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- JANUS 2008 -



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O Tratado CECA: da exigência económica à visão política

José Paulouro das Neves *

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Ao olharmos para trás, para o tempo torturado que as duas guerras projectaram sobre o continente europeu, poderemos compreender como cedo se foi ampliando a consciência politica da necessidade de pôr termo a recorrentes rivalidades nacionais de uma Europa repetidamente ferida por uma perversa inclinação suicidária. Era afinal um caminho que, ainda antes do ultimo conflito, e perante as decepções provocadas pelas fragilidades da SDN, fora intuído, entre outros, por Coudenhove-Kalergi e por Aristide Briand, e registado num hoje pouco referido memorando sobre a “organização de um regime de União Federal Europeia”, escrito em 1930 pelo diplomata francês Alexis Léger, bem mais lembrado como admirável poeta vencedor do Nobel da literatura sob o nome de Saint-John Perse. Mas foi o choque da Segunda Guerra Mundial, bem como a névoa totalitária abatida sobre o Leste europeu e permitida pelos textos de Potsdam e de Ialta, que mobilizariam vontades para reflectir sobre novos modelos de cooperação entre os povos de uma Europa exangue e de novo inquieta. Coube a Churchill, com a autoridade de quem soubera galvanizar energias contra a barbárie nazi, legar à História o seu famoso discurso de Zurich, de Setembro de 1946, em que reclama o estabelecimento dos Estados Unidos da Europa, embora, é certo, sem o concurso britânico. Começam então a desenhar-se dois eixos estratégicos fundamentais: a reconciliação franco-alemã e a reintegração da Alemanha (a próxima RFA de 1951) na comunidade das nações da Europa Ocidental. Em paralelo, vai-se alargando e institucionalizando uma cooperação de diverso rosto multilateral que pretende dar resposta ao esforço de reconstrução e recuperação económica de um continente devastado e sujeito aos riscos da política agressiva de Moscovo. Este é o tempo que, no lado ocidental, verá surgir a frágil e breve Comissão Económica para a Europa, sob a égide das Nações Unidas, com o intuito de disciplinar auxílios; o plano Marshall (recusado pela União Soviética por ver nas suas condições uma investida de Washington contra a sua zona de influência arrancada em Ialta); em 1948, a OECE (instrumento intergovernamental de gestão da ajuda americana e de cooperação económica, raiz da futura OCDE); em 1949, o Conselho da Europa, cuja vocação pan-europeia apenas se concretizaria com a queda do muro de Berlim; e, naquele mesmo ano, a OTAN, aliança militar defensora de um Ocidente resguardado pelo poderio americano e, por isso, juntando as duas margens do Atlântico. Das generosas ideias, que durante a guerra, e logo depois dela, sonharam uma Europa defendida dos seus tradicionais demónios por uma unidade política e económica, restava um continente de novo dividido pelo poder de duas potencias hegemónicas, ou, na síntese de Thomas Molnar, “...dois sistemas imperiais, duas forças militares, dois espaços económicos, duas definições de cultura...”

Foi neste quadro de uma guerra fria de mal contida confrontação que Jean Monnet e Robert Schuman, ao avançarem o plano para a realização da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, iriam juntar visão política e ousadia táctica. Com a ideia gizada por Monnet, de colocar sob uma Alta Autoridade comum, “numa organização aberta à participação dos outros países da Europa”, a produção franco-alemã do carvão e do aço, abria-se o caminho não apenas a uma cooperação económica alargada, mas lançava-se igualmente o fermento político para uma rota de paz, assente numa ambiciosa unidade de um continente ainda em ruínas. O texto da famosa declaração Schuman de 9 de Maio de 1950, nona versão de um documento de franco sentido federalista, fornecia o quadro orientador para as negociações que se lhe seguiram e iriam resultar no Tratado CECA: nele se propunha “a modernização da produção e a melhoria da sua qualidade; o fornecimento, em condições idênticas, do carvão e do aço nos mercados francês, alemão e dos países aderentes; o desenvolvimento da exportação comum para outros países; a igualização de condições de vida da mão-de-obra destas indústrias”. E ainda “a circulação do carvão e do aço entre os países aderentes... imediatamente livre de direitos e não... afectada por tarifas diferenciais de transporte”, visando a nova entidade garantir “a fusão dos mercados e a expansão da produção”. No plano institucional, estipulava-se que a Alta Autoridade responsável pelo funcionamento da Organização seria composta por “personalidades independentes designadas sob uma base paritária pelos respectivos governos...sendo as suas decisões executórias”. Ao ler-se a Declaração, logo ressalta o notável equilíbrio entre arrojo inovador (a guerra terminara há cinco anos...) e habilidade técnica, entre objectivos económicos e preocupações políticas, entre urgência diplomática e linhas de compromisso, enfim, entre disciplinas de dirigismo e caminhos de liberalismo económico. Soube-se depois que a proposta de Schuman assentou em exigentes estudos de um grupo dirigido por Monnet, justamente preocupado em libertar a indústria alemã de discriminações derivadas da derrota, não repetindo assim os funestos erros de Versalhes, mas em evitar também a reconstituição do poderio germânico no Ruhr e no Sarre; em notas de reflexão com a marca diplomática do Quai; em insistentes pressões dos EUA, através do secretário de Estado Dean Acheson, para uma rápida integração política e económica da Alemanha no campo ocidental face aos riscos da estratégia expansionista soviética; no lúcido apoio de Adenauer, apesar de informado apenas nos últimos instantes. Igualmente se conhece que, ainda antes do começo das negociações do Tratado que daria corpo jurídico à iniciativa, o governo francês transmitiu um memorando a Londres (o Reino Unido era então o principal produtor das duas matérias-primas) propondo sem sucesso a sua adesão ao projecto. Era, afinal, o início de um recorrente processo de desconfianças inglesas perante a consolidação de um pensamento europeu defensor de soluções de supranacionalidade.

