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Governar os OGM (Organismos Geneticamente Modificados)

Maria Eduarda Gonçalves *

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Os Organismos Geneticamente Modificados (OGM) são microrganismos, plantas ou animais nos quais foi alterado artificialmente o material genético por meio da introdução de novos genes. A engenharia ou modificação genética foi aplicada pela primeira vez nos anos 70 do século XX. Os tipos de OGM mais comuns já comercializados na Europa são derivados de soja, de milho, de rábano, de semente oleaginosa e de óleo, de variedades de sementes de algodão e milho doce, desenvolvidos com o objectivo de obter resistência a pragas de insectos ou tolerância a herbicidas.

Diferentemente de outros métodos de melhoramento, a aplicação desta tecnologia é hoje regulada detalhadamente na União Europeia (UE): investigação laboratorial, libertação experimental de OGM, colocação no mercado de OGM para fins de cultivação, importação ou transformação em produtos industriais, colocação no mercado de géneros alimentícios e alimentos para animais constituídos por ou contendo OGM, são hoje objecto de um regime europeu complexo e inovador (v. lista de directivas e regulamentos em Informação Complementar).

Este regime ilustra de forma modelar os desafios enfrentados pelas autoridades reguladoras perante inovações de base tecnológica que, ao mesmo tempo que prometem benefícios sociais e económicos, chegam envoltas em incertezas quanto aos seus possíveis impactes sobre o ambiente ou a saúde pública, o que as torna especialmente propícias a controvérsia. Acresce que as implicações transnacionais do comércio de OGM impõem uma cooperação estreita entre os Estados, bem como um papel activo das organizações internacionais competentes, como a UE e a Organização Mundial do Comércio, não se mostrando, contudo, fáceis os consensos em face de interesses económicos, percepções de risco e pressões sociais divergentes.

A regulação dos OGM tem propiciado, por tudo isso, um terreno favorável à “invenção” de princípios jurídicos e de procedimentos de regulação originais.

 

Incerteza e precaução

Às incertezas científicas que persistem neste campo, em especial quanto aos efeitos a longo prazo dos OGM, respondeu o legislador europeu com a consagração, também aqui, do princípio da precaução (v. art. 1º da Directiva 2001/18/CE). De acordo com este princípio, o ambiente e a saúde devem merecer o benefício da dúvida quando faltem provas concludentes sobre o risco de ocorrência de um dano grave e irreversível em consequência de determinada actividade ou produto. O princípio da precaução enquadra o processo de decisão em matéria de libertação experimental e de comercialização de produtos que contenham ou sejam constituídos por OGM, mas não determina a sua proibição sempre que haja dúvidas quanto à sua inocuidade. A precaução deixa, efectivamente, uma larga margem de apreciação às autoridades (Estados-membros e Comissão Europeia) para a determinação do grau de risco aceitável. Esta determinação e, em consequência, a proibição ou a autorização, com ou sem condições, de OGM, assentam nos resultados da avaliação do risco, a qual compete a cientistas e peritos designados para o efeito.

O princípio da precaução orienta inclusive o acompanhamento de OGM, uma vez licenciados. Estes são alvo de acções de monitorização que se destinam a facilitar a identificação de efeitos prejudiciais não antecipados e deverão apoiar-se na realização de investigação sistemática e independente. A imposição de requisitos específicos em matéria de rastreabilidade e rotulagem (Regulamento nº 1830/2003) prossegue um desígnio convergente: o de acompanhar o percurso dos OGM desde a sua produção à sua distribuição e circulação, a fim de controlar o cumprimento das obrigações impostas pela legislação, apurar riscos ou efeitos não previamente detectados e, se necessário, retirar os OGM do mercado.

O reconhecimento da incerteza e a prudência explicam ainda a atribuição aos Estados-- membros da faculdade de proibirem ou restringirem provisoriamente a utilização e/ou venda de OGM ou de produtos transgénicos no seu território (“cláusula de salvaguarda”), quando, no seguimento de informações novas ou suplementares disponíveis posteriormente à autorização ou de uma nova avaliação das informações existentes com base em conhecimentos científicos novos ou suplementares, tiverem razões válidas para considerar que eles constituem um risco para o ambiente ou para a saúde. Nestas circunstâncias, o Estado membro fica obrigado a fundamentar as suas medidas numa nova avaliação de risco. A decisão final pertence à Comissão, consultado o comité científico competente.

