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- JANUS 2008 -



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O desemprego: desafio comum, formas variadas

Nadya Araújo Guimarães *

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O desemprego tem desafiado a agenda da política pública nos mais diferentes países do globo pelo menos desde os anos 1970. O crescimento dos índices de desocupação e a ampliação do tempo médio em que os indivíduos permanecem em busca de trabalho não apenas erodem as formas de inclusão social e os modos de vida de parcela importante dos trabalhadores, como têm posto em xeque os regimes de protecção social e as formas de institucionalização dos sistemas de emprego. Mas, se o desemprego parece ser um desafio comum, é certo que ele se expressa sob formas particulares, em diferentes contextos sociais. Identificá-las e compreender os seus efeitos são requisitos para a boa análise académica e para a adequada focalização das políticas públicas.

 

O desafio comum

Conquanto o desemprego possa parecer ao senso comum um fenómeno desde sempre existente, de facto, e como o documentaram autores como Robert Salais (1986) e Christian Topalov (1994), foi apenas na segunda metade do século XIX que as nossas sociedades inventaram uma categoria e um estatuto para codificar a condição daqueles indivíduos sujeitos a uma situação transitória de privação involuntária de emprego.

Assim conceituado, o desemprego evidenciava dois componentes centrais no código de legitimidade instalado em sociedades do trabalho, como as nossas. Primeiro, por ser ocasional, a privação de trabalho eximia aquele a ela sujeito da pecha social de “preguiçoso” (de “ocioso”, “fraco” ou “ineficiente” nos seus intentos de obter ocupação). Segundo, por ser involuntária, a privação de trabalho era “sofrida” pelo indivíduo que, desse modo, se diferenciava do trabalhador “indisciplinado”, “instável” e “irresponsável”, a quem faltariam os valores da cultura normativa da sociedade do trabalho, sendo, por isso mesmo, o agente último da sua própria exclusão. Com efeito, a única forma de desemprego de longa duração moralmente aceita à época era a dos indivíduos fisicamente incapazes para o trabalho, seja por doenças (decorrentes ou não do exercício profissional), seja por acidentes (decorrentes ou não da actividade ocupacional).

Mas o que mudou nesse antigo padrão do desemprego? Reza uma farta literatura que, a partir dos anos 1970, as estratégias empresariais passaram a estar sujeitas a uma situação de acerba competição e de inusitada exposição a padrões internacionalizados de produção e consumo, do que resultou uma intensa racionalização da produção e do trabalho. O esforço produtivo passou a ser o resultado da acção de firmas em redes, nas quais a grande empresa (“magra” e “focalizada”) estaria agora estreitamente imbricada com um número selecto de fornecedores qualificados. “Focalização” e “desverticalização”, por seu turno, estimularam o crescimento da “subcontratação” e da “externalização” do trabalho.

Quais os efeitos dessa nova realidade sobre o emprego? Alterou-se a distribuição dos postos de trabalho entre sectores e entre empresas: aumentou a ocupação nos serviços e tornou-se proeminente o emprego nas pequenas e médias empresas. Além dessa redistribuição dos postos de trabalho, verificou-se uma importante alteração nas relações sociais de trabalho: retraiu--se a forma de contratação protegida em tempo integral e avançaram as formas chamadas “atípicas” de emprego, tanto quanto o trabalho por conta própria. Uma terceira ordem de efeitos atingiu o próprio sistema de relações industriais, fragilizando os sindicatos e o seu poder de fogo para barrar iniciativas futuras de maior flexibilização das relações sociais de trabalho. Esse conjunto de traços poderia ser resumido em duas grandes (e dramáticas) tendências. Em termos qualitativos, polarizaram-se os postos de trabalho em “bons” e “maus” empregos. Em termos quantitativos, ingressámos numa era em que o incremento da produção passa a dar-se sem um aumento proporcional do emprego, levando a um desemprego estrutural e de cada vez mais longa duração.

A novidade era inquestionável e evidenciava um paradoxo: o desemprego deixava de ser codificado como a privação involuntária e ocasional do trabalho (e, como tal, juridicamente reconhecido e estatisticamente mensurado) e passava a adquirir um carácter de inusitada permanência. E assim sendo, a subtilização do trabalho já não assumia a forma (clássica e única) do desemprego aberto, passando a exprimir-se sob outras formas, tais como a do trânsito para a inactividade de indivíduos no auge da sua vida activa, a das formas precárias e/ou atípicas dos chamados “postos de baixa qualidade”, além do próprio desemprego de longa duração.

Ademais, a saída da condição de desemprego já não se fazia pela via da obtenção de uma ocupação estável. Ao contrário, os que passavam pelo desemprego, quando logravam sair dele, apresentavam uma tendência à fragilização dos vínculos subsequentes de trabalho, que os fazia candidatos potenciais a novas situações de perda de trabalho. Constituía-se uma nova figura, a do desemprego recorrente. Nessas condições, as trajectórias dos trabalhadores passaram a ter uma nova feição: em lugar de se combinarem ocupação duradoura (e protegida) com desemprego ocasional (e igualmente protegido), observa-se um novo padrão, no qual períodos duradouros de falta de trabalho passam crescentemente a entrecortar as trajectórias ocupacionais.

