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- JANUS 2008 -



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O trabalho e o capital: uma reflexão inspirada na bolsa

Manuel Farto * e Henrique Morais **

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Há muito que a ciência económica nos habituou a identificar os chamados ciclos económicos, assim designados pela evidência estatística de que certos fenómenos económicos revelaram no passado alguma periodicidade nas respectivas variações, pelo que se espera que continuem a ser algo repetitivos no futuro. Além disso, os economistas foram aprendendo ao longo dos tempos a explicar esses ciclos económicos, num quadro normativo marcado por alguma estabilidade de pressupostos e, mais importante ainda, a serem capazes de, com uma aproximação absolutamente fantástica, poder prever as mudanças de ciclo, isto é, os momentos em que a um ciclo de expansão da actividade sucede um período de contracção (ou mesmo recessão) e o seu oposto.

Autores como Kondratieff (1), com os seus ciclos longos (períodos de 50 a 60 anos), mais tarde retomados, entre outros, por Schumpeter (2), encontraram na inovação tecnológica a causa próxima mais significativa para esse processo de contínua sucessão de fases distintas da actividade económica. Curiosamente, segundo eles, a invenção do transístor, na década de 40, teria estado na origem do desenvolvimento de um novo ciclo longo pelo que, cronologicamente, pareceria que o início do século XXI corresponderia a uma mudança de ciclo.

Atribua-se ou não especial relevância científica ao trabalho de Kondratieff (3), vale a pena ainda assim relembrar algumas das suas ideias chave no que diz respeito aos ciclos económicos. A esse propósito, Kondratieff defendia que, até cerca de 20 anos antes do começo de um novo ciclo longo, ocorriam alterações de alguma profundidade a nível da tecnologia, da circulação monetária e do posicionamento relativo dos países na esfera mundial.

 

A questão tecnológica

Pois bem, passados mais de 80 anos desde os trabalhos deste economista, vamos olhar cada uma destas variáveis, centrando a nossa análise na maior economia moderna: os Estados Unidos da América. Comecemos pela questão tecnológica.

O crescimento do investimento empresarial nos EUA tem vindo a registar um forte abrandamento desde o 2.º trimestre de 2006, com particular incidência no 4.º trimestre desse ano e nos primeiros meses de 2007. Deste modo, o crescimento do investimento abrandou consideravelmente em 2006, para um crescimento anual de 2,4% (quando, em 2005, havia aumentado 6,9%), com a particularidade de, nos últimos 5 trimestres, se terem registado variações em cadeia negativas em quatro deles (4). Embora grande parte deste comportamento do investimento esteja associado à evolução negativa do investimento no sector residencial (que tem registado quedas de dois dígitos), também o investimento não residencial vem demonstrando nos últimos meses alguma fraqueza. Aliás, quando se analisa a forma como os economistas têm tentado explicar o abrandamento tão pronunciado do investimento empresarial nos EUA, destaca-se um factor que, pela sua unanimidade, se distingue de todos os outros: o receio dos empresários quanto à evolução da produtividade.

Isto é, num contexto em que as margens de lucro das empresas continuam elevadas, bem como os respectivos resultados, tanto operacionais, como financeiros, em que as condições financeiras e de crédito são ainda favoráveis, apesar da forte subida das taxas de juro entre meados de 2004 e meados de 2006, neste enquadramento aparentemente benigno, as empresas estariam a refrear os seus investimentos com receio de que a produtividade dos seus colaboradores esteja a baixar!

Tão estranha conclusão poderia ser facilmente explicada com recurso a uma lógica tão simplista como falaciosa: o mercado de trabalho nos EUA está restritivo (a taxa de desemprego permanece em 4,7%, muito próximo do que será o limiar da taxa natural de desemprego), o que se materializa em pressões salariais que, tudo o resto constante, afectariam forçosamente a produtividade. Fraca explicação, pelo menos num tempo em que a globalização começa a não ser um factor mecânico de contenção dos preços nas empresas das economias avançadas (através da redução das respectivas margens), dado que são crescentes os sinais do retorno da inflação, também nos mercados emergentes. Aliás, basta olhar com algum detalhe para os dados das contas nacionais norte-americanas para se perceber por que motivo as empresas conseguiram, em média, manter nos primeiros meses de 2007 resultados favoráveis: o deflator do PIB cresceu, no 1.º trimestre, 4,2% face ao trimestre anterior (5), valor sem paralelo desde 1991, o que significa que as empresas beneficiaram de uma importante “almofada” para os seus resultados, através do aumento dos preços.

