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- JANUS 2008 -



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Tratado de Lisboa: um novo desequilíbrio na União Europeia

João Maria Mendes *

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Dois anos depois da tentativa de adoptar uma Constituição Europeia, fracassada devido ao “não”, em referendo, dos eleitores franceses e holandeses, os chefes de Estado e de governo dos 27 países membros da União Europeia aprovaram em Lisboa, na noite de 18 para 19 de Outubro de 2007, um Tratado que simplifica aquela Constituição e adapta as instituições da UE à dimensão que esta adquiriu depois dos dois alargamentos de 2004 e 2007 aos países da Europa central, aos países bálticos, a Malta e Chipre.

O Tratado de Lisboa, que, salvo acidente de ratificação, entrará parcialmente em vigor em Janeiro de 2009, é um tratado “modificativo”, isto é: não substitui os tratados anteriores, antes os emenda. Oficialmente, tratava-se de reformar, emendando-os, o Tratado sobre a União Europeia (saído do de Maastricht) e o Tratado instituidor da Comunidade Europeia (saído do de Roma).

Apenas as alterações feitas aos textos desses tratados foram submetidas ao escrutínio dos chefes de Estado e de governo reunidos na capital portuguesa. As disposições não alteradas foram dadas como adquiridas (por exemplo as políticas da União descritas no Tratado de Roma e relativas à energia, à luta contra o aquecimento global, à cooperação judicial e policial...)

Isto significa que o documento de 152 páginas adoptado pela cimeira intergovernamental, e distribuído em pdf pela Internet, é ilegível pelo cidadão comum. Os juristas que, desde o início do Verão de 2007, nele trabalharam, produziram um documento sistematicamente remissivo, do tipo: “ A segunda secção do parágrafo três da disposição 128 é substituída pela seguinte redacção... ”. Um texto desta natureza é, igualmente, irreferendável.

Para que os cidadãos europeus possam tomar conhecimento do Tratado que passará a reger a vida da UE depois das ratificações de 2008, será indispensável editar uma versão do texto que dispense a consulta dos que ele emenda.

Para os seus promotores, o Tratado de Lisboa visa tornar a UE alargada “mais governável”, ou “menos ingovernável”, permitindo um melhor funcionamento das suas instituições e agilizando as tomadas de decisão no seu seio. É isso que se pretende, por exemplo, com a adopção da maioria qualificada como suficiente para aprovar propostas de deliberação em domínios em que até agora se requeria a unanimidade. Será o caso em matéria de cooperação judicial e policial, visando, quer uma nova articulação de políticas e práticas anti-terroristas, quer maior coerência entre as políticas e as práticas relativas à imigração.

Mas, mais geralmente, o novo Tratado preocupa-se com a criação de condições favoráveis à acção externa comum e à segurança interna comum da União — dois domínios que deveriam desenvolver-se fortemente no futuro próximo. Um “alto representante” que se ocupará destes dois domínios e tomará assento na Comissão, como seu vice-presidente, será a face visível da Política Externa e da Segurança Interna da UE. A preocupação com uma nova visibilidade está também presente na criação do cargo de presidente do Conselho Europeu, que poderá ser exercido durante um máximo de cinco anos (mandato de dois anos e meio renovável uma vez) e que terá a seu cargo a representação externa da União.

Todos os observadores elogiaram o nível de preparação técnica do texto pela presidência portuguesa, bem como a sua capacidade negocial. Vencida a principal prova de fogo desta presidência, o primeiro-ministro José Sócrates pôde declarar que “a Europa saíu da crise institucional e está pronta a enfrentar os desafios do futuro”, e Durão Barroso, presidente da Comissão Europeia, acrescentou que “a Europa saiu mais forte desta cimeira” e que o tratado “dá à UE a capacidade para agir no séc. XXI”. Também Gordon Brown, primeiro-ministro britânico, que garantiu previamente para o seu país todas as derrogações e regimes de excepção que pretendia, declarou que “é tempo, para a Europa, de se consagrar àquilo que de facto interessa as populações: o crescimento económico, o emprego, as alterações climáticas e as questões da segurança”. Angela Merkel, chanceler alemã, que, na anterior presidência, preparou o dossiê que os portugueses herdaram, imprimindo um ritmo decisivo à preparação do tratado aprovado em Lisboa, considerou ter sido dado “um decisivo passo em frente político”. E Nicolas Sarkozsy, o presidente francês chegado a Lisboa horas depois da confirmação pública do seu divórcio, comunicou a sua “muito grande satisfação”. Sarkozsy parece ter sido, aliás, determinante na negociação de última hora, reunindo-se com o presidente polaco Lech Kaczynski e com o chefe do governo italiano, Romano Prodi (ele próprio ex-presidente da Comissão Europeia), para com eles ultrapassar as reservas italianas e polacas sobre o texto proposto à cimeira. A sessão plenária só se iniciou depois desses encontros bilaterais, conduzindo, em tempo record , a um acordo.