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Um método a servir uma estratégia

As negociações para o Tratado não foram fáceis devido à inédita delegação de fracções de soberania a um organismo supranacional independente (a Alta Autoridade), aos efeitos daquela resultantes sobre aspectos institucionais, aos receios das respectivas indústrias e, já no fim, à adversa conjuntura internacional suscitada pelo desencadear da Guerra da Coreia e pelo concomitante problema do rearmamento alemão. Sobretudo, os representantes do Benelux procuraram desde o início controlar os poderes da Alta Autoridade por nela verem uma ingerência indirecta na política económica dos Estados e um risco de intervenção nos domínios de produção, preços, salários e investimentos das empresas do carvão e do aço. Cedo se abriu um debate, que se vem repetindo ao longo do processo de construção europeia, quanto à natureza e ao consequente mandato das Instituições (Alta Autoridade, Conselho de Ministros, Tribunal, Assembleia), bem como sobre o poder de direcção política reservado aos governos nacionais. Por outras palavras, logo se começou a discutir o grau de independência a atribuir à Alta Autoridade, o tipo de controle político que lhe deveria ser imposto, as vias de recurso para defesa de interesses vitais dos países membros. De novo, a capacidade de persuasão e de compromisso de Monnet vai vencer as reservas e divergências dos negociadores e igualmente remover – mais uma vez com a ajuda de Schuman – uma proposta contrária britânica, levada a cabo no novel Conselho da Europa e assente em tradicionais ideias de cooperação internacional, bem afastadas dos caminhos de supranacionalidade que enformavam o projecto do Tratado. Ao defender vitoriosamente o seu texto, Schuman pôde sublinhar o que passaria a ser o rumo futuro do projecto europeu: “um certo abandono de soberania..., uma fusão ou gestão em comum de poderes exercidos pelos governos... (constitui o modo) de ultrapassar os egoísmos nacionais, os antagonismos e as estreitezas que matam”. O Tratado CECA será assim assinado em Paris em 18 de Abril de 1951, para entrar em vigor em 24 de Julho do ano seguinte por um período de cinquenta anos, tendo para este resultado contribuído o apoio activo da diplomacia americana, nomeadamente para dissipar as reticências institucionais holandesas e, no final, para convencer Adenauer a aceitar a desconcentração das indústrias do Ruhr. Coroava-se deste modo a visão táctica de Monnet e o êxito várias vezes repetido do seu método: “Compreendi que era preciso começar por realizações, bem mais pragmáticas e audaciosas, e atacar com audácia as soberanias nacionais sobre um ponto mais limitado”.

Sabemo-lo bem: a História dos homens é atravessada por uma linha que divide o mundo entre aqueles que souberam intuir alternativas de progresso de todos os outros que se deixaram encerrar em paralisias provocadas pelo temor da mudança. Ora, ainda as armas impunham ao mundo a sua lógica de destruição e já, em 1943, Monnet – sempre ele – escrevia “não haverá paz na Europa se os Estados se restabelecerem na base da soberania nacional, com tudo o que isso implica de políticas de prestígio e de proteccionismo económico;... os países da Europa são demasiado pequenos para dar aos seus povos a prosperidade que se torna possível e portanto necessária. Precisam por isso de mais largos mercados...” Isto se recorda, por o Tratado CECA traduzir afinal a concretização diplomática dessa ideia, pois, pela arquitectura das suas disposições, abriu caminho credível ao projecto de unidade europeia e aos textos que, de Roma a Maastricht, de Amesterdão a Nice, têm procurado ajustá-lo aos desafios de um mundo em mutação constante. Com efeito, o seu contributo para o sucesso ulterior do processo integracionista foi notável: ao estabelecer o quadro institucional (Alta Autoridade, equivalente à Comissão, Conselho, Assembleia, Tribunal), retomado em Roma e que ainda hoje assegura o quotidiano da União; ao fixar a regra da igualdade dos Estados membros; ao engenhar a colegialidade da Alta Autoridade e a sua independência em relação aos governos; ao traçar a latitude decisória do Tribunal; ao desenhar laços de colaboração e equilíbrio entre as suas Instituições; ao verter de forma jurídica precisa e detalhada objectivos e competências, numa abordagem que só seria seguida utilmente a partir do Acto Único; enfim, ao superar o plano sectorial económico para abraçar uma clara opção política.