Na verdade, a razão para a aparente contradição entre as boas condições para o investimento e os dados menos favoráveis sobre o mesmo deve ser encontrada no ciclo tecnológico. É a convicção, ainda que inconsciente, dos empresários de que a tecnologia está presentemente numa fase de algum marasmo (ou, pelo menos, de que o ciclo de inovação tecnológica não é agora tão rápido), o que os leva a recear pela evolução da produtividade do factor trabalho.

Estaremos então a revisitar Kondratieff, a propósito da tecnologia? Estará para breve o surgimento de uma inovação tecnológica de tal forma surpreendente que contribua para o final do ciclo económico longo iniciado nos anos 50 do século passado? Terá essa inovação já ocorrido (a Internet?), estando os seus efeitos a ser agora mais visíveis, à semelhança do que ocorreu com o transístor, inventado alguns anos antes do que se considera o início de um novo ciclo económico longo?

Voltemo-nos então para a questão do posicionamento relativo dos países na esfera mundial. A este propósito, a China e a Índia ou, se quisermos ser mais rigorosos, a evolução crescente das respectivas economias e, pelo menos no caso chinês, o aumento expressivo do seu peso na cena internacional, são exemplos flagrantes de uma outra alteração fundamental no ciclo longo, que se vem desenhando há alguns anos e cuja intensidade está ainda longe de se conseguir vislumbrar integralmente. Pensemos apenas que, a manterem-se os ritmos de crescimento económico actuais, ainda nesta década a China será a 3.ª maior economia mundial (a seguir aos EUA e à União Europeia) e que dentro de cerca de 30 anos se poderá tornar na maior economia do mundo.

Quando se observam os desenvolvimentos de natureza monetária, em torno do que se costuma apelidar de “sistema monetário internacional”, conclui-se igualmente pela emergência, em particular desde o aparecimento do euro, em 1999, de uma discussão profunda sobre a organização do próprio sistema e as alterações que se vêm sentindo nos últimos anos. Vários economistas conceituados têm defendido que a lógica de centro/periferia em que se tem organizado o sistema monetário internacional desde Bretton-Woods deve ser alterada ou, pelo menos, devem ser redefinidas as moedas do centro (até agora, o dólar) em função dos desenvolvimentos económicos e comerciais ocorridos nas últimas duas décadas.

Resta-nos a circulação monetária...

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O excesso de liquidez e a globalização

Temos sérias dúvidas de que um economista que viveu na 1.ª metade do século XX tenha algum dia sequer imaginado que, algumas décadas depois, a ciência económica e a sociedade mundiais seriam afectadas por um fenómeno da natureza e alcance da globalização. Por isso mesmo, deixemos definitivamente Kondratieff e os seus ciclos longos, para nos concentrarmos nesta nova aventura em que se envolveram as sociedades modernas.

A economia mundial apresenta neste momento níveis de liquidez (6) muito elevados, e isso tem acontecido, pelo menos, desde 2002. Esse fenómeno pode ser facilmente comprovado pela análise dos diferenciais (spreads) entre as cotações de compra (bid) e de venda (ask) dos activos, os quais têm vindo a diminuir consideravelmente. Também um outro indicador fulcral de liquidez, o chamado return to volume ratio , ou seja, o rácio entre a variação do preço do activo e o respectivo volume, aponta nesse sentido: a sua diminuição nos últimos anos sinaliza que os preços reagem agora de forma menos intensa face a um determinado volume negociado, o que indicia uma maior resistência do mercado, isto é, a existência de níveis de liquidez mais pronunciados.

Ora, este nível historicamente elevado da liquidez mundial, que pode ser observado designadamente através do indicador de liquidez do mercado financeiro disponibilizado pelo Banco de Inglaterra, está relacionado, em larga escala, com os efeitos da globalização, pelo menos a dois níveis.

