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- JANUS 2009 -



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O desenvolvimento do projecto AdC: concretizações

Jorge Sampaio *

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O projecto da Aliança de Civilizações nasceu de uma ideia lançada, originalmente em 2005, pelo Presidente do Governo espanhol, J. L. Zapatero e pelo Primeiro-Ministro turco, T. Erdogan e que o então Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, endossou.

Foi assim que foi nomeado um grupo dito de Alto Nível , composto por vinte personalidades (1), oriundas de horizontes bastante diversos em termos geográficos, culturais e mesmo profissionais, ao qual foi confiada a redacção de um Relatório sobre a Aliança de Civilizações.

Tal relatório, apresentado em 2006 (2), contém um conjunto de considerações não só sobre os contornos da iniciativa – especificando os temas abrangidos e as finalidades prosseguidas – como ainda formula um conjunto de recomendações, entre as quais se inclui a nomeação de um Alto Representante, função que o autor foi convidado a desempenhar, em Maio de 2007, pelo Secretário-Geral das Nações Unidas, Ban ki Moon.

 

O Alto Representante e os eixos de actuação

Com a nomeação do Alto Representante, suposto trazer uma liderança e um roteiro para a iniciativa da Aliança de Civilizações, esta entrou numa nova fase, que tem consistido fundamentalmente na transformação de uma ideia num projecto concreto.

Este objectivo cardeal de operacionalização da Aliança ou da sua conversão num programa de actuação, orientado para a obtenção de resultados no terreno, tem dominado a estratégia que o Alto Representante definiu para os dois primeiros anos do seu mandato, tal como expresso no Plano de Acção (2007-2009) (3), apresentado ao Secretário-Geral das Nações Unidas, em Junho de 2007 e logo tornado público.

Nesta primeira fase, têm sido três os principais eixos de actuação da Aliança: consolidação da sua base de apoio, na tripla dimensão dos Governos, das Organizações Internacionais e da sociedade civil; definição e lançamento de um conjunto de projectos concretos que marcam a presença da Aliança no terreno; estruturação e definição da Aliança, como o pilar, à escala mundial, da boa governação da diversidade cultural, no contexto de uma cultura de paz e de desenvolvimento sustentável.

A concretização da primeira dimensão comporta três sub-dimensões que se prendem respectivamente com o alargamento do «Grupo de Amigos», por forma a garantir à Aliança uma abrangência tão extensa quanto possível em termos de países-membros; a expansão virtual do Grupo de Amigos a todas as organizações internacionais e regionais relevantes, o que passa designadamente pela conclusão de acordos de entendimento e planos de acção conjuntos; a densificação da rede de parcerias com interlocutores da sociedade civil na multiplicidade das suas componentes, desde ONGs a empresas, passando por fundações, universidades, think tanks , organizações de jovens, inter-profissionais ou outras e grupos confessionais.

Quanto à dimensão «presença no terreno», a estratégia seguida visa não só a progressiva afirmação e presença da Aliança em diferentes fora internacionais, conferências e eventos, através de uma colaboração activa na sua organização, mas também a sua participação em projectos no terreno, quase sempre em parceria com diferentes inter-locutores, embora haja algumas excepções que se detalharão mais adiante.

Além disso, está ainda em estudo um conjunto de iniciativas de cooperação ao nível das cidades, com o objectivo de criar redes no terreno, envolvendo as autoridades locais mas também os actores da sociedade civil e do sector privado, cujo objectivo é desenvolver actividades conjuntas permitindo a redução das tensões multiculturais e um melhor conhecimento entre comunidades diferentes.

 

Coesão entre estratégias nacionais e internacionais

Por último, no que respeita à sustentabilidade da Aliança, esta passa pela sua incorporação nas agendas nacionais e internacionais e pela sua ancoragem no plano nacional e local. A realização deste objectivo tem exigido, por um lado, um extenso trabalho no plano dos contactos, quer ao nível político e diplomático quer técnico, com as organizações internacionais, com o fim de serem acordados princípios de colaboração, através da conclusão de acordos de entendimento e de planos de acção conjuntos.

