, a Akhand Bharat, inscreve-se entre o arco montanhoso que corre a fronteira afegã e os montes indo-birmaneses, através do imenso Himalaia, a Norte, e as margens oceânicas da península indiana a Leste, Sul e Oeste.

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Informação Complementar

Caxemira e Bangladesh

Três acontecimentos históricos dão um tom “religioso” ao contencioso indo-paquistanês. Todos eles modelam tão profundamente as mentalidades, e contribuem tão fortemente para a diabolização do “outro”, que nenhuma tentativa de diálogo conduziu até hoje, à margem da relação de forças do momento, a qualquer normalização efectiva das relações bilaterais. São eles: a partição de 1947, o conflito subsistente na Caxemira, e a secessão do Bangladesh em 1971. A síndrome da partição continua a marcar, meio século depois do drama, as percepções dominantes nos dois países: falhanço do projecto unificador indiano, é entendida, no Paquistão, como vitória mas vitória incompleta, por várias razões: Incompleta no plano interno, porque a questão fundamental se mantém em aberto, sem resposta clara: que Islão para que Nação? Incompleta no plano territorial: Caxemira, de maioria muçulmana, não foi agregada ao Paquistão, continuando a Índia a controlar uma sua fracção importante, cujo coração histórico é o vale de Srinagar; Mais do que incompleta, a vitória paquistanesa foi diminuída pela perda do Bangladesh em 1971. A responsabilidade do Paquistão no levantamento do Bangladesh não é negada, mas permanece a ideia de que os insurgentes não obtiveram a secessão senão devido ao apoio militar directo da Índia, desejosa de enfraquecer o Paquistão, ou mesmo de o aniquilar.

Caxemira e Bangladesh põem em questão de modo agudo a lógica da partição. Na Caxemira, opõem-se duas concepções distintas da nação, para além das questões postas pelo Direito, das relativas à validade das resoluções da ONU e à validade do princípio da autodeterminação. Para o Paquistão, Caxemira devia ser-lhe “devolvida” porque é 85% muçulmana e lhe é contígua, mesmo que o seu soberano hindu a queira ligar à Índia. Para esta última, pelo contrário, é a própria natureza do projecto nacional secularista e multicultural que é confortada pela presença, no seu seio, de um Estado de maioria muçulmana. Falta dizer que muitos caxemirenses se consideram, desde há muito, vítimas de discriminação, e que a Índia mantém actualmente mais de 400 mil soldados no território, na tentativa de o pacificar. Quanto ao Bangladesh, ele constitui, para a Índia, o melhor exemplo de fracasso da “teoria das duas nações”: também no Paquistão a religião não será o cimento da nação. Prová-lo-ia a secessão da maioria da população do Bangladesh apesar de muçulmana, secessão feita em nome de um novo equilíbrio político e na proeminência de uma outra identidade, linguística e não religiosa. São muitos, no Paquistão, os que contestam esta argumentação, arguindo que a teoria da diferença se mantém válida, visto que o Bangladesh independente não pediu a sua reintegração na Índia. Tal é, muito esquematicamente, o fundo histórico sobre o qual, a partir da década de 80, se desenvolveram duas radicalizações paralelas: a do nacionalismo hindu na Índia, e a do radicalismo islâmico no Paquistão.

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* Jean-Luc Racine

Director de investigação no Centre National de la Recherche Scientifique, Centre d'Étude de l'Inde et de l'Asie du Sud, École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris.

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Dados adicionais
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Link em nova janela A amputação do Paquistão bicéfalo: a secessão do Bangladesh (1971)

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