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- JANUS 2008 -



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Ganhadores e perdedores do processo de globalização

António Figueiredo *

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O processo de globalização constitui uma manifestação intrínseca do capitalismo, historicamente renovada, com mutações significativas, em termos quantitativos e qualitativos, dos fluxos de mercadorias e serviços, capitais e pessoas e dos seus ritmos de progressão. Diferentes periodizações são propostas pelos investigadores da longa duração, algumas das quais remontam inclusivamente a épocas anteriores à consolidação da economia-mundo como manifestação hegemónica do sistema capitalista.

Porém, se o processo não pode ser em si considerado um fenómeno recente, o mesmo não pode dizer-se quanto ao debate suscitado pela avaliação dos seus efeitos. Este, pelo contrário, intensificou-se sobretudo nos anos 90, seja em termos de investigação publicada, notoriedade na comunicação social e sobretudo enquanto factor de movimentação, por vezes violenta, de massas e de mobilização empenhada da opinião pública e dos movimentos cívicos. Tomando por referência os registos do New York Times , Stanley Fisher, na sua “ Richard T. Ely Lecture ”de 2003 na American Economic Association, identificava o ano de 2000 como o auge das entradas anuais sobre o tema, constituindo também a transição para o novo milénio um período de forte erupção de obras incontornáveis sobre o processo de globalização.

Temos assim um debate intenso e recente sobre um processo que, na sua essência, constitui a manifestação irreversível e sucessivamente renovada das condições de interdependência e de integração acrescida entre nações e indivíduos que a expansão e consolidação do capitalismo tende a gerar. É neste contexto que se situa o tema dos ganhadores e perdedores do processo de globalização.

Trata-se de um debate de sistematização complexa, sobretudo porque nele se misturam muitas variáveis e nem sempre é fácil dissociar a globalização de outros fenómenos que com ela se confundem ou mesmo a potenciam. O exemplo clássico dessa mistura difícil de discernir do ponto de vista da causalidade é dado pela incidência combinada da globalização com as transformações do progresso técnico e dos efeitos que este tende a provocar na curta e na longa duração. Trata-se de um exemplo clássico, pois, neste caso, o progresso técnico tem sido um factor poderoso de aceleração da interdependência e integração mundiais. Dessa conformidade ressente-se, por exemplo, a análise das consequências da globalização sobre o emprego.

O debate sobre os efeitos da globalização e da sua distribuição relativa entre as nações, os grupos sociais e os indivíduos tende a confundir-se com velhas controvérsias da teoria do desenvolvimento. A discussão das consequências em matéria de desenvolvimento / subdesenvolvimento da abertura e expansão dos mercados e da progressiva interdependência e integração das nações na economia-mundo constitui matéria recorrente na teoria do desenvolvimento. A estrutura de poder e a tendência intrínseca da economia-mundo para gerar assimetrias no seu seio constituíram, desde sempre, factores poderosos de alimentação de teses sobre a impossibilidade do desenvolvimento em contextos mundiais de privação de autonomia ou de cerceamento, mesmo que parcial, da livre escolha quanto às opções nacionais sobre o futuro. Daí que seja fácil rever, hoje, entre os detractores mais violentos do processo de globalização, a reentrada em cena de argumentos sobre a impossibilidade de convivência entre a integração progressiva da economia mundial e a criação de trajectórias autónomas de desenvolvimento.

 

Critérios de medida dos ganhos e das perdas

No entanto, se as controvérsias persistiram, as evidências empíricas associadas à dinâmica da globalização baralharam o debate e é nesse quadro que a divisão entre ganhadores e perdedores tem de ser colocada.

Sabemos, em primeiro lugar, que a globalização, historicamente renovada, tem acompanhado o crescimento económico per capita de longa duração e as melhorias consideráveis de bem-estar material que, globalmente, têm vindo a ser observadas. A longa duração produziu, por um lado, a progressão das condições de integração mundial e o aumento continuado do produto per capita e da produtividade. Quer isto significar que um cidadão médio necessita hoje de afectar consideravelmente menos horas de trabalho para consumir o mesmo tipo de bens consumidos há um ou dois séculos, além de poder aceder a bens e serviços então inacessíveis. Por mais relevantes que sejam os aspectos distributivos desta melhoria de bem-estar material entre os indivíduos e as nações e mesmo tendo em conta a necessidade de ponderação dos aspectos imateriais do desenvolvimento, a evolução concomitante da globalização e do bem-estar material na longa duração não pode ser ignorada.