Desta breve resenha se pode extrair que não obstante a separação estabelecida no quadro deste regime entre a avaliação (científica) do risco e a decisão (política) de autorizar (ou não) os OGM, esta é sustentada de modo determinante por aquela. Ora, é precisamente o âmbito limitado da avaliação, que se circunscreve aos potenciais efeitos sobre o ambiente e a saúde, e tende a excluir a consideração das implicações económicas, sociais, éticas e culturais dos OGM, que tem estado na raiz da polémica e da contestação que têm grassado em diversos países europeus: no caso específico das culturas transgénicas, particularmente em foco nos últimos anos, temem-se não só as suas possíveis repercussões na perda da biodiversidade (em resultado de contaminação de culturas convencionais e orgânicas), mas também o controlo da produção e marketing de sementes por um número diminuto de empresas multinacionais com a inerente limitação da liberdade de escolha de produtores e de consumidores.

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Controvérsia, informação e participação

A polémica desencadeada em torno da engenharia genética tem sido, por vezes, encarada como uma oportunidade de democratizar os processos de decisão, o que se deve, precisamente, à tomada de consciência de que a definição do risco aceitável neste domínio, como noutros, não deve ficar reduzida a um exercício de base técnico-científica. A avaliação de risco não constitui um empreendimento valorativamente neutro, exigindo por isso uma participação alargada que permita entrar em linha de conta com diferentes sensibilidades éticas e culturais, e interesses económicos e sociais. Subsistem, contudo, barreiras assinaláveis, quer de natureza legal, quer política, à fundamentação das decisões nesta matéria em factores que extravasam a análise científica e técnica.

De acordo com a legislação europeia, as entidades reguladoras devem informar o público no quadro dos procedimentos de licenciamento da libertação experimental ou da colocação no mercado de OGM. O público pode aceder aos dados disponíveis e aos relatórios de avaliação e apresentar os seus comentários. Também os pareceres relativos aos géneros alimentícios e alimentos para animais devem ser divulgados publicamente, podendo ser objecto de observações de qualquer pessoa. Obrigações adicionais de informação do público impendem sobre as autoridades a respeito das libertações autorizadas, dos registos de localização de OGM cultivados e dos resultados das actividades de monitorização.

A natureza essencialmente técnica dos relatórios de avaliação e pareceres – centrados, como se apontou, na análise dos impactes e riscos ambientais e de saúde – aliada à brevidade dos prazos de consulta permitem, no entanto, duvidar que o envolvimento das partes interessadas e dos cidadãos em geral se traduza, na prática, em mais do que num exercício simbólico. Na realidade, alguns governos têm feito notar que as observações do público são demasiado genéricas para poderem ser levadas em consideração (v. Segundo Relatório da Comissão ao Conselho sobre a experiência dos Estados membros com os OGM colocados no mercado no âmbito da Directiva 2001/18/CE [SEC (2007) 274]). A Comissão Europeia tem, de resto, rejeitado a ideia de adoptar um instrumento obrigatório em matéria de consulta pública no quadro das suas políticas, com o argumento de que isso contrariaria
“a necessidade de alcançar decisões políticas em tempo oportuno”, bem como “as expectativas dos cidadãos de que as instituições europeias produzam em substância em vez de se concentrarem nos procedimentos” (v. Por uma cultura reforçada de consulta e diálogo – Princípios gerais e regras mínimas de consulta das partes interessadas pela Comissão [COM (2002) 174]).

Esta postura reforça a despolitização da regulação dos OGM. Esta tendência converge, por sua vez, com a que decorre do regulamento relativo aos géneros alimentícios geneticamente modificados (Regulamento nº 1829/2003). A preocupação central deste regulamento é proteger o consumidor. Aí se estipula que os alimentos transgénicos não devem induzir o consumidor em erro, nem apresentar um valor nutricional inferior ao seu equivalente tradicional. O regulamento prevê ainda que a decisão da Comissão de autorizar (ou não) novos géneros alimentícios atenda não só à opinião científica, mas também a “outros interesses legítimos”, admitindo a possibilidade de consulta de comités de ética, designadamente do Grupo Europeu de Ética nas Ciências e Novas Tecnologias.