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As reconfigurações adoptadas

O tratado de Lisboa significa que os actuais líderes políticos dos 27 Estados membros da UE conseguiram ultrapassar, uma vez mais, o conservadorismo churchilliano, que por definição prefere o passado ao presente e o presente ao futuro. Mas, depois das congratulações circunstanciais com o êxito do acordo, e com o fim do “longo período de debate institucional introspectivo” que paralisava a União, regressam ao primeiro plano as preocupações com o novo equilíbrio de poderes entre instituições europeias resultante do tratado, entendido como “a recuperação possível” da defunta proposta constitucional elaborada pelo antigo presidente francês Valéry Giscard d'Estaing.

A criação do cargo de presidente do Conselho Europeu, por exemplo, consagra a vitória póstuma do New Labour de Tony Blair, para quem, no pensamento britânico, o posto parece ter sido concebido (como o próprio Gordon Brown confirmou, logo após a cimeira de Lisboa). Jack Straw, um dos mais próximos colaboradores do ex-
-primeiro-ministro, recordava, em Setembro de 2007, que tal cargo permitiria “proteger os Estados membros contra o poder da Comissão”. Dias depois, em entrevista ao jornal flamengo De Standaard , Durão Barroso admitia que o novo cargo poderá gerar um novo circuito de decisão paralelo ao da Comissão e do Parlamento, favorecendo a tendência dos Estados membros para resolverem os problemas de modo intergovernamental e sem ter em conta as instituições já existentes. Barroso acrescentava que iria ser preciso estar muito atento para impedir que as inovações do tratado fossem usadas “para diminuir o poder real das [actuais] instituições”.

De facto, com o reforço de poderes de co-decisão do Conselho e do Parlamento, a Comissão, tantas vezes acusada de funcionar como um clube jacobino e sem representação democrática bastante, sai tendencialmente diminuída do Tratado de Lisboa. A “supranacionalidade” da Comissão tornou-a, frequentemente, no interlocutor predilecto dos pequenos Estados membros, contra as ambições do “directório dos grandes”. Mas, a partir de 2009, a tendência para grande parte das decisões europeias serem tomadas a nível intergovernamental e parlamentar aumenta substantivamente.

Ao mesmo tempo, os pequenos países da UE temem que os grandes se escolham a si próprios para garantir o posto de presidente do Conselho Europeu, desequilibrando a representação externa da União a seu favor e propiciando uma nova dinâmica decisional.

Mas o novo peso dos maiores países será também reforçado pelo novo sistema da dupla maioria (55% de Estados representando 65% da população da UE), que substituirá a ponderação destinada a sobrevalorizar o peso dos mais pequenos, criada em nome da igualdade de representação dos Estados membros. Por exemplo, o voto da Alemanha, que actualmente representa 8,4 % do total dos 27, passará a 16,75%. O voto de Portugal descerá dos actuais 3,47% para 2,14. Malta, o mais pequeno dos Estados membros, descerá dos actuais 0,86 para 0,08.

Quando adoptado, o princípio da dupla maioria será determinante para a formação de minorias de bloqueio das decisões da UE: quatro Estados representando 35,01% da população, ou 13 membros, passarão a poder impedir, por exemplo, a aprovação do Orçamento da UE. Bastará que Alemanha, Reino Unido, Holanda e Suécia se aliem com esse objectivo — o que seria ineficaz com as regras actuais. Pelo contrário, os mais pequenos terão de se coligar a 13 para obterem o mesmo efeito — o que a experiência aponta como muito mais difícil.