Por isso, em nosso entender, a primeira e decisiva entrada no tema dos ganhadores e perdedores da globalização é proporcionada pela relação entre globalização e crescimento económico, entendendo este último como uma condição necessária, embora não suficiente, da redução da pobreza.

O tratamento das principais evidências empíricas nesta matéria exige cuidados especiais e o estudo da relação entre a globalização e o crescimento económico per capita exige vários patamares de reflexão. Entre as evidências empíricas e a multiplicidade de testes econométricos que se têm acumulado sobre esta questão, parece poder dizer-se que não há prova consistente de que a intensificação do processo de globalização constitua factor de impossibilidade de crescimento per capita . Esta evidência afasta, pelo menos, a hipótese dos malefícios estagnacionistas da globalização. Mas não assegura necessariamente que a abertura à integração mundial constitua, por si só, uma terra prometida acessível a todos, pelo simples facto de se aderir às regras da integração e interdependência mundiais.

Em média, uma nação mais globalizada tende a ter acesso a um ritmo mais elevado de crescimento per capita , embora essa relação tenha de ser controlada por outras variáveis e seja muito sensível aos universos de países constituídos para o efeito. No entanto, a tentativa de se retirar desta relação a prescrição de um conjunto homogéneo de medidas e políticas integradoras, a que poderíamos chamar políticas globalizadoras, na senda do incontornável Consenso de Washington, constitui uma conclusão precipitada e desprovida de fundamentação.

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Esta relação tem de ser entendida do modo seguinte. Em média, em termos de crescimento per capita e de redução da pobreza, os países mais globalizados ganham e os menos globalizados perdem. No entanto, análises mais finas põem em evidência que essa relação é mais robusta atingido que seja um determinado limiar de desenvolvimento, que não é fácil quantificar. Por outras palavras, a globalização constitui-se em oportunidade, mas a sua concretização não é indissociável de um limiar de desenvolvimento. O “mundo é plano” (Thomas Friedmann) mas não necessariamente para todos, designadamente do ponto de vista dos recursos susceptíveis de valorização na economia global. Mais ainda, a maneira de estar nesta última e as políticas públicas pró-activas de gestão da integração mundial interessam. Assim, face às principais recomendações das organizações internacionais (Banco Mundial e FMI, sobretudo), as evidências mostram que, em média, os países latino-americanos, onde foi mais intensiva a aplicação de políticas homogéneas de integração, foram, nas décadas de 80 e 90, menos recompensados em termos de crescimento per capita do que, por exemplo, os países asiáticos, em que predominaram fórmulas mais heterodoxas de activação da globalização.

Se, potencialmente, a globalização favorece o crescimento per capita , emergindo como sua condição necessária e da concomitante redução da pobreza absoluta, as evidências disponíveis sugerem que esta última tem vindo a concretizar-se a ritmos muito lentos e geograficamente muito diferenciados.

Em termos absolutos, os anos 90 permitiram concretizar uma modesta redução dos níveis de pobreza absoluta na população mundial. Se, em 1987, cerca de 1.183 milhões de indivíduos viviam com menos de 1 dólar por dia, em 1999, essa massa de indivíduos cifrava-se em cerca de 1.169 milhões de indivíduos. Se excluirmos os progressos entretanto observados na China, a população mundial em situação de pobreza absoluta segundo o critério de 1 dólar por dia aumentou de 880 milhões em 1987 para 945 milhões em 1999, o que constitui um resultado frustrante. Quer isto significar que a relação favorável econometricamente observável entre a globalização e o crescimento per capita traduz-se, na prática, por um efeito bem menos promissor em termos de redução da pobreza absoluta. De facto, a evolução dos indicadores percentuais (redução de 28,3% para 23,2% de população mundial a viver com menos de 1 dólar per capita ) não deve constituir matéria de regozijo quando a variação da massa absoluta de indivíduos em situação de pobreza absoluta é tão pouco promissora.

