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- JANUS 2008 -



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Trabalho digno e flexigurança

António Casimiro Ferreira *

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A agenda laboral, desde meados da década de 90, tem sido marcada por dois debates: o da criação de maiores condições de efectividade dos direitos laborais e o da ponderação das situações de flexibilidade num quadro de segurança para os trabalhadores. As noções de trabalho digno da OIT e de flexigurança da UE consubstanciam os termos de referência da agenda laboral.

Os diagnósticos das sociedades contemporâneas e do mundo laboral acentuam as dinâmicas de transformação e de crise emergentes da complexidade dos processos em curso, com especial destaque para os impactos da globalização económica e social, a expansão dos fenómenos de exclusão social, pobreza, atipicidade dos mercados de trabalho, desfiliação social, desemprego, reformas do Estado social e busca de novas formas de governação.

Uma interpretação durkheimiana da actualidade previne-nos contra os riscos de desagregação e anomia das sociedades e de questionamento das formas de solidariedade orgânica típicas da modernidade. Não podendo existir sociedades humanas sem solidariedade entre os seus membros, o escrutínio a fazer às noções de trabalho digno e de flexigurança repousa na ponderação entre os predicados da eficácia económica e da solidariedade social. A questão sociopolítica em causa é a de saber qual das noções evidencia maior capacidade de aprofundamento da vida democrática, da justiça social e de reforço dos vínculos e integração sociais. Solidariedade e integração sociais, neste âmbito, implicam os seguintes princípios: os indivíduos não são mercadorias, a universalidade dos direitos é diferente da responsabilidade individual, a lógica de funcionamento dos sistemas é diferente do “mundo da vida” e a normatividade tem uma função de socialização.

 

O paradigma dos direitos humanos e o trabalho digno

A diplomacia laboral estabelecida entre a OIT e a UE assenta num princípio de grande convergência de valores ético-políticos e de soluções de reforma dos mecanismos de protecção social e dos mercados de trabalho. Ilustração deste facto encontra-se, por exemplo, no suporte que a OIT tem encontrado na promoção do trabalho digno no mundo por parte da UE (n1). Por outro lado, a noção de flexigurança tem beneficiado de um forte acolhimento no seio da OIT, nomeadamente através das recentes pesquisas de combinação de fórmulas como maior flexibilidade e maior segurança adaptadas às necessidades dos mercados de trabalho (flexicurity) (n2). Apesar da proximidade institucional entre as duas noções (n3) , elas partem de tradições e pressupostos diferentes e constituem-se em indicadores sociológicos de dimensões distintas das sociedades.

A OIT e a sua agenda do trabalho digno (n4) funda-se na tradição da matriz social da Europa e da América do Norte assente na ideia de uma legislação internacional do trabalho desenvolvida desde o início do séc. XIX em resposta às preocupações levantadas pela designada questão social. O universalismo da vocação internacional da OIT e a sua preocupação com os direitos humanos do trabalho encontram-se, desde logo, no preâmbulo da Constituição da OIT de 1919, tendo sido aprofundado em diferentes momentos históricos.

Durante o decénio após a Segunda Guerra mundial, a Declaração de Filadélfia adoptada em 1944 pela OIT, em sintonia com os desenvolvimentos da Conferência de Bretton-Woods, constituem um novo quadro de referência para o mundo do trabalho, onde sobressai a ideia de regulação internacional do económico e do social (n5). Mesmo perante o ímpeto liberalizador do Consenso de Washington, e apesar de sujeita a uma intensa campanha de deslegitimação, a OIT soube contrapor às medidas de privatização e de redução da protecção social o princípio de que “o trabalho não é uma mercadoria”, alimentando os debates em torno da “cláusula social” e contribuindo para a sedimentação da democracia no mundo.

A vocação universalista da OIT está ainda presente na década de 90, crucial para o aprofundamento do paradigma dos direitos humanos, nomeadamente na Conferência Mundial dos Direitos Humanos de Viena (1993) e na Cimeira Mundial das Nações Unidas para o Desenvolvimento Social (1995) sobre direitos das mulheres. Em Junho de 1998 foi adoptada pela OIT a Declaração dos Princípios e Direitos Fundamentais do Trabalho, em resposta às preocupações da comunidade internacional em relação ao processo de globalização e às consequências sociais da liberalização do comércio. Os países membros da OIT reafirmaram o seu compromisso de respeitar, promover e realizar de boa fé os princípios da liberdade de associação e o reconhecimento efectivo do direito de negociação colectiva, a eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório, a abolição efectiva do trabalho infantil e a eliminação da discriminação em matéria de emprego e profissão (n6).