Já no tempo da proposta de Constituição de Giscard d'Estaing, os críticos previam a possibilidade de a “garantia de ganhar sempre”, obtida por um pequeno número de grandes países, poder tornar irrelevante a vida democrática da União, no tocante a muitas das suas orientações fundamentais, cuja vitalidade depende de serem amplamente partilhadas. Esse é, de facto, um risco maior do desequilíbrio consagrado pelo Tratado de Lisboa. Significativamente, os Estados mais preocupados com as consequências da adopção da dupla maioria saíram de Lisboa aliviados por ela ter sido adiada, de facto, para 2017 — talvez na esperança de que, até lá, tudo volte a ser reconsiderado.

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Informação Complementar

As inovações institucionais

As principais inovações introduzidas pelo Tratado de Lisboa, todas repescadas da Constituição falhada de Giscard d'Estaing, são as seguintes:

Uma presidência estável do Conselho Europeu substitui as presidências semestrais rotativas. A UE terá, assim, um presidente eleito pelo Conselho Europeu para um mandato de dois anos e meio, renovável uma vez. Ao presidente compete também assegurar a representação externa da União.

Os poderes do alto representante da UE para os Negócios Estrangeiros e para a Política de Segurança Comum ( duas funções numa só) são reforçados. Ele passa a presidir ao Conselho de Ministros dos Negócios Estrangeiros, acumulando o cargo de vice-presidente da Comissão. E passa a dispor de um “Serviço europeu para a acção externa”, formado por diplomatas dos diferentes Estados membros e por funcionários das instituições europeias. O voto por unanimidade permanece de regra em matéria de política externa da UE.

Três rostos: Na prática, a UE passa a ter três rostos públicos: o Presidente do Conselho Europeu, o Alto Representante e o Presidente da Comissão — destinados a entenderem-se, ou a entrarem em rota de colisão.

O Parlamento Europeu, que exerce, conjuntamente com o Conselho de Ministros, as funções legislativa e orçamental, reforça o seu papel: o âmbito da co-decisão é alargado, e o Parlamento elege o presidente da Comissão sob proposta do Conselho Europeu, “tendo em conta os resultados das eleições para o Parlamento”.

A maioria qualificada torna-se a regra das deliberações no Conselho de Ministros, exceptuando os casos em que os tratados impõem outro procedimento. O âmbito de aplicação da maioria qualificada é alargado a 50 domínios, designadamente ao da cooperação judicial e policial, dependente da co-decisão do Parlamento. Londres obteve o direito de poder participar “à la carte” nas cooperações policiais que são do seu interesse.

Um novo método de contagem de votos assegurará a maioria qualificada em Conselho de Ministros: a maioria qualificada é igual a pelo menos 55% dos Estados desde que reúnam pelo menos 65% da população total dos Estados membros (entrada em vigor em 2014). Uma minoria de bloqueio tem de ser constituída pelo menos por quatro Estados representando 35,01% da população total, ou por treze Estados membros.

É modificada a composição da Comissão. A partir de 2014, o número de comissários nacionais reduz-se a dois terços do número de Estados membros. Mas já a partir de 2009, o “alto representante” assume a sua vice-presidência.

Em matéria de Defesa, os Estados membros “comprometem-se a melhorar progressivamente as suas capacidades militares”. Os que já satisfazem “critérios mais exigentes de capacidades militares” e que aceitaram “compromissos mais pesados” podem estabelecer entre si uma “cooperação estruturada permanente”.

Valores e objectivos: o preâmbulo do tratado refere-se às “heranças culturais, religiosas e humanistas da Europa”. Aos valores de liberdade e democracia são acrescentados a não-discriminação, a justiça, a solidariedade e a igualdade entre mulheres e homens. Dos objectivos faz parte a economia social de mercado, mas não a concorrência livre e não falseada.

A Carta dos direitos fundamentais não está incluída no tratado mas, nos termos deste, a União “reconhece os direitos, liberdades e princípios” que a Carta enuncia, afirmando que esta “está dotada de valor jurídico idêntico ao dos tratados”. A Carta não se aplicará à Grã-Bretanha e à Polónia, mas adquire força de lei para os outros 25 Estados membros.

Um direito de iniciativa dos cidadãos passa a estar juridicamente previsto pela UE.