Durante os cinquenta anos da sua vigência não foi naturalmente linear o património de resultados da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, que logo no inicio teve como presidentes da sua mais emblemática instituição, a Alta Autoridade, duas personalidades cujo peso político desbravou os tempos difíceis de qualquer começo: Monnet e René Mayer. Depois, registaram-se tensões institucionais, opondo sobretudo o executivo da CECA aos governos; a impotência resultante dos enleamentos do Conselho face à crise carbonífera do fim dos anos cinquenta; as erosões do campo de competência, nomeadamente nos planos do transporte e do nuclear com os Tratados de Roma (CEE e EURATOM), entretanto assinados; a impossibilidade de intervir num sector concorrente: o petróleo; a posterior fusão da Alta Autoridade com a Comissão de Bruxelas e a consequente perda de influência interna e externa. No seu vasto activo, cabe todavia lembrar, entre muitos outros aspectos, a racionalização e maior equilíbrio da produção siderúrgica em tempo difícil, primeiro de penúria e depois de excesso; um valioso legado de informações e experiências sobre o domínio energético; uma importante acção social de ajuda para reconversão de trabalhadores afectados pelas reestruturações no sector; um útil conhecimento sobre matérias de concorrência e investimento de que Bruxelas posteriormente iria lucrar. Várias vezes revisto ao longo da sua existência, o Tratado CECA, que expirou como previsto em 2002, deixaria como herança a prova da bondade do método supranacional sobre outras iniciativas intergovernamentais, a semente da originalidade do seu triângulo institucional, a importância de um sistema de recursos próprios como garante de maior autonomia decisória e, sobretudo, o impulso político para a Europa empreender o caminho integrador, mediante políticas e realizações concretas comuns, traves mestras da mais notável construção diplomática do século.

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Informação Complementar

Salazar e a nova Europa

A reflexão política sobre as vias a explorar para subtrair a Europa a novas confrontações não esperou pelo fim do último conflito mundial. Logo em 1943, o manifesto de Altiero Spineli, escrito na sua ilha-prisão de Ventotene, iria inspirar, ainda antes do fim da guerra, na Suíça, uma reunião da resistência não comunista, em que se apelava para “a superação do dogma da soberania absoluta dos Estados” e o estabelecimento de uma “União Federal”. A semente estava lançada para a constituição de diversas associações pan-europeias de fé federalista, mais tarde ancoradas no Movimento Europeu, e para a realização do Congresso da Haia (1948), de cujos debates resultou um projecto de texto que influenciou o tratado instituindo o Conselho da Europa, assente todavia em franco pensamento intergovernamental.

Estas movimentações sobre um reordenamento político da Europa eram de perto seguidas pelos diplomatas portugueses, que delas davam conta ao seu governo, por vezes, com mal escondida simpatia. Em Lisboa, Salazar – que continuava a ocupar a pasta dos Negócios Estrangeiros – marcou desde cedo uma orientação profundamente defensiva perante os projectos de unidade europeia. Para isso concorriam consabidas facetas da sua formação intelectual e a consciência dos perigos deles decorrentes para o regime e para a manutenção do espaço colonial português. Nos seus discursos, entrevistas ou instruções surge o desenho de um homem preso no imobilismo de ideias tradicionais, parecendo não querer ver quanto o mundo e a Europa haviam mudado. E isto, apesar da sua argúcia na análise da conjuntura e até do futuro, como ocorre quando aborda o papel da hegemonia americana, de cujos desígnios desconfiava (como nos informa Franco Nogueira), ou quando prevê para a Alemanha derrotada um lugar decisivo numa eventual federação europeia. Mas falha rotundamente ao pensar que ao Portugal do pós-guerra estaria reservada uma “maior importância internacional” (ilusão logo desfeita com a sua crescente marginalização, ao preferir à Europa um espaço ibero-americano e africano, ou ao descrer do sucesso do método supranacional de Monnet. Aliás, sobre o plano Schuman, dá a medida do seu desfasamento perante a nova realidade, ao escrever: “Parece-me que tudo, que se tente nesse sentido não tem grande viabilidade. Somos demasiado velhos – os europeus – para que não nos conheçamos uns aos outros!”... “Por felicidade, os Pirenéus são geograficamente um elemento de tanto relevo que permite à Península não ser absorvida ou decisivamente influenciada pelo peso da nova organização; mas aguardar e ver”. Viu-se.

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* José Paulouro das Neves

Embaixador. Professor Convidado da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

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