Nessas condições, mais indivíduos passam a procurar o suporte dos mecanismos de protecção, elevando-lhes os custos de manutenção e pondo em questão a viabilidade desses regimes de bem-estar, pelo menos nas formas como originalmente concebidos e financeiramente sustentados. Diante disso, as respostas governamentais passaram a multiplicar as restricções à duração dos benefícios e a endurecer os requisitos de elegibilidade impostos aos desempregados.

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As formas particulares de expressão

Se o desemprego duradouro e recorrente é uma constante, a desafiar o entendimento académico e as políticas públicas, os seus efeitos sobre as trajetórias dos indivíduos no mercado de trabalho variam entre sociedades. Para ilustrá-lo, lançarei mão de resultados de um projeto comparativo internacional, em que observamos mercados metropolitanos de trabalho sob distintos sistemas de emprego e de proteção (Kase e Sugita, 2006). Analisei os dados de três inquéritos por amostra representativa, realizados em importantes metrópoles mundiais – Paris (França), Tóquio (Japão) e São Paulo (Brasil) –, pesquisadas em momentos de elevado desemprego (Guimarães, 2006).

Porquê escolher justamente essas metrópoles? Porque elas ilustram três tipos de regimes de protecção social, a saber: (i) um sólido e inclusivo sistema público de protecção, como o erigido na França, cujo ápice coincide com os chamados “trinta anos gloriosos” de expansão capitalista no pós-guerra; ele tipifica uma norma de emprego por tempo indeterminado, fortemente regulamentado pelo Estado e assente sobre direitos colectivamente negociados; (ii) um pujante, conquanto selectivo, sistema privado de proteção, estabelecido no Japão durante a vigência do chamado “modelo de emprego vitalício”, e que se via submetido ao desafio do crescente desemprego e da fragmentação de trajectórias dos trabalhadores; e (iii) uma recente e restrita experiência de protecção ao desemprego, como a brasileira, criada no fim dos anos 1980, no curso da redemocratização do país, num mercado onde predominavam intensas transições entre ocupações e, nessas, um amplo peso do emprego informal.

A análise desses três casos aponta para um resultado principal. Conquanto, em todos eles, os vínculos de trabalho tendam a tornar-se mais frágeis, dado o crescente desemprego, e se intensifiquem as transições entre situações ocupacionais, a forma assumida por esse processo varia de metrópole para metrópole e configura distintos padrões. Esses padrões reflectem as normas de emprego e de protecção ao desemprego prevalecentes nos respectivos contextos institucionais. Vejamos.

No caso francês, observou-se a história laboral de uma amostra de 1.624 trabalhadores que se registaram na Primavera de 1995 na Agência Nacional pelo Emprego (ANPE), na região de Paris-Île de France, em busca de trabalho; os seus movimentos no mercado de trabalho foram acompanhados durante três anos, até 1998 (Quadro 1). O tipo de trajectória que mais se destaca é aquela marcada pela experiência de permanecer de modo duradouro no desemprego (30,7% dos casos). Ora, uma tal desocupação, aberta e contínua, só é possível num contexto, como o francês, em que a institucionalização do desemprego se fez mediante um sistema de protecção de elevada abrangência e capilaridade, diversificado pelos benefícios que outorga e duradouro pelo tempo de protecção a que dá direito. É essa estrutura institucional que permite ao indivíduo manter-se desempregado, dedicando-se apenas à busca de um trabalho. Por certo, há aqueles que fazem um percurso de saída do desemprego, que os conduz a novas ocupações; estas, entretanto, localizam-se sobretudo no mundo dos empregados regulares e directamente contratados (por tempo indeterminado, determinado, ou transitando entre uma e outra forma de contrato).

O Quadro 1 testemunha a fragilização dos vínculos e do surgimento de novas relações sociais no mercado de trabalho parisiense. Pode-se entrever o processo de ruptura da norma de emprego antes vigente, expresso nos novos tipos de contrato, precários face a essa norma; tanto quanto ficam evidentes as novas formas da política social, manifestas nos contratos instituídos pelo sistema de protecção estatal. Mas, apesar disso, são dominantes as figuras características de um mercado de trabalho capitalista: os desempregados (mesmo que duradouramente desocupados) e os empregados (mesmo que sob formas mais precárias de contrato de trabalho).

