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- JANUS 2009 -



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Os fármacos e o mercado

Gianni Tognoni *

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A definição profunda – técnica e simbólica – de um fármaco é a de uma substância que é capaz de mudar (= controlar, resolver, abrandar) a história de uma doença (= enfermidade, sintoma, mal-estar, défice funcional) que, de outro modo, poria em risco a autonomia de vida ou a própria vida de pessoas-populações.

É quase óbvio que a disponibilidade – ou também só a esperança ou o imaginário – de um «bem» deste tipo possa representar a própria essência da medicina: seja para quem a gere como perito-responsável, seja, ainda mais, para quem é portador de uma doença/mal-estar.

Presente desde sempre na história como possibilidade e/ou como remédio concreto encontrado empiricamente nas tradições científicas e populares, o bem fármaco só muito recentemente se tem tornado um produto desenvolvido de forma cada vez mais sistemática, através da combinação da investigação biológica, fisiológica, farmacológica com a tecnologia química e farmacêutica.

Os anos 50-70 do século passado são os que coincidem com a verdadeira revolução farmacológica que abrange, praticamente, todos os sectores-chave das patologias humanas: das infecções (antibióticos e vacinas) ao âmbito cardiovascular, ao sistema nervoso central, às patologias inflamatórias, endocrinológicas, gastrointestinais e oncológicas.

De bem raro e ocasional, o fármaco passa a ser o indicador da capacidade potencialmente global de a medicina evoluir de disciplina que descreve, qualifica, diagnostica, compreende, explica (embora com aproximações sucessivas e parciais) as doenças e as suas consequências e complicações mais ou menos graves, para ciência que as previne e/ou muda o seu decurso «natural».

A revolução cognitiva (produzida e desenvolvida, antes e prevalentemente, pela investigação pública e depois, em conjunto, também pela industrial) torna-se uma revolução tecnológico-produtiva estrita e quase exclusivamente industrial.

O «bem» fármaco – que mantém e aumenta o seu carácter simbólico de resposta benéfica (apesar dos «incidentes de percurso» muitas vezes dramáticos, como o muito recente exemplo, mas não único, da epidemia de malformações devidas à talidomida do final dos anos 50, início dos anos 60) – passa a ser um bem acessível e utilizável por todos (pelo menos nos países industrializados). É o porta-voz e o alfabetizador da medicina moderna: entra nas casas e no quotidiano. O «saber» é agora fruível através de pílulas e injecções, como um qualquer bem de consumo. A «ausência» de fármacos é sinal/indicador de não-desenvolvimento, de indigência, de exclusão do «progresso».

 

Contexto 1: Fármacos essenciais

O primeiro teste do papel do indicador ambivalente do fármaco chegou muito cedo. Já em meados dos anos 70, a componente industrial da revolução tecnológico-produtiva tinha superado a cognitiva como resposta às necessidades. Perante o proliferar de muitos fármacos redundantes (= tantas moléculas terapeuticamente equivalentes para as mesmas necessidades) e o baixo conteúdo técnico (= moléculas não eficazes, ou seja, que prometem mas que não dão saúde), a OMS propõe, com o seu relatório sobre «fármacos essenciais» ( Technical Report 615, 1977), um princípio simples e óbvio do ponto de vista do direito à vida: no desenvolvimento, na normativa e na comercialização, a prioridade [exclusiva] tem de ser dada aos fármacos verdadeiros, ou seja, aos que correspondem a custos acessíveis à capacidade real de responder às necessidades de prevenção e de tratamento para a maioria das populações (não interessa de que países, desenvolvidos ou não). A «evidência» – científica, cultural, de direito – desta proposta choca de imediato com a «evidência» da resposta do mercado: pode aceitar-se, diz-se depois de décadas de debates, manter os princípios «como base», desde que não se entre em conflito ou se pretenda controlar o princípio da liberdade de mercado dos produtores. Os «fármacos essenciais» entram também nos pacotes de «recomendações» do Banco Mundial para os sistemas sanitários dos países com recursos limitados, aos quais se impõem os pacotes de ajustes estruturais, que não prevêem os serviços públicos e, por isso, os sistemas sanitários (ver «As relações entre saúde, direito, economia: os cenários»). O indicador fármaco torna-se o paradoxo das políticas que defendem a legitimidade dos direitos mas também a obrigatoriedade do mercado.