Acresce ainda ser da maior importância o papel que aos governos cabe na ancoragem local da Aliança. Por isso, foi-lhes solicitado que, por um lado, nomeassem coordenadores nacionais da Aliança, que simultaneamente servissem também de pontos de contacto ou correspondentes nacionais e, por outro, que desenhassem e aplicassem Estratégias Nacionais para o Diálogo Intercultural.

Na economia da Aliança de Civilizações, que concentra os seus esforços na cooperação intercultural e no desenvolvimento de práticas de boa governação da diversidade cultural, as Estratégias Nacionais representam um instrumento de primordial importância. Neste sentido, a Aliança iniciou um trabalho contínuo e regular com o conjunto dos coordenadores nacionais com vista a facilitar o trabalho de elaboração das Estratégias Nacionais e a proporcionar uma plataforma de trocas de boas práticas e de intercâmbios de experiências. Embora por reflectirem situações muito diversas, tais Estratégias não sejam passíveis de ser elaboradas com base num modelo único, deverão tender, pelo menos a prazo, quer a cobrir os quatro domínios de actuação da Aliança (educação, juventude, media e integração de minorias/migrações), quer a incluir medidas e práticas que traduzam o conjunto de princípios definidores da boa governação da diversidade cultural. Tratando-se de um domínio relativamente novo, o desenvolvimento de critérios e de parâmetros adequados que constituam um paradigma de boa governação da diversidade cultural constitui, sem dúvida, um desafio futuro para a Aliança de Civilizações, a que não é alheia a problemática do respeito pelos Direitos Humanos.

Conexas às Estratégias Nacionais existem ainda outras questões pendentes, tais como a do modelo utilizado para a sua elaboração – modelo centralizado ou top down ou, ao invés, bottom up , com base num envolvimento precoce, ainda na fase da concepção, das organizações da sociedade civil –, a do modelo de implementação ou ainda de supervisão e avaliação. A abordagem que a Aliança tem seguido nesta matéria define-se pela gradualidade e pelo carácter aberto e voluntário deste processo que, se reveste, no entanto, de uma natureza prioritária para o sucesso da Aliança.

Deve salientar-se que, tomada como um todo, a estratégia seguida para transformar a ideia da Aliança de Civilizações numa iniciativa concreta e sustentável, não só no espaço como no tempo, sem, no entanto, a onerar com uma pesada estrutura burocrática, para a qual aliás a Aliança não tem meios disponíveis, aparenta-se a uma construção tripartida.

Assim, o primeiro bloco desta construção é constituído, como se acabou de ver, por planos nacionais de diálogo intercultural, com políticas claras nos domínios da educação, dos jovens, das migrações e dos media, orientadas para o desenvolvimento de uma cultura de paz, de diálogo e de respeito pela diferença, com base em conceitos e princípios de boa governação da diversidade cultural.

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Iniciativas regionais

O segundo bloco é constituído por iniciativas regionais, impulsionadas pelas organizações ou pelos processos regionais existentes, ou ainda por um país ou grupo de países de uma dada região. A prazo, será na plena utilização das próprias agências das Nações Unidas que parece necessário apostar para, de uma forma flexível, evitar redundâncias e duplicações e, ao mesmo tempo, dotar a Aliança de unidade, coerência e efectividade na sua actuação.

O terceiro bloco é constituído pelas redes associativas – de cidades, de fundações, de escolas, de universidades, de think tanks , de empresas, de ONGs, de igrejas e grupos confessionais – que, federadas na Aliança de Civilizações, através do endosso dos seus propósitos e objectivos, deverão estabelecer parcerias e desenvolver acções comuns.

Em termos muito genéricos, é no quadro de uma dinâmica com estes contornos que a Aliança será susceptível de realizar a sua vocação global de construtora de pontes entre as sociedades, de fomentadora do diálogo e do entendimento e de fermento da vontade política colectiva de abordar os desequilíbrios do mundo, tal como consta do seu relatório inspirador.

Só assim, apostando num forte enraizamento regional – escudado ademais numa adequada implantação nacional –, poderá a Aliança, por assim dizer, desglobalizar os seus objectivos universais e produzir resultados locais.