No entanto, a defesa do consumidor é remetida, na prática, para o mercado, uma vez que passa sobretudo pela rotulagem de produtos OGM. Parece ser também no momento da decisão de comprar ou não um produto geneticamente modificado que o consumidor poderá fazer valer considerações ou valores de ordem ética.

Não negando embora que a regulação europeia dos OGM tem ganho em precaução, em rigor científico e em transparência, parece legítimo questionar se a estratégia seguida é de molde a assegurar uma governação verdadeiramente democrática dos OGM.

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Cooperação, integração e diferenciação

Quer a avaliação, quer a monitorização do risco de libertação experimental de OGM ou da sua colocação no mercado para fins de cultivação, importação ou transformação em produtos industriais competem à autoridade competente do Estado membro em cujo território tem lugar aquela libertação experimental ou uma primeira comercialização de OGM. Os restantes Estados-membros podem intervir, seja por meio da emissão de observações (no primeiro caso), seja por meio de objecções (no segundo caso).

Em contraste, o procedimento de avaliação referente aos géneros alimentícios e aos alimentos para animais encontra-se centralizado na Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos (AESA). Às autoridades nacionais cabe tão-só receber das empresas os pedidos de introdução de alimentos geneticamente modificados para os remeter à AESA. A autorização é concedida com base numa única avaliação de risco sob a responsabilidade desta Autoridade. Os Estados-membros participam neste processo no quadro de Comité Permanente da Cadeia Alimentar e da Saúde Animal, competindo à Comissão Europeia a decisão final de conceder ou rejeitar a autorização (“gestão do risco”).

A partilha de competências e a cooperação entre instituições europeias e nacionais para a regulação dos OGM obedece a um objectivo fundamental: a aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas nos Estados membros em obediência a elevados padrões de exigência de protecção ambiental e de saúde humana. Não é, contudo, homogénea a aplicação nos diferentes países membros das orientações e medidas europeias nesta matéria.

É, de facto, notória a tensão entre o esforço de harmonização legislativa e de coordenação institucional da UE e as diferenças manifestas nas dinâmicas do sector agrícola, nas percepções sociais do risco e no grau de mobilização de movimentos e organizações sociais de país para país. Estas diferenças repercutem-se naturalmente nas políticas das autoridades nacionais e regionais. Indicativa desta variação é, designadamente, a invocação de cláusulas de salvaguarda. Desde a entrada em vigor da Directiva 2001/18/CE, seis Estados membros mantiveram proibições provisórias de OGM autorizados, precisamente aqueles onde a resistência social aos OGM se mostrou mais enérgica (Alemanha, Áustria, Eslovénia, França, Hungria e Luxemburgo).

Portugal surge, neste contexto, como um dos países onde, de acordo com os dados do 6º inquérito do Eurobarómetro sobre “Os Europeus e a Biotecnologia” (2006), é menor a oposição aos alimentos geneticamente modificados. Em 2006, verificou-se, porém, um acréscimo significativo de área cultivada de milho geneticamente modificado no território português (mais 62,4%, relativamente a 2005) (Ministério da Agricultura, Desenvolvimento Rural e Pescas - Gabinete do Ministro, Nota de Imprensa, Coexistência entre Culturas Geneticamente Modificadas e Outros Modos de Produção, 16 de Fevereiro de 2007). A estimativa para 2007 era que essa área viesse a triplicar. Coincidência ou não, este foi também o ano em que pela primeira vez o debate extravasou, em Portugal, dos círculos de especialistas e penetrou o espaço público quando em Agosto, no Algarve, uma plantação de milho modificado foi alvo de destruição por um grupo de activistas, que reeditaram a prática de grupos congéneres noutros países europeus.

A previsível expansão das aplicações da engenharia genética (designadamente, à medicina e à saúde) aliada à sensibilidade crescente das opiniões públicas a respeito dos difíceis desafios que suscita, prometem seguramente uma procura incessante de formas de melhor governar esta controversa inovação.

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* Maria Eduarda Gonçalves

Professora catedrática do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa – ISCTE.

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