Em documento de reflexão estratégica do Banco Mundial, datado de Agosto de 2007, a estimativa oficial é que, em 2015, cerca de 720 milhões de indivíduos continue a viver com rendimento inferior a 1 dólar por dia, aumentando para dois mil milhões quando se eleva a fasquia para 2 dólares por dia.

A globalização e o crescimento per capita associado continuam, assim, a proporcionar ganhos na redução da pobreza absoluta, embora em condições bastante limitadas, circunscrevendo a abertura de oportunidades a grupos restritos de países e grupos sociais. Governação, particularmente a qualidade da política económica, base de recursos, sobretudo em termos de capital humano, e consistência das estratégias pró-activas de integração na economia-mundo têm vindo a ser identificados como factores de consolidação das referidas oportunidades. No que respeita à base de recursos a partir da qual se configura um perfil de especialização, evidências empíricas cada vez mais sólidas e diversificadas confirmam que os países bem dotados de recursos naturais e exportadores dos mesmos na cena mundial constituem um grupo significativo de perdedores na globalização. Nas duas últimas décadas, em muitos destes países o crescimento económico em contexto de abertura não tem sido muitas vezes suficiente para assegurar aumentos de rendimento per capita . A mediana das economias subdesenvolvidas cresceu a taxa zero nos anos 80 e 90, para além de revelar uma forte volatilidade dos ritmos de crescimento per capita .

Se tivermos em conta que as décadas de 80 e 90 veicularam uma descida considerável dos custos de acesso ao capital externo privado, facto que se traduziu num significativo aumento dos fluxos de capitais privados, com tendência para o peso do investimento directo estrangeiro aumentar no financiamento ao mundo subdesenvolvido, o carácter frustrante dos valores da redução da pobreza absoluta deve ocultar importantes efeitos distributivos da globalização. A sua rigorosa identificação é essencial para apreender quem efectivamente ganha ou perde com o processo.

 

Os efeitos distributivos ocultos da globalização

Esta questão transporta-nos a uma das vertentes mais controversas da avaliação dos efeitos da globalização, ou seja, o seu impacto sobre a desigualdade. Para o efeito do presente texto, a desigualdade em análise respeita ao rendimento (consumo) e terá por suporte de medida um qualquer indicador de dispersão estatística.

Em primeiro lugar, teremos de reafirmar que a geografia económica interessa. O impacto da globalização em matéria de desigualdade de distribuição do rendimento é muito diferenciado consoante os continentes e também entre países. Embora não sejam possíveis amplas generalizações, são muito conhecidos os casos de alguns países asiáticos que lograram crescer em termos per capita a ritmos bastante elevados e, simultaneamente, assegurar condições de neutralidade na distribuição do rendimento ou mesmo a melhoria dos padrões de desigualdade. A literatura também referencia o caso típico dos países latino-americanos, cujo reforço da integração mundial é acompanhado de padrões de desigualdade elevada na distribuição do rendimento sem tendências visíveis de inversão.

Outra evidência segura dos tempos mais recentes é o aumento significativo da desigualdade nos países da Europa central e do Leste, cujos índices aumentam significativamente com a sua integração na economia mundial e a consequente desagregação das estruturas económicas do regime de planificação central. Aliás, também em economias desenvolvidas como a França, Reino Unido e Estados Unidos da América, os dados mais recentes confirmam a ocorrência de aumentos nos indicadores de desigualdade. Se o agravamento da desigualdade no processo de transição a leste pode ser entendido como passível de correcção a médio prazo, já o agravamento da desigualdade entre os mais ricos sugere que, entre estes, a globalização tende a gerar perdedores. Vários estudos têm identificado esses perdedores sobretudo entre as populações com menor nível de qualificação, residentes em países ricos, cujo emprego tradicional foi fortemente atingido pela entrada em mercado de novos concorrentes com relações produtividade-salário mais favoráveis.