Do conjunto das actividades acabadas de referir, levadas a cabo desde a apresentação do Plano de Acção, em Junho de 2007, cabe destacar a realização do primeiro Fórum da Aliança de Civilizações, que teve lugar em Madrid, em Janeiro último (4).

Este encontro revestiu-se de uma dupla vertente: por um lado, constituiu uma espécie de plataforma para um vasto debate que reuniu mais de mil participantes, não só representantes dos Estados-membros e das organizações que fazem parte do Grupo de Amigos da Aliança, como também de fundações, académicos, líderes religiosos, empresários, organizações da sociedade civil, especialmente de jovens, etc.; por outro, serviu como um verdadeiro laboratório de projectos novos, de aprofundamento de outros em curso ou de lançamento de um conjunto de programas com a chancela da Aliança de Civilizações.

 

O Fórum da Aliança de Civilizações

De facto, o Fórum foi uma ocasião única de que resultou o anúncio de uma série de projectos, uns levados a cabo pela Aliança outros com a sua colaboração. Entre os primeiros, devem destacar-se dois: construção de « Clearinghouses » da Aliança – a primeira das quais, lançada no Fórum e centrada na chamada « Media literacy education » –, que cataloga os programas de media literacy e as políticas governamentais correlacionadas existentes nos quatro cantos do mundo.

O segundo projecto refere-se à construção de um « Rapid Response Media Mechanism (RRMM) » – uma espécie de plataforma online de acesso a uma bolsa de peritos, autores, filósofos, escritores, que podem ser consultados pelos media sobre um conjunto de questões e polémicas de sociedade, sobretudo de natureza cultural e religiosa, que, como sabemos, têm marcado o quotidiano da nossa vida em comum e sobre as quais existe, tantas vezes, tanta ignorância e tantos mal-entendidos – a título de exemplo, cabe referir que este mecanismo foi operacionalizado, pela primeira vez, por ocasião do lançamento do filme «Fitna», em Março último, tendo-se esta utilização experimental do mecanismo revelado muito positiva.

Estes dois projectos merecem especial destaque porque são específicos da Aliança e porque são susceptíveis de se revestir de uma forte componente nacional e/ou regional. Por exemplo, no âmbito do RRMM, a sua evolução natural será simultaneamente a de ir alargando e aprofundando o conjunto de matérias cobertas, mas também completando a lista dos peritos disponíveis, consolidando a sua abrangência geográfica; para este efeito, dever-se-ão incentivar os países ou das áreas linguísticas a desenvolver uma secção de recursos próprios – no nosso caso, «lusófono».

Além destes dois projectos, foram anunciadas em Madrid outras iniciativas de relevo, tais como: «Silatech», uma iniciativa dotada de uma verba inicial de cem milhões de dólares, resultante de um conjunto de parcerias internacionais, liderada pelo Qatar e destinada a fomentar a criação de emprego para jovens na zona do Magrebe; criação de um «Fundo Media», anunciada pela rainha Noor, da Jordânia, com uma dotação inicial de dez milhões de dólares provenientes do sector privado e de parcerias com empresas de Hollywood, destinado a apoiar produções media com enfoque em questões de relacionamento intercultural para serem difundidas num canal YouTube próprio; criação de um «Fundo de Solidariedade para Jovens» vocacionado para o apoio de iniciativas promovidas por jovens que incentivem o relacionamento e um melhor conhecimento entre jovens de diferentes culturas e tradições.

O Fórum de Madrid constitui um marco incontornável na história da Aliança: por um lado, simbolizou o arranque efectivo da Aliança como iniciativa com um dinamismo próprio e uma força política inegável; por outro, dotou a Aliança de um fôlego renovado e de metas de actuação claras. Desde então, as actividades desenvolvidas têm tido por objectivo não só concretizar os compromissos assumidos em Madrid como também preparar o terreno para uma nova fase da Aliança, consolidada a iniciativa em termos organizativos, estruturais e funcionais.