 

Contexto 2: O caso SIDA

Por volta de meados dos anos 80, a SIDA passou a representar um desafio totalmente novo e dramático mas com características «arcaicas»: a medicina-sociedade, no optimismo da revolução evocada na primeira parte, embate com uma ameaça grave da qual, sobretudo, não se conhecem os mecanismos e, por isso, ainda menos as hipóteses de encontrar respostas. Uma experiência totalmente inesperada de impotência evoca, no imaginário e na literatura científica, cenários de «peste», que têm como destinatários-vítimas não os países atrasados ou as populações marginais mas as populações habituadas ao excesso e não à ausência de [promessas de] resposta. A este cenário (que recorda «Ensaio Sobre a Cegueira», de Saramago, e que traz mudanças drásticas também na linguagem e na visibilidade da gestão de problemas esquecidos, como os dos comportamentos e das identidades sexuais), a medicina (e a sociedade) reagem logo com uma atitude de marginalização em nome da segurança.

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SIDA torna-se sinónimo de isolamento: porque perigo para a sociedade, mais ainda que para os contagiados que, nas fases terminais, são tratados no máximo com fármacos muito antigos (como o Cotrimoxazol, Bactrim), para controlar um mínimo de complicações bacterianas. Medicina sem fármacos. Indústria sem ideias. Não tolerando a impotência, chega-se ao ponto de se fingir acreditar (na literatura científica e a nível de regulamentação) que um velho fármaco antiviral seja activo. Pela primeira vez, para responder pelo menos com uma demonstração de interesse à pressão dos «doentes que contam» (devido ao elevado número e à sua representação social e emotiva), na área da política e da opinião pública, envolvem-se os doentes nas decisões relativas às metodologias e às estratégias da experimentação.

Mas é suficiente – passaram poucos anos, mais ou menos cinco – que da investigação de base se formulem hipóteses de fármacos e que na literatura apareçam resultados parciais mas promissores, para que o «cenário da peste» se transforme numa «terra prometida». A população SIDA torna-se um «recurso»: as autoridades dos países ricos estão dispostas a pagar qualquer coisa para voltar a ter uma imagem positiva de controlo. A investigação industrial apropria-se dos resultados da pública e transforma-os em patentes próprias, em fármacos a custos de outra ordem de grandeza. Cada multinacional tem de ter um fármaco próprio.

Mesmo que o maior número de doentes-mortos seja noutro sítio, em África, no Sudoeste Asiático, na América Latina, não se podem permitir «facilitações» sobre as patentes nem que se produzam «genéricos» que custam até 20-30 vezes menos do que os produtos de marca. O processo judicial interposto por um grupo de multinacionais contra a África do Sul, recém-saída do apartheid, porque pretende declarar como «essenciais» fármacos salva-vidas anti-SIDA é o indicador, já paradigmático, de um conflito que nas formas mais diversas interessa a todos os mercados e a todos os países e cuja crónica faz tão parte da história actual que não precisa de ser sintetizada nesta sede.

 

Contexto 3: Inovação

Há mais de 10 anos que dados da fonte regulamentadora e industrial concordam sobre a diminuição, cada vez mais crónica e alarmante, de registo de novas moléculas (sobretudo das chamadas blockbuster , capazes de se tornarem protagonistas do mercado).

A indústria defende a própria credibilidade da inovação:

a) criando novos-falsos diagnósticos que justifiquem novas-falsas indicações. Um processo tão praticado e estudado ao ponto de ter evocado um termo «técnico» que o qualifica, «disease mongering»;

b) impondo preços absolutamente desproporcionados para os poucos fármacos [um mínimo] inovadores;

c) pressionando a aceleração das fases de experimentação ao ponto de levar, com muita mais frequência nos útlimos anos, a verdadeiros desastres, em dois sentidos:

• excesso de mortes em pacientes expostos a fármacos cuja eficácia e segurança têm sido estudadas de forma inadequada;

• manipulação de dados de registo, de modo a exagerar os aspectos relativos à eficácia e minimizar/ocultar os de risco.

A literatura «científica» está repleta destes «escândalos» que fazem parte do capítulo já «estrutural» dos «conflitos de interesse».
O fármaco torna-se um indicador muito preciso de como a economia sem controlos de direito é uma «economia canalha» (para citar o título de um importante texto recente de macro-economia).

O jogo entre promessas «fracas» e custos «desproporcionados» abrange sectores particularmente sensíveis, não só dos cuidados de saúde mas da sociedade e da sua «civilização». Para uma visão de conjunto sobre os cenários que documentam esta situação ver os quadros anexos.

 

Fármacos e saúde?

Com um olhar sobre o futuro, esta leitura sintética da história e do presente do fármaco na sociedade e nos cuidados de saúde conduz, inevitavelmente, a uma série de invertezas. Do cruzamento entre ideias e práticas da comunidade científico-sanitária, dos regulamentos e procedimentos das autoridades regulamentadoras nacionais e internacionais, das evoluções do «global impact» da indústria farmacêutica, pode-se sintetizar o seguinte quadro realista.