Em primeiro lugar, porque a globalização permitiu o advento de novos intervenientes ao comércio mundial que, pela sua capacidade de produzir a baixo custo, rapidamente foram capazes de inundar com os seus produtos os mercados avançados e, deste modo, gerar vultuosas reservas cambiais em moedas como o dólar e o euro. Essas reservas cambiais nas moedas das economias avançadas retornaram posteriormente a esses mesmos mercados sob a forma de activos locais (em especial, dívida pública e acções).

Estes desenvolvimentos não só permitiram a manutenção de níveis de inflação baixos e sem paralelo histórico nas economias avançadas, com impacto positivo no rendimento disponível dos agentes económicos, como ainda significaram um importante “combustível” para a sustentação de um ciclo longo de subida dos activos financeiros, quer a nível do segmento accionista, quer do obrigacionista – voltaremos a este ponto posteriormente.

Em segundo lugar, o avanço de países como a China e a Índia na escalada da globalização gerou ainda um segundo fenómeno, isto é, a necessidade de as empresas das economias avançadas se reconverterem, como forma de conseguirem continuar a competir face às novas condições de mercado. Ora, na esmagadora maioria dos casos, essa reorganização empresarial foi feita à custa do factor trabalho, primeiro com uma maior racionalização na sua utilização e, depois, com a própria contenção dos seus custos. Foi assim durante anos, num movimento especialmente forte nos EUA.

Isto é, por paradoxal que possa parecer, a globalização não só foi o canal ideal para inundar o mundo de liquidez, como acabou por fortalecer as próprias empresas das economias avançadas, sobretudo aquelas que conseguiram resistir à avalanche inicial da própria globalização (7).

 

O capital e o trabalho

E é neste enquadramento que é possível entender a contradição observada com particular incidência nos últimos anos entre um mercado accionista saudável e que não pára de se valorizar e, por outro lado, os sinais de maior instabilidade no mercado de trabalho das economias avançadas, onde nem a permanência de condições muito restritivas (8) nalguns países (como é o caso, entre outros, dos EUA e do Reino Unido) tem permitido ganhos salariais reais expressivos.

Alguns dados são, a este respeito, perfeitamente elucidativos, como aliás pode ser observado nos gráficos que se apresentam com a evolução da taxa de desemprego, dos salários reais e dos índices de cotações de acções para as economias dos Estados Unidos, área do euro e Reino Unido.

Tomando como exemplo os EUA, o índice accionista que se utilizou como referência (o S&P 500) valorizou-se, em média anual, cerca de 9,7% desde 1991. Na área do euro, os ganhos foram idênticos (9,8%) e no Reino Unido situaram-se ligeiramente abaixo (6,3%). Ora, quando se observa o comportamento dos salários (9) verifica-se que o crescimento médio nominal dos salários nos EUA nesse período se quedou pelos 3,2%, na área do euro (desde 1997) atingiu 2,9% e no Reino Unido foi de 4,1%. Concluindo, sobretudo nos EUA e na área do euro, verificou-se no período em análise uma disparidade marcante entre os fortes aumentos dos ganhos do capital e os acréscimos substancialmente mais limitados dos salários.

Em nosso entender, a globalização, ao gerar excessos crónicos de liquidez, num ambiente de inflação contida, criou as condições ideais para o desenvolvimento (nalguns casos especulativo) do mercado de capitais e para a valorização substancial das empresas cotadas em bolsa. Mas, por outro lado, colocou essas mesmas empresas, sobretudo as das economias avançadas, sob a ameaça constante da concorrência a baixos preços dos mercados emergentes, que resultou numa racionalização de custos, em que o principal penalizado foi o factor trabalho.

No fundo, a globalização, que na aparência deveria significar o império do consumidor, ao perpetuar um cenário de liquidez excedentária cujo fim ainda não se vislumbra, acabou paradoxalmente por premiar de forma desigual os factores de produção, em claro benefício do capital.