Do ponto de vista da desigualdade mundial, que considera a generalidade dos indivíduos apenas em função do seu rendimento per capita , independentemente do país em que residem, não dispomos de séries suficientemente longas para as cotejarmos com as incidências da globalização no tempo longo. Os dados mais consistentes (B. Milanovic, 2005) trabalham sobretudo os anos 90 e cruzam investigações de outros autores sobre períodos mais remotos. A desigualdade mundial evidencia uma tendência crescente desde o início do século XIX até ao início dos anos 60, para a partir daí oscilar, sem agravar os valores atingidos em 1960. A própria década de 90 apresenta esse padrão oscilante, aumentando a desigualdade na primeira metade e reduzindo-a na segunda.

Ponderadas estas limitações de evidência estatística, sabemos três coisas importantes.

Primeiro, a desigualdade mundial é sobretudo determinada pela desigualdade entre países, cabendo à desigualdade no interior dos países uma parcela diminuta de influência.

Segundo, a globalização parece ter feito desaparecer a classe média. Milanovic estima em apenas 14% a população mundial residente em países de rendimento intermédio e apenas em 6,7% a quota de indivíduos cujo rendimento os coloca entre a classe média mundial.

Terceiro, a evolução da desigualdade mundial continuará no futuro próximo a ser influenciada pela evolução relativa dos rendimentos urbanos e rurais na China e na Índia, em confronto com a evolução da desigualdade entre os mais ricos.

Conclui-se, assim, que a globalização não é neutra em termos distributivos. Mas a importância da desigualdade como factor de aferição dos efeitos da globalização vai mais além. Investigação recente (M. Ravallion, 2007) mostra que a consideração da desigualdade permite qualificar o efeito da mesma sobre o crescimento per capita e sobre a redução da pobreza absoluta. Considerando que a globalização pode ser considerada um factor potencial de crescimento per capita , vários estudos evidenciam que o crescimento do rendimento médio dos países mais pobres surge fortemente correlacionado com a evolução do rendimento médio dos 20% ou 40% mais pobres, disseminando assim efeitos positivos sobre a redução da pobreza absoluta. No entanto, o que a investigação de Ravallion nos mostra é que 1% de crescimento per capita não gera necessariamente em todos os países o mesmo efeito de redução da pobreza absoluta. A novidade vem do facto de a redução da pobreza ser tanto mais elevada quanto menos desigual for à partida a distribuição do rendimento nos países mais pobres. Assim sendo, os efeitos distributivos da globalização reocupam o lugar que lhes é devido na sua avaliação. Para além disso, moderam significativamente a difusão acrítica de uma nova ideologia: o impacto pró-crescimento e a favor dos pobres da globalização (Dollar e Kraay, 2002; Dollar, 2005).

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* António Figueiredo

Licenciado em Economia na Universidade do Porto. Professor Auxiliar Convidado da Faculdade de Economia. Foi consultor nacional junto da Comissão de Coordenação da Região Norte e consultor internacional junto da Comissão das Comunidades Europeias. Presidente do Conselho de Administração da Quaternaire Portugal desde Março de 1999.

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Referências bibliográficas

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BIRDSALL, Nancy (2005) – “A Stormy day on an Open Field: Asymmetry and Converegnce in the Global Economy”, Center for Global Development Working Paper, Washington.

DOLLAR, David e KRAAY , AArt (2002) – “Growth is Good for the Poor”, Journal of Economic Growth, volume 7, p. 195-225.

DOLLAR, David (2005) – “Globalization, Poverty and Inequality”. In WEINSTEIN , Michael (editor) (2005), Globalization: What's New?, Nova Iorque: Columbia University Press.

FISHER, Stanley (2003) – “Globalization and its Challenges”, American Economic Review, Maio.

MILANOVIC, Branko (2005) – Worlds Apart – measuring international and global inequality. Princeton: Princeton University Press.

RAVALLION , Martin (2001) – “Growth, Inequality and Poverty – looking beyond averages”, World Bank Policy Research Working Paper n.º 2.558.

RAVALLION, Martin (2007) – “Inequality is Bad for the Poor”. In Steve Jenkins e Micklewright (2007), Inequality and Poverty Re-examined, Oxford: Oxford University Press.

World Bank (2002) – Globalisation, growth and poverty, Workd Bank Policy Research Project Report, n.º 23.591, Janeiro.

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