 

Deputados italianos e cláusula de Ioannina

A Itália de Romano Prodi e a Polónia dos gémeos Kaczynski trouxeram a Lisboa reivindicações de última hora que poderiam ter dificultado a aprovação do Tratado:

A Itália recusou a proposta de distribuição de deputados nacionais no futuro Parlamento Europeu (conhecida apenas na semana anterior à cimeira de Lisboa), que a faria descer a sua representação face à Grã-Bretanha e à França, até agora equiparadas. Segundo essa proposta, a França ficará com 74 deputados, a Grã-Bretanha com 73 e a Itália ficaria com 72. Os italianos trouxeram a Lisboa a exigência de pelo menos mais um deputado, argumentando que a contagem da população não pode limitar-se aos residentes e deve incluir os emigrados (o que deve ser “o número de cidadãos italianos na Europa”). Um artifício formal — a exclusão do futuro presidente do Parlamento da contagem do número de deputados — permitiu que o futuro Parlamento tenha 751 e não 750 deputados, conforme previsto, de modo a que a Itália possa subir a sua representação para 73 eleitos, equiparada à Grã-Bretanha. O presidente do conselho de ministros Romano Prodi, sob forte pressão interna nesta matéria, obteve ainda a promessa de que, “no futuro”, será o número de cidadãos e não de residentes a ser tido em conta.

Quanto à Polónia, que dois dias depois da cimeira de Lisboa levava a cabo eleições legislativas, (que, ironicamente, os Kaczynski perderam para os liberais) exigia o respeito pelo mecanismo dito de Ioannina, que permite a alguns Estados, mesmo que não consigam atingir a minoria de bloqueio, prolongar por um período de tempo “razoável” as negociações sobre um projecto de lei a que se oponham, ou congelar temporariamente uma decisão aprovada por maioria. Novo artifício permitiu satisfazer a exigência polaca: Ioannina será objecto de uma declaração anexa ao Tratado de Lisboa, e um protocolo estabelecerá que o mecanismo só poderá ser recusado por unanimidade. Por outro lado, a Polónia obteve ainda a garantia de designação de um “seu” procurador-geral junto do Tribunal Europeu de Justiça. Os procuradores-gerais, cujos pareceres são geralmente adoptados pelo tribunal, são actualmente oito em representação dos maiores Estados da UE, e serão 11 com a aplicação do Tratado de Lisboa. O presidente Lech Kaczynski pôde assim regressar a Varsóvia declarando ter obtido “tudo o que queria” e, em troca, abandonou a oposição ao princípio da contagem de votos por dupla maioria, que, de facto, é adiado para 2017.

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Calendário pós-aprovação

Aprovado pelos chefes de Estado e de governo dos países membros, o Tratado de Lisboa devia ainda passar por diversas etapas antes da sua efectiva entrada em vigor, parte da qual muito diferida:

Assinatura: a 13 de Dezembro de 2007, em Lisboa.

Ratificação: organizada por cada um dos Estados membros ao longo do ano de 2008, ou em sede de Parlamento ou através de referendo. Por imperativo constitucional, apenas a Irlanda está obrigada a referendar o Tratado de Lisboa. Na Grã-Bretanha, o primeiro-ministro Gordon Brown prepara-se para enfrentar os conservadores eurocépticos, que pretendem ver o tratado referendado. Em Portugal, a discussão da metodologia de ratificação foi adiada para depois da assinatura de 13 de Dezembro. Para o Tratado entrar em vigor, é requerido o acordo unânime de todos os Estados membros.

Entrada em vigor: o Tratado entrará em vigor em 1 de Janeiro de 2009 se os procedimentos de ratificação estiverem concluídos nessa data. Aqueles que desejavam que o presidente do Conselho Europeu e o alto representante para os Negócios Estrangeiros e para a Política de Segurança Comum só fossem designados após as eleições europeias de Junho de 2009, ao mesmo tempo que o Presidente da Comissão, não obtiveram ganho de causa.

No caso do alto representante para a política externa, que assume funções no início de 2009, incluindo as de vice-presidente da Comissão, teve-se em conta que o novo executivo europeu só será formado e aprovado pelo Parlamento em Novembro de 2009. O acordo assumido implica que a personalidade que ocupar essas funções correrá o risco de ser “confirmada”, ou não, alguns meses depois, pelos deputados europeus.

Cláusulas especiais: a redução do número de comissários para dois terços do número de Estados membros só terá lugar a partir de 2014. Quanto ao novo sistema de cálculo da maioria qualificada, entrará igualmente em vigor em 2014, ou em 2017, se um Estado membro o solicitar.

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* João Maria Mendes

Licenciado em Filosofia pela Universidade de Lovaina (Bélgica). Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa. Docente na Escola Superior de Cinema e Teatro e na Universidade Autónoma de Lisboa. Subdirector do Observatório de Relações Exteriores da UAL.

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