Em 1999, o conceito de trabalho digno e os direitos humanos do trabalho que se lhe encontram associados foram apresentados por Juan Somavia na Conferência Internacional do Trabalho. A noção resume as aspirações do ser humano no domínio das relações laborais e fixa os objectivos sociais e normativos a atingir (n7): oportunidades para realizar um trabalho produtivo com uma remuneração equitativa; segurança no local de trabalho e protecção social para as famílias; melhores perspectivas de desenvolvimento pessoal e integração social; liberdade para expressar as suas preocupações; organização e participação nas decisões que afectam as suas vidas; e igualdade de oportunidades e de tratamento para todas as mulheres e homens. A preocupação com a dimensão social está ainda presente na filiação do trabalho digno nos Objectivos do Milénio e no Relatório da Comissão Mundial Sobre a Dimensão Social da Globalização “Por uma globalização justa”.

A prossecução dos objectivos do trabalho digno deve estar no centro das estratégias globais, nacionais e locais que visam o progresso económico e social. As várias dimensões do trabalho digno e o modo como se relacionam estão na base do quadro analítico relativo à interdependência entre direitos do trabalho, emprego, segurança social e diálogo social (Ghai, 2006: 23). Os quatro componentes do trabalho digno (direitos no trabalho, segurança social, emprego e diálogo social) influenciam-se reciprocamente numa lógica de maximização das sinergias entre os seus elementos, envolvendo políticas e opções institucionais que permitam ultrapassar os constrangimentos e tensões do mundo laboral.

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A racionalidade da produtividade e competitividade e a flexigurança

O nexo flexibilidade-segurança (Wilthagen e Tros, 2004) tem um lastro significativo no seio das discussões europeias, tendo por objecto o posicionamento geoeconómico da UE, as reformas dos mercados de trabalho e a própria reforma do(s) Modelo(s) Social Europeu(s). No essencial, trata-se de combinar formas de flexibilização do mercado de trabalho com mecanismos de protecção para os trabalhadores, por forma a tornar mais competitiva a economia europeia. O Livro Branco “Crescimento, Competitividade e Emprego” (1993) e o Livro Verde “Parceria Para Uma Nova Organização do Trabalho” (1997) evidenciam já a preocupação de equilibrar a flexibilidade com a segurança. A Cimeira de Lisboa em 2000 sublinha a importância deste nexo, incorporando-o como um objectivo da Estratégia Europeia para o Emprego (EEE) que encontrará expressão nos pilares e directrizes relativos à adaptabilidade da primeira e segunda fase da EEE.

O recente Livro Verde “Modernizar o Direito do Trabalho para enfrentar os desafios do séc. XXI” (2006) coloca com grande clareza a necessidade de melhoria da capacidade de resposta dos mercados de trabalho europeus como condição essencial para promover a actividade económica e aumentar a produtividade.

Em 2003, o relatório ao Conselho europeu do Grupo de Missão sobre o emprego, presidido por Wim Kok, perspectivou a possível emergência de um mercado de trabalho a duas velocidades, constituído por trabalhadores com emprego permanente, os insiders , e os outsiders nos quais se incluem desempregados, pessoas afastadas do mercado de trabalho e aquelas que se encontrem em situações de emprego precárias e informais. Esta última categoria integra uma “zona cinzenta” que admite a redução considerável de direitos fundamentais em matéria laboral e protecção social. O debate em curso sobre a flexigurança encontra no relatório Flexicurity Pathways (2007), coordenado por Ton Wilthagen, um conjunto de cenários recentemente retomados na conferência “Os desafios Centrais da Flexigurança” em Setembro de 2007 (Lisboa).