Que observamos com respeito às trajectórias das pessoas que buscavam trabalho em agências do sistema público de emprego na região metropolitana de Tóquio? Uma amostra de 1.498 indivíduos foi entrevistada e indagámos sobre o seu passado profissional entre 1990 e a data da pesquisa, em 2001. O primeiro achado a diferenciar japoneses de franceses refere-se à escassa importância dos que haviam estado duradouramente desempregados (apenas 2,6%). Antes do episódio do desemprego que os afligia no momento da pesquisa, metade dos entrevistados tinha tido os seus percursos ancorados no emprego assalariado permanente (50,4%); e mais: eles haviam passado esses onze anos trabalhando para um só empregador. Assim, na região de Tóquio, se recorrência há, ela parece ser a recorrência do emprego, duradouro e protegido pelo chamado “sistema de emprego vitalício”. Outras formas regulares de trabalho, como aquele em tempo parcial (4,7% e típico de mulheres) ou sob outros tipos de relação (3,6%), não se constituíam, como no caso francês, em percursos que tipificassem formas duráveis de trajecto para parcela importante dos indivíduos. Entretanto, cerca de um terço dos entrevistados (38,7%) já rompera vínculos e mudava de empregos de modo recorrente, evidenciando a fractura da norma ocupacional do “emprego vitalício”.

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No caso brasileiro, 6.627 pessoas foram entrevistadas na região metropolitana de São Paulo e tiveram a sua história laboral investigada entre 1994 (momento de um bem sucedido plano de estabilização económica) e 2001 (ver Quadro 3). Eles nem dispunham de uma estrutura institucional que lhes facultasse manter-se no desemprego duradouro e protegido (como em Paris), nem haviam vivencidado uma norma salarial de emprego regular e durável ao modo do “emprego vitalício” (como em Tóquio). Por isso mesmo, no Brasil a norma parecia ser a ausência de norma, ou seja, a enorme recorrência de transições entre situações no mercado de trabalho (69%), na busca por assegurar privadamente os meios da sobrevivência. Ante a recorrência (japonesa) dos empregos, quiçá se possa afirmar a recorrência (brasileira) do desemprego, irredutível, seja na sua forma, seja nas suas implicações, ao tipo (francês) de desemprego de longa duração, impraticável em São Paulo dada a ausência de um regime de protecção eficaz e inclusivo; é notável que os indivíduos duradouramente desempregados não fossem ali mais que 9% da amostra.

Com efeito, a especificidade deste terceiro padrão parece fundar-se em duas características principais. Em primeiro lugar, num um tipo de inserção no mercado de trabalho marcado pela recorrência do desemprego. Em segundo lugar, numa espécie de mobilidade que tem lugar tanto entre as situações de ocupação e desemprego (ou seja, dentro do mercado de trabalho), como entre as situações de actividade e de inactividade (ou seja, entrando e saindo do mercado de trabalho); é significativo que 22% dos entrevistados apresentasse um tipo de trajectória que os fazia cruzar regularmente as portas de saída do mercado de trabalho.

Concluindo: os três casos tomados como ilustração mostram-nos que (i) se há um processo em curso que os atinge a todos, que se sustenta no crescimento do volume e duração do desemprego, fragilizando vínculos de trabalho, (ii) tal processo se expressa segundo padrões particulares, de sociedade para sociedade, a depender das características dos seus sistemas de emprego e das suas formas de institucionalização do desemprego. Quando estas variam, fazem variar os padrões assumidos pelas transições e trajectórias ocupacionais, e também as formas do desemprego.

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* Nadya Araújo Guimarães

Doutora em Sociologia pela Universidade Nacional Autónoma do México. Pós-Doutora pelo Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT/Programa SPURS). Professora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo. Investigadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Docente no Programa de Estudos Latino-americanos da Universidade de Princeton.

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Referências bibliográficas

GUIMARÃES, Nadya A. (2006) – Unemployment and Occupational Transitions: Trajectories and Perceptions. In Kase , Kasutoshi e Sugita , Kurumi (Orgs.) – The Unemployed and Unemployment in an International Perspective: Comparative Studies of Japan, France and Brazil. Tóquio: The University of Tokyo Institute of Social Sciences, cap. 3, pp. 42-67.

KASE, Kasutoshi; SUGITA, Kurumi (Orgs.) (2006) – The Unemployed and Unemployment in an International Perspective: Comparative Studies of Japan, France and Brazil. Tóquio: The University of Tokyo Institute of Social Sciences. Também disponível como e-book em: http://halshs.ccsd.cnrs.fr/docs/00/06/12/70/PDF/ISS_Unemployment.pdf

SALAIS, Robert; BAVAREZ, Nicolas; REYNAUD, Benedicte (1986) – L'invention du chômage: histoire et transformations d'une catégorie en France des années 1890 aux années 1980. Paris: Presses Universitaires de France.

TOPALOV, Christian. (1994) – Naissance du chômeur, 1880-1910. Paris: Albin-Michel.

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Dados adicionais
Gráficos / Tabelas / Imagens / Infografia / Mapas
(clique nos links disponíveis)

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Link em nova janela Quadro 2: Trajectórias dos desempregados de Tóquio (1994 a 2001)

Link em nova janela Quadro 3: Trajectórias dos desempregados de São Paulo (1994 a 2001)

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