1. É muito claro e reconhecido: o que se teria de fazer para dar espaço e praticabilidade à componente saúde-direito do fármaco. Em termos médicos, dir-se-ia que o diagnóstico está certo, confirmado e partilhado, e afirma que:

a) a investigação clínica (actualmente 80% é gerida pela indústria) teria de ter um apoio público nitidamente superior (pelo menos até 40%) de modo a garantir, se não independência pelo menos dialéctica;

b) uma política do fármaco compatível com as prioridades públicas é possível apenas numa lógica global de cuidados de saúde.

2. A praticabilidade de uma política mais independente por parte das autoridades nacionais e de grupos de investigação tem sido demonstrada, de modo particularmente interessante, em países e contextos normalmente «periféricos» nessa área, como o Brasil, a Itália e a Espanha (sem contar a longa tradição das «ilhas» no Canadá, Reino Unido, EUA).

A sustentabilidade e a ampliação desta tendência são tudo menos previsíveis.

3. O sector do fármaco (mais em geral, da tecnologia) mantém um papel central na evolução recente dos cuidados de saúde até uma lógica de mercado, com todas as consequências que isso comporta. As escolhas – políticas, financeiras, de regulamentação – que definiram as suas características dependem do se e quanto a saúde (com as suas ferramentas e, por isso, com os fármacos) continuará a fazer, ou não, parte dos direitos fundamentais (ver «As relações entre saúde, direito, economia: os cenários») ou se tornará (como os outros «bens comuns») um sector mais ou menos protegido do mercado.

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Informação Complementar

Doenças e fármacos que se remetem para problemas de valores e de direito

1. Psiquiatria e problemas de comportamento

Os anos 90 têm assistido, depois de 20 anos de não-novidades, ao registo de duas categorias de fármacos apresentadas como verdadeira revolução terapêutica para o tratamento da esquizofrenia e das depressões. A novidade materializa-se em termos focados em sublinhar e comunicar a sua especificidade e cientificidade: os novos antipsicóticos têm sido definidos «atípicos» (termo totalmente anticientífico que evoca simplesmente um imaginário ambíguo de «diversidade»); os antidepressivos têm-se tornado um acrónimo muito «científico»: SSRI (descreve o seu mecanismo de acção a nível de receptores do sistema nervoso central: Selective Serotonin Reuptake Inhibitors) um verdadeiro logótipo.

Actualmente é concensual que, em termos de cuidados de saúde, a sua contribuição global enquanto inovação tem sido mínima, enquanto que em termos do mercado dos «distúrbios de comportamento» tem-se assistido a uma verdadeira explosão, através de todos os mecanismos relembrados no contexto 3.

 

2. Fármacos e envelhecimento

Não é necessário salientar a importânica crítica, em termos sociais e culturais, mais do que médicos, da idade «muito avançada» e da frequência das «demências» (uma em cada quatro pessoas com oitenta anos de idade) com a consequente perda de autonomia cognitiva e de vida.

Paralelamente ao desenvolvimento dos «psicofármacos», tem-se estudado, registado e utilizado fármacos «para a demência». Não há ninguém, hoje em dia, que acredite na sua eficácia, mas são prescritos «em ausência de melhor»: vendem ilusões enquanto absorvem (por mil milhões de euros) recursos públicos e privados, subtraídos a investimentos assistenciais que, sem dúvida, garantiriam aos doentes e às famílias mais autonomia de vida e mais dignidade.

 

3. Oncologia

É o sector em mais rápida expansão «farmacológica», em termos de conhecimentos e de novas moléculas, devido aos progressos na área da biologia molecular e celular e da genética.

A espera de respostas para uma condição clínica, próprio símbolo da doença, faz com que cada «progresso» seja declarado tão importante ao ponto de justificar custos completamente «sem sentido», também quando a probabilidade de prolongar a vida (com efeitos secundários graves) manifesta-se em semanas ou em pouquíssimos meses.

Qual é o critério de escolha: quantidade de vidas marginalmente diversas mas «estatisticamente» significativas? Um juízo qualitativo de valor? Medidas a custos sustentáveis? Por parte de quem? É «admissível» permitir que a decisão seja deixada de facto à liberdade do mercado?

Tradução de Benedetta Maxia.

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* Gianni Tognoni

Médico, com especiais interesses nos domínios da farmacologia, experimentação clínica, epidemologia e saúde pública. Actualmente dirige um Instituto de investigação de fins não lucrativos, o Consorzio Mario Negri Sud. Há mais de trinta anos desenvolve actividade no campo dos direitos humanos e é Secretário Geral do Tribunal Permanente do Povos.

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