Uma das dificuldades que o debate da flexigurança evidencia reside no que designo por efeito de redução da Dinamarca à flexigurança ou da flexigurança à Dinamarca. Ao longo dos anos 90, afirmaram-se duas grandes tendências em torno da flexibilidade e da segurança no domínio laboral. Uma assentou nos trabalhos académicos e de investigação desenvolvidos em torno das transformações e crise do trabalho, movidos pela preocupação com os processos de globalização e o seu impacto nos mercados de trabalho face a cenários de intensificação da competitividade à escala global. Este acervo de conhecimento conjugou-se e hibridizou-se com as preocupações de agências transnacionais, com especial destaque para a OCDE e as suas análises dos mercados de trabalho. Infelizmente, ao longo deste processo, a experiência dinamarquesa e dos equilíbrios nela gerados perdeu o predicado de ser uma boa prática e ganhou o estatuto descontextualizado de instrumento de reforma universal dos mercados de trabalho e do direito laboral. Esta tendência conjugou-se com a do debate político e público, a qual incorporou o equívoco do efeito anteriormente assinalado, gerando um conjunto de reacções obstaculizadoras de uma discussão serena. Para além das reacções iniciais por parte de alguns parceiros sociais europeus que discordaram do modo como a temática foi colocada pela Comissão Europeia (confira-se, por exemplo, a posição da Confederação Europeia de Sindicatos, ETUC), o próprio Parlamento Europeu levantou fortes reservas ao documento produzido pela Comissão. A internalização dos debates nos Estados-membros também não tem sido pacífica, dando origem, no caso português, a fortes tensões entre os parceiros sociais nacionais e o governo.

Os elementos constitutivos da flexigurança podem, numa definição minimalista, identificar-se nos seguintes princípios: (1) a disponibilidade das relações contratuais, encontrando flexibilidade adequada ao trabalhador e ao empregador, adaptando esta relação de acordo com as suas necessidades; (2) políticas de mercado de trabalho efectivas que permitam a transição entre empregos, a transição do desemprego e inactividade para o trabalho; (3) sistemas de formação credíveis que permitam que os trabalhadores permaneçam empregados ao longo das suas carreiras, ajudando-os a lidar com a mudança rápida, desemprego e transição para novos empregos; (4) sistemas de segurança social modernos que combinem a necessidade de facilitar a mobilidade do mercado de trabalho e a transição com ajudas durante a ausência no mercado de trabalho ( Employment in Europe , 2006: 76).

A literatura oriunda das diferentes ciências sociais e os debates políticos permitem identificar a existência de diferentes modelos de flexigurança. No entanto, em qualquer um destes fóruns de discussão, verifica-se um persistente efeito de modelização, tendo por referência a experiência dinamarquesa da flexigurança desenvolvida ao longo dos anos 90. É com base nesta realidade social que se ensaiam os exercícios políticos e teóricos de combinação da flexibilidade ligada a um mercado de trabalho liberal e uma protecção social dos welfare states escandinavos ( Social Agenda , n.º 13, 2006: 18). Vários autores (Barbier, 2007: 11)
têm chamado a atenção para o facto do debate europeu, sobretudo em sede de Comissão Europeia e de organizações como a OCDE, tender a omitir as condições sociais necessárias à combinação virtuosa entre a protecção social e o mercado de trabalho. As necessidades ligadas à identificação de boas práticas transferíveis para outros países e o exercício de benchmarking resultam numa desvalorização e universalização reificada da experiência dinamarquesa que deixa de lado o principal factor conducente ao sucesso deste país: a coerência societal e solidária (Barbier, 2007: 473-490).

Uma leitura possível do recente relatório Employment in Europe 2006 onde se desenvolve o tema da flexigurança nos mercados de trabalho europeus, é a de que perante a pressão da competitividade e produtividade europeias face aos indicadores dos Estados Unidos e do Japão, se torna inevitável uma reforma dos mercados de trabalho que leve em consideração os factores de rigidez de legislação de protecção do emprego (definida segundo os indicadores da OCDE) e que tornem mais dinâmicas as situações de transição no mercado de trabalho. A institucionalização do individualismo parece assim constituir-se num pré-requisito para o funcionamento dos mercados de trabalho. A focalização nas trajectórias individuais, presentes nos vários modelos de flexigurança e na perspectiva dos mercados de trabalho de transição, sublinha a noção de capital social ou de reflexividade, defendida por A. Giddens e, ainda que num sentido diferente, por Pierre Bourdieu, permitindo a redução do vínculo social a uma forma de património-competências que os indivíduos podem mobilizar nas suas trajectórias (Gautier, 2003).