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Informação Complementar

O posicionamento relativo dos países na esfera internacional

A alteração do posicionamento relativo dos países constitui para Kondratieff, como referimos, uma das características do início de um novo ciclo. Ora, a este propósito, não podemos deixar de sublinhar os novos sinais que se vão tornando cada vez mais evidentes, a começar pela acrescida importância da China e Índia.

Estes dois países parecem ter despertado para um crescimento sustentado que permitiu à China ultrapassar a Alemanha em termos da sua contribuição para o produto mundial, medido em dólares, enquanto a Índia ultrapassava a Rússia e o Brasil. Em termos da respectiva contribuição para o produto, medida em paridades do poder de compra, a sua contribuição é ainda mais expressiva, já que, em 15 anos, a Índia passou de 4,5% para cerca de 6,5%, enquanto a China passava de 7,5% para 16,5%.

O novo posicionamento destes dois gigantes não deixará de contribuir, juntamente com outros de menor dimensão como o Brasil, para pôr em causa um sistema de poderes herdado da II Guerra Mundial e mantido com muito custo durante o período da guerra fria. O debate sobre a reforma das instituições internacionais e as soluções que vierem a ser encontradas não deixará de reflectir esta nova realidade de um mundo substancialmente menos centrado a Ocidente.

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1 - Nicolai Kondratieff, economista soviético que se dedicou nos anos 20 do século passado ao estudo macroeconómico dos países industrializados.

2 - Joseph Schumpeter, economista austríaco que aprofundou a análise e teorização dos ciclos longos.

3 - Convém relembrar que o autor, para além de um fim prematuro (com 46 anos) às mãos do ditador Estaline, foi sempre relativamente ignorado pela ciência económica, que nem sequer traduziu do russo alguns dos seus textos. Foi graças aos trabalhos de Schumpeter que acabou por ser redescoberto.

4 - No 2.º trimestre de 2006: -1,9%; no 3.º T: -4,7%; no 4.º T: -7,1%; no 1.º trimestre de 2007: -4,4% e no 2.º T: + 3,1%.

5 - Em taxa anualizada, o que corresponde a um aumento em cadeia de 1,03%. Entretanto, no 2.º trimestre de 2007, o deflator aumentou 2,6% em taxa em cadeia anualizada.

6 - Existem várias formas de medir a liquidez do mercado, de que se destacam os diferenciais entre os preços de compra e venda dos activos (aplicável aos mercados de operações de reporte, ao mercado accionista e ao mercado cambial), o chamado return to volume ratio (mais utilizado na dívida pública, acções e opções sobre acções) e o prémio de liquidez (útil para as obrigações de dívida privada).

7 - Até porque, convirá não esquecer, muitas dessas empresas rapidamente perceberam que tinham de deslocalizar partes (ou o total) dos seus processos de fabrico para estes novos mercados. Esse movimento foi particularmente expressivo com as empresas nipónicas que, directamente ou por via de participações, se deslocaram em peso para a China.

8 - Considera-se que o mercado de trabalho está restritivo quando a “bolsa” de trabalho disponível (desempregados involuntários) é de tal forma exígua que as empresas começam a sentir pressões nos salários, pela incapacidade de contratar mais pessoal.

9 - Por dificuldades de natureza estatística utilizaram-se as seguintes variáveis: nos EUA, o salário horário; na área do euro, a componente de salários e vencimentos do índice de custos de trabalho e, no Reino Unido, os rendimentos médios totais dos trabalhadores.

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* Manuel Farto

Licenciado em Economia pelo Instituto Superior de Economia e Gestão. Doutor em Economia pela Universidade de Paris-X. Docente no ISEG. Docente visitante da Universidade de Orléans (França) e da Universidade Federal da Paraíba (Brasil). Subdirector do Observatório de Relações Exteriores da UAL.

 

** Henrique Morais

Licenciado em Economia pelo Instituto Superior de Economia e Gestão. Mestre em Economia Internacional pelo ISEG. Docente na Universidade Autónoma de Lisboa e na Universidade do Algarve. Assessor do Banco de Portugal. Membro do Conselho Directivo do Observatório das Relações Exteriores da UAL.

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Dados adicionais
Gráficos / Tabelas / Imagens / Infografia / Mapas
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