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- JANUS 2008 -



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O mercado imobiliário português e o endividamento

Sérgio Nunes *

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P ortugal tem vindo a transformar-se num país com elevados níveis de endividamento das famílias, nomeadamente o endividamento habitacional. Em 2006 os saldos em dívida no crédito aos particulares representavam 124% do rendimento disponível. Em 2001, este valor representava 97% do rendimento disponível. Observem-se os valores apresentados que, julgamos, não necessitam de comentários adicionais.

 

O endividamento

O nível de endividamento cresceu muito e muito depressa. Processou-se a um ritmo fortíssimo e as principais razões são por de mais conhecidas. A primeira passa pelo que designamos “Macroeconomia Benevolente” de finais dos anos 90: redução das taxas de juro de referência atingindo mínimos históricos, o regime de juros bonificados para aquisição de habitação, as expectativas de redução sustentável da taxa de inflação (fruto da entrada para a UE e mais tarde dos desígnios do Banco Central Europeu), aumento de concorrência no sector bancário com níveis de concorrência pura e dura na concessão de crédito fácil e barato, concomitantemente com incentivos ao consumo privado através de publicidade e técnicas de marketing irresistíveis para a generalidade da população portuguesa ávida de “ benchmarking económico e social”. Acresce a este cenário um período de convergência real com os níveis de rendimento europeus, traduzidos em aumento do poder de compra das famílias e do seu rendimento disponível. Este era de tal forma baixo que qualquer modificação conjuntural foi suficiente para se entender como estrutural e tendencialmente irreversível. Segundo dados do Banco de Portugal, embora o crescimento do crédito aos particulares tenha decrescido nos últimos anos, a verdade é que a concessão de crédito continua a crescer a ritmos na ordem dos 10%, nomeadamente no crédito à habitação. O crédito para consumo sofreu uma quebra significativa de 2002 até 2006, apresentando actualmente um crescimento na ordem dos 10%.

 

O mercado de arrendamento

Um segundo grupo de causas prende-se com as distorções existentes no mercado de arrendamento português e com o aumento dos fluxos migratórios europeus. Enquanto a propriedade aumentou o seu peso relativo de 52% (1981) para 76% (2006), o arrendamento decresceu de 39% para 21 % em 2006 (INE). O mercado de arrendamento em Portugal sofre de distorções graves de longa data que condicionam fortemente a opção das famílias por este tipo de regime de propriedade. O enquadramento deste mercado é um dos aspectos da organização da sociedade portuguesa que fez a ponte entre o antigo regime salazarista e o pós-25 de Abril como se de uma inevitabilidade se tratasse. As rendas foram congeladas pelo regime salazarista e continuaram congeladas até 1990, nomeadamente por força da ”Lei Portas”. A partir de 1990 as rendas foram parcialmente descongeladas, com a criação de contratos a termo certo, criando dois mercados paralelos de arrendamento, conduzindo a situações tão caricatas quanto aquelas que levam o inquilino do 2.º Esq. a pagar 25,00€euros de renda e o do 5.º Dto. a pagar 500,00 euros. Temos então um mercado de rendas antigas e um mercado exíguo (as rendas posteriores a 1990 representam apenas 9% do total de alojamentos) que, por falta de oferta, atinge valores de arrendamento que competem directamente com os montantes necessários à obtenção de habitação própria. Empurrado pela macroeconomia benevolente e pelas políticas de promoção à compra de habitação (créditos bonificados e benefícios fiscais), o arrendamento sofre de um atrofiamento em todas as suas dimensões. Em 7 de Setembro de 2006 entrou em vigor o “Novo Regime do Arrendamento Urbano” visando alterar substancialmente esta situação e procurando estimular o mercado de arrendamento e de reabilitação. Para isso fez-se do cerne da lei a criação de mecanismos que, faseadamente, conduzam a uma actualização das rendas, especificamente as anteriores a 1990. Embora ainda seja muito cedo para avaliar os resultados da aplicação da lei, a verdade é que pouco ou nada mudou no mundo do arrendamento em Portugal. Veja-se, por exemplo, o caso da reabilitação urbana (componente em se esperavam consequências benéficas na nova lei) onde os resultados atingidos ficaram muito aquém das expectativas. Segundo dados do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (31 Agosto de 2007), tanto o Programa RECRIA como o REHABITA diminuíram tanto o número de processos analisados como os apoios atribuídos.