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Informação Complementar

Constituição da OIT (1919)

Preâmbulo

Considerando que só se pode fundar uma paz universal e duradoura com base na justiça social;

Considerando que existem condições de trabalho que implicam, para grande parte das pessoas, a injustiça, a miséria e a privações, o que gera um descontentamento tal que a paz e a harmonia universais são postas em risco, e considerando que é urgente melhorar essas condições: por exemplo, relativamente à regulamentação das horas de trabalho, à fixação de uma duração máxima do dia e da semana de trabalho, ao recrutamento de mão-de-obra, à luta contra o desemprego, à garantia de um salário que assegure condições de subsistência adequadas, à protecção dos trabalhadores contra doenças gerais ou profissionais e contra acidentes de trabalho, à protecção das crianças, dos jovens e das mulheres, às pensões de velhice e de invalidez, à defesa dos interesses dos trabalhadores no estrangeiro, à afirmação do princípio “a trabalho igual, salário igual”, à afirmação do princípio da liberdade sindical, à organização do ensino profissional e técnico e outras medidas análogas;

Considerando que a não adopção, por parte de qualquer nação, de um regime de trabalho realmente humano se torna um obstáculo aos esforços de outras nações empenhadas em melhorar o futuro dos trabalhadores nos seus próprios países;

As Altas Partes Contratantes, movidas por sentimentos de justiça e de humanidade, assim como pelo desejo de assegurar uma paz mundial duradoura, e tendo em vista alcançar os objectivos enunciados neste preâmbulo, aprovam a presente Constituição da Organização Internacional de Trabalho.

Fonte: Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Disponível em: http://www.oit.org/public/portugue/region/eurpro/lisbon/html/portugal_convencoes_numero_pt.htm

 

Declaração relativa aos fins e objectivos da organização internacional do trabalho

A Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho, reunida em Filadélfia na sua vigésima sexta sessão, adopta neste décimo dia de Maio de 1944, a presente Declaração dos fins e objectivos da Organização Internacional do Trabalho, bem como dos princípios nos quais se deveria inspirar a política dos seus membros.

I

A Conferência afirma novamente os princípios fundamentais sobre os quais se funda a Organização, isto é:
a) o trabalho não é uma mercadoria;
b) a liberdade de expressão e de associação é uma condição indispensável para um progresso constante;
c) a pobreza, onde quer que exista, constitui um perigo para a prosperidade de todos;
d) a luta contra a necessidade deve ser conduzida com uma energia inesgotável por cada nação e através de um esforço internacional contínuo e organizado pelo qual os representantes dos trabalhadores e dos empregadores, colaborando em pé de igualdade com os dos governos participem em discussões livres e em decisões de carácter democrático tendo em vista promover o bem comum.

Fonte: Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Disponível em:
http://www.oit.org/public/portugue/region/eurpro/lisbon/html/portugal_convencoes_numero_pt.htm

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n1 - COM (2006) 249.

n2 - A este propósito, consultar o relatório do Director-Geral da OIT, Managing transitions: Governance for decent work (2005). Conferir também os resultados do Projecto Flexigurança da OIT. www.ilo.org/public/english/region/eurpro/budapest/employ/flex/index.htm

n3 - À qual se deveria acrescentar as noções de qualidade do emprego e “bom trabalho”.

n4 - Ver, neste mesmo número do Janus , o artigo de Paulo Bárcia “A OIT e a regulação da globalização”.

n5 - A este propósito, ver Merrien , François-Xavier (2007) – Les devenirs de la solidarité sociale .

n6 - Blanchard, F. (2004) – L'Organisation internationale du travail . Paris: Seuil. Hansenne, M. (1999) – Un garde-fou pour la mondialisation . Genebra: Editions Zoe.

n7 - Ghai , Dharam (2006) – Decent Work: objectives and strategies . Genebra: ILO.

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* António Casimiro Ferreira

Doutorado em Sociologia na especialidade do Estado, do Direito e da Administração. Professor Auxiliar da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Investigador do Centro de Estudos Sociais.

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