A tarefa da Aliança de Civilizações não é de um dia nem porventura de uma geração só. No limite, ela visa realizar o sonho kantiano da paz universal…Neste sentido, encerra algo que alguns se apressarão a rotular de utópico, desvalorizando a iniciativa. Mas podemos, ao invés, sem perder o sentido da realidade, ver nela a afirmação de uma vontade colectiva de mudar o mundo; de dizer basta de negros vaticínios acerca de uma imparável rota de colisão inter-cultural e inter-religiosa. Podemos ver na Aliança de Civilizações a expressão de um sobressalto civilizacional e uma tentativa colectiva de melhorar o ambiente humano, tal como muito recentemente o tema da protecção do ambiente e da bio-diversidade passou a ocupar o topo da agenda política internacional.

O certo é que as questões da diversidade cultural por efeito da crescente mobilidade das populações e da universalidade da comunicação em tempo real ganharam uma nova premência. O certo é que, desde o 11 de Setembro, entrámos numa fase de perigosos afrontamentos no plano internacional, que se repercutem na aldeia global em que vivemos e que não temos podido nem sabido controlar.

Uma primeira coisa parece, no entanto, segura: a Aliança de Civilizações nasce de um propósito novo – o de constituir um espaço de diálogo alargado que ultrapasse as clivagens e os bloqueios habituais que têm polarizado os debates nos fora multilaterais, dificultando decisões e opondo blocos pré-alinhados – países do Norte versus países do Sul; Ocidente versus Islão; mundo desenvolvido versus mundo em desenvolvimento.

Uma segunda coisa parece também óbvia: para se desenvolver como espaço alargado de diálogo e de cooperação, a Aliança não pode posicionar-se como mais uma qualquer comissão ou conselho das Nações Unidas nem tão pouco como uma versão restrita de uma Assembleia-Geral. Os membros que a compõem terão de se ver mutuamente mais como sócios e condóminos de um projecto comum do que como partes de uma guerra de trincheiras.

O objectivo da Aliança não é o de recriar enclaves nem de reproduzir conhecidas linhas de divisão no seu próprio seio. Bem pelo contrário, trata-se de salvaguardar o essencial, renunciando ao acessório; trata-se de, sem iludir os desacordos, aceitar que podemos dialogar, sem necessariamente ter de concordar em tudo, e sobretudo que podemos trabalhar em conjunto evitando que os desentendimentos degenerem em conflitos; trata-se, no fundo, de, da mesma lira, extrair acordes que repercutam uma certa harmonia de contrários.

Claro que a Aliança de Civilizações não deixará de ser vista e utilizada por cada um dos seus Estados-membros como um instrumento da sua própria política externa. Mas isso é muito positivo porque potencia a sua força de afirmação. No entanto, não pode deixar-se canalizar para a retórica da guerra das civilizações nem ser usada como mais uma arma de arremesso. Há que ousar esperar que os compromissos assumidos em Madrid sejam levados a cabo, com empenho e determinação e que, no cômputo geral do tempo, a soma de todos os esforços fará a diferença. É o que se verá no segundo Fórum da Aliança, que terá lugar em Istambul, em Abril de 2009.

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1 - Fizeram parte do Grupo de relatores: Professor Mehmet Aydin (Turquia), Professor Federico Mayor (Espanha), ex-Presidente do Irão, Seyyed Mohammand Khatami, Sheika Mozah bint Nasser al Missned (Qatar), Dr Ismail Serageldin (Egipto), Dr Mohamed Charfi (Tunísia), André Azoulay (Marrocos), ex-Primeiro-Ministro do Senegal (Mustapha Niasse), Arcebispo Desmond Tutu, Hubert Védrine (França), Karen Armstrong (Reino Unido), Professor John Esposito (EUA), Rabi Arthur Schneier (USA), Enrique Iglesias (Uruguai), Professor Cânido Mendes (Braisl), Dr NAfis Sadik (Paquistão), Shobhana Bhartia (Índia), Ali Alatas (Indonésia), Professor Pan Guang (China).

2 - Disponível no sítio: http://www.unaoc.org

3 - Em consulta no sítio: http://www.unaoc.org

4 - Brochura em consulta no sítio: http://www.unaoc.org ou disponível em papel quando solicitada.

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* Jorge Sampaio

Ex-Presidente da República de Portugal. Alto Representante do Secretário-Geral das Nações Unidas para a Aliança de Civilizações.

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