 

A expansão do crédito imobiliário

Um outro aspecto decisivo, na nossa opinião, e que permite avaliar numa outra perspectiva a “especificidade portuguesa”, prende-se com a relação entre os preços da habitação e os rendimentos familiares. Desta forma é possível relativizar o preço das casas face aos salários das famílias. Segundo a equipa de Estudos Económicos do BBVA, “ nos últimos dez anos, o preço médio de uma habitação foi equivalente a nove vezes o salário médio bruto anual em Portugal ”. É verdade que esta relação desce para 6,5 vezes se se considerarem as receitas familiares totais. Contudo, segundo os autores do mesmo estudo, “ as comparações internacionais colocam este rácio entre três a cinco vezes o salário médio bruto anual, embora tenham sido observados rácios mais elevados do que os de Portugal em períodos de forte crescimento de preços, por exemplo em cidades como Londres, São Francisco ou Nova Iorque ”. Conclui-se facilmente que a habitação é um bem muito caro em Portugal e, ao contrário daquilo que a ciência económica preconiza, nem sequer é um bem assim tão raro!

Claro que é fácil de concluir que a expansão do crédito é uma atitude racional por parte das famílias (a racionalidade das empresas deve ser enquadrada numa atitude de investimento face ao risco e à inevitabilidade de ganhos de competitividade em contextos de incerteza inerentes à actividade). Por um lado, foi uma resposta às transformações verificadas no mercado de crédito (liberalização financeira) e no enquadramento macroeconómico. Por outro lado, foi feito num contexto de elevadas carências habitacionais, cujas necessidades não poderiam ser, com um mesmo nível de racionalidade, suprimidas de outra forma face às (intencionais) distorções que se verificavam e ainda se encontram no mercado de arrendamento. Por último, é um instrumento que as famílias possuem para gerir o seu consumo de forma intertemporal, ficando assim com mais opções de consumo que de outro modo lhes estariam vedadas.

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Endividamento e mercado de trabalho

Importa agora analisar quais os problemas do endividamento, nomeadamente daquele considerado excessivo? Como já foi referido, a decisão de endividamento é um direito, é uma possibilidade de escolha do consumidor e, enquanto tal, deve ser respeitada e os juízos de valor que lhe estão subjacentes devem ser evitados. Contudo, importa que se aprofunde as consequências do endividamento para além da “espuma” normal que constitui a principal preocupação neste domínio. Regra geral, a preocupação principal passa pelo receio do aumento dos níveis de incumprimento dos créditos (por via do aumento progressivo do grau de esforço) e pela consequente insolvência das famílias e das empresas. Se é verdade que esta é a face mais visível do problema, também não é menos verdade que, quer pelo prolongamento dos prazos dos empréstimos (que já chegam aos 50 anos), quer pela força dos factos (as taxas de incumprimento em Portugal são residuais) esta questão apenas revela a sua importância pelos problemas realmente graves e estruturais que encobre. Identifiquemos alguns deles. Um primeiro aspecto diz respeito à relação entre mercado imobiliário, endividamento e mercado de trabalho. A consequência mais visível e preocupante reflecte-se no grau de viscosidade na mobilidade das populações. O desemprego nacional tem vindo a aumentar, a (necessária e urgente) reestruturação das indústrias tradicionais tem conduzido a situações dramáticas nos mercados de trabalho (nomeadamente na região norte e em alguns territórios do interior) e o consequente desemprego friccional está progressivamente a transformar-se em desemprego estrutural, sem que seja atribuída qualquer responsabilidade à racionalidade das decisões tomadas no mercado imobiliário. Muito deste desemprego poderia transformar-se mais facilmente em novo emprego se as consequências das decisões imobiliárias não diminuíssem consideravelmente a simples possibilidade de novas escolhas fora da área de influência do “enraizamento imobiliário”. Fala-se muito de flexibilidade no mercado de trabalho, esquecendo-se que as pessoas são como o caracol: têm de levar a “casa” consigo e o que isso significa para a sua flexibilidade e adaptabilidade a novos contextos laborais e sociais. A mudança de habitação na Europa e nomeadamente em Portugal tem um custo de oportunidade (económico, psicológico, social e temporal) muito elevado conduzindo a défices de produtividade económica e social muito assinaláveis. É precisamente nestes casos que a espiral do sobreendividamento se processa de forma exponencial, com consequências irreversíveis para as famílias e a coesão económica e social da região.

Um segundo aspecto nem sempre salientado são os níveis elevados de ineficiência produtiva. Ao investir-se em betão, cujos efeitos multiplicadores são menores na economia (acontecem maioritariamente ao nível da fileira e essencialmente ao nível de bens de luxo), não se financiam as empresas, contribuindo para diminuir os níveis de liquidez na economia e as possibilidades de inovação e criação de riqueza por parte destas. Por outro lado, uma parcela elevada da produtividade das empresas está associada aos seus custos de produção (em que os “custos imobiliários” desempenham uma parcela importante), desde logo reflectindo-se em níveis de competitividade interna e externa mais reduzidos. Portugal canaliza para investimento em habitação 8,1% do PIB, enquanto a média europeia se situa nos 2,0% (Comissão Europeia, 2002).

 

O equívoco da posse

Um último aspecto, embora aquele que se considera mais relevante mas raramente salientado, assinala a diminuição acentuada dos níveis de bem-estar individual e colectivo, aprofundando os já elevados défices de coesão económica e social entre indivíduos e entre regiões. Se se admitir que o tempo de vida activa de um indivíduo se situa entre os 25 e os 65 anos (quarenta anos, prazo cada vez mais normal para um empréstimo à habitação), significa que durante 100% da sua vida activa um indivíduo afecta, em média, cerca de 40-50% do seu rendimento disponível em despesas de habitação (não considerando todos os outros créditos em que incorre). Significa que durante uma fatia considerável da sua vida activa os indivíduos estão dispostos a abdicar da sua liberdade de escolha sobre múltiplas possibilidades de desenvolvimento intelectual, cultural e civilizacional para garantir a posse de uma habitação em que, cada vez mais, apenas são inquilinos e reféns do sistema financeiro! É urgente desmistificar o significado da “posse” deste tipo de “poupança” e/ou “investimento”. Muitas das vezes a posse é um logro social e nada tem a dizer sobre a qualidade do usufruto desse mesmo bem e da funcionalidade que dele se espera. Qual a lógica de uma sociedade que se pretende desenvolver num colete de forças mental desta natureza?

 

Consequências da crise actual: para além do nevoeiro

Uma das questões que se coloca actualmente é a de se saber até que ponto a crise do mercado imobiliário norte-americano contagiou a chamada economia real. Mesmo sem quantificações suficientemente esclarecedoras, a verdade é que num mercado que tem nas expectativas sobre a formação dos preços e a evolução das rentabilidades um papel relevante, a confiança dos agentes económicos está irremediavelmente ferida. As taxas de juro de referência sobem, a aquisição de crédito torna-se mais difícil (principalmente na margem), o investimento decresce e os despedimentos e falências de instituições financeiras já começaram nos EUA e na Europa. O banco inglês Northern Rock viu-se recentemente a braços com uma crise de liquidez nunca experimentada. Ora se é verdade que podem existir ciclos imobiliários com uma economia em crescimento tendencial e estável (ciclos imobiliários parcialmente independentes dos ciclos económicos), também não é menos verdade que os ciclos imobiliários e os ciclos económicos influenciam-se mutuamente e desta forma importa desde já começar a analisar os futuros impactos do possível contágio da economia real no ciclo imobiliário seguinte.

Um outro aspecto que merece reflexão diz respeito às expectativas dos agentes sobre os ganhos decorrentes dos investimentos no imobiliário. Como já foi referido à exaustão, os últimos 10 anos foram férteis em irracionalidades. Uma das mais recorrentes e com consequências mais profundas sobre a economia e a sustentabilidade das finanças familiares decorre da sobreavaliação que o sector bancário fez do mercado habitacional. Muitas das famílias, se tentassem vender hoje a sua habitação, não conseguiriam liquidez suficiente para pagar os seus créditos bancários respeitantes à habitação (o que também deve ser uma situação suficientemente incómoda e de embaraço para os credores). Ora, com a quantidade de casas vazias, com o número daquelas que continuam a ser construídas, com o grau de esforço das famílias a crescer sem controlo quantificado, com os limites temporais de pagamento intermináveis e com a sensação que não é possível perder dinheiro no imobiliário, estamos a fomentar na sociedade portuguesa um caldo cujas consequências farão parecer a segunda lei da termodinâmica uma história de embalar.

 

Notas finais

Seria relevante um trabalho profundo de investigação sobre a evolução do grau de esforço das famílias por segmento de emprego e pela exposição desse segmento de emprego à competição internacional e global. É um facto conhecido que Portugal é um dos países do mundo mais exposto aos efeitos da globalização pela grande similitude do seu perfil de especialização produtiva face às novas economias emergentes e a última dúzia de países aderentes à União Europeia. Num cenário de (novo) abrandamento do crescimento económico e da diminuição dos salários reais, poderemos ser conduzidos a nova recessão económica, aumento de todos os tipos de desemprego, diminuição dos salários reais, redução do rendimento disponível, redução do consumo corrente das famílias e do sector público...

Outro tema interessante de investigar decorre da relação entre as decisões tomadas no mercado imobiliário e a irreversibilidade dessas decisões e das suas consequências no ordenamento do território e das dificuldades de gestão desse mesmo território. Com um arrefecimento do mercado imobiliário, com cerca de 500.000 fogos vagos em Portugal, com quebras no investimento e na procura e com taxas de juro historicamente baixas durante uma década, a verdade é que os preços imobiliários em Portugal não descem. O mercado imobiliário português é realmente “ the special one ”.

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* Sérgio Nunes

Licenciado em Economia. Mestre em Economia e Gestão do Território pelo Instituto Superior de Economia e Gestão. Docente no Instituto Politécnico de Tomar.

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