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- JANUS 2009 -



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Ratisbona e as ambiguidades de um processo nascente

António Marujo *

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Porque será necessário um encontro de teólogos judeus e cristãos reafirmar, em Setembro de 2008, que a Bíblia não deve ser utilizada para justificar a actual situação do Médio Oriente? Qual a razão para 138 académicos muçulmanos terem escrito ao Papa depois do discurso de Bento XVI em Ratisbona que desencadeou a fúria de tantos crentes do Islão? Porque promove a Comunidade de Santo Egídio um encontro anual que reúne crentes de várias religiões, agnósticos e ateus, para promover a paz e a tolerância? E que motivos há para o Papa e a Igreja Católica falarem do diálogo inter-religioso e, ao mesmo tempo, serem admoestados vários teólogos católicos que investigam a relação do Cristianismo com outras religiões?

O discurso do Papa Bento XVI, em Ratisbona (Alemanha), a 12 de Setembro de 2006, provocou a ira de muitos muçulmanos. Diversas reacções ao texto pareciam deitar por terra as iniciativas lançadas por João Paulo II no âmbito do diálogo inter-religioso. A pergunta que muitos fizeram na altura foi se teria mudado a atitude que, nas últimas décadas, marcara a evolução da Igreja Católica.

A data de 28 de Outubro de 1965 marca essa mudança, com a aprovação da declaração Nostra Aetate (NA), do Concílio Vaticano II (1962-65). O texto correspondia a um movimento que se vinha afirmando nas décadas anteriores, que reconhecia nas outras religiões a presença de Deus. Mas a publicação do documento marca uma etapa nova e decisiva. A partir dele, a Igreja Católica encara as outras religiões como lugares da percepção de Deus:

«Desde os tempos mais remotos até aos nossos dias, encontra-se nos diversos povos certa percepção daquela força oculta presente no curso das coisas e acontecimentos humanos; encontra-se por vezes até o conhecimento da divindade suprema ou mesmo de Deus Pai. Percepção e conhecimento esses que penetram as suas vidas de profundo sentido religioso.»

Indo mais longe, o texto evoca a radical dignidade humana de todas as pessoas, e a consequente impossibilidade de qualquer discriminação:

«Não podemos, porém, invocar Deus como Pai comum de todos, se nos recusamos a tratar como irmãos alguns homens, criados à Sua imagem. De tal maneira estão ligadas a relação do homem a Deus Pai e a sua relação aos outros homens seus irmãos que a Escritura afirma: “Quem não ama, não conhece a Deus” (1 Jo. 4,8).

Carece, portanto, de fundamento toda a teoria ou modo de proceder que introduza entre homem e homem ou entre povo e povo qualquer discriminação quanto à dignidade humana e aos direitos que dela derivam.

A Igreja reprova, por isso, como contrária ao espírito de Cristo, toda e qualquer discriminação ou violência praticadas por motivos de raça ou cor, condição ou religião.»

Além deste documento, o Concílio aprovou ainda a Declaração Dignitatis Humanae , sobre a Liberdade Religiosa, na qual faz uma outra afirmação de importância radical:

«A pessoa humana tem direito à liberdade religiosa. Esta liberdade consiste no seguinte: todos os homens devem estar livres de coacção, quer por parte dos indivíduos, quer dos grupos sociais ou de qualquer autoridade humana; e de tal modo que, em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a própria consciência, nem impedido de proceder segundo a mesma, em privado e em público, só ou associado com outros, dentro dos devidos limites. […] o direito à liberdade religiosa funda-se realmente na própria dignidade da pessoa humana, como a palavra revelada de Deus e a própria razão a dão a conhecer.»

 

Assis, um passo de gigante

Poucos documentos do género terão tido tão importantes consequências. Não só deixava de ser possível menosprezar outras religiões como se afirmava que a possibilidade de professar uma religião radica na dignidade humana. Todos os credos passavam a ser parceiros de diálogo. Iniciativas e comissões conjuntas começaram a nascer. Em 1986, com o Papa João Paulo II, dá-se um outro passo de gigante: em Assis, líderes de 60 credos diferentes (metade dos quais não-cristãos) reuniram-se naquela que foi a primeira jornada inter-religiosa de oração pela paz. O Dalai Lama, o patriarca ortodoxo, líderes judaicos e muçulmanos, responsáveis protestantes e o primaz anglicano estiveram todos juntos, rezando também ao lado de líderes de religiões animistas. Já não se tratava apenas da aceitação ou do diálogo, mas afirmava-se que todos podiam rezar em conjunto, para lá das diferentes evocações de Deus ou da divindade.

O mesmo João Paulo II repetiria a convocatória e o gesto por duas vezes, a última das quais a 24 de Janeiro de 2002, na sequência dos atentados de 11 de Setembro de 2001. Ao convidar para esta nova iniciativa, o Papa Wojtyla pretendia «rezar pela superação das oposições e pela promoção da paz autêntica; proclamar em conjunto, de modo particular a cristãos e muçulmanos, diante de todo o mundo, que a religião nunca se deve tornar motivo de conflito, ódio e violência»; e afirmar que «a humanidade precisa de ver gestos de paz e de ouvir palavras de esperança».

Quer a declaração do Vaticano II, quer as jornadas de Assis marcam o início de uma nova era: pela primeira vez na história da humanidade, o factor religioso, tantas vezes pretexto para guerras e conflitos, passava a ter como raiz primeira a tolerância, o diálogo, a convivência mútua e o respeito pelas mais profundas convicções do outro.

Tal enunciado reconhece que, em muitas das iniciativas fundadoras do diálogo inter-religioso, é a Igreja Católica que está na sua origem. Mas o caminho já percorrido não teria sido possível sem a parceria de outras igrejas cristãs e de outros credos religiosos. Facto é que este caminho levou já à criação de dinâmicas locais, regionais e mundiais que congregam responsáveis ou comunidades de diferentes religiões.

Estamos, no entanto, a assistir ao nascimento de um processo não chegado, sequer, à sua infância. Mesmo se, ao longo da história, várias pessoas protagonizaram uma atitude progressista para a sua época. Para citar apenas um exemplo conhecido, o diálogo de Francisco de Assis com o sultão Melek-el-Kamel, em Damieta (Egipto), em 1219, simboliza justamente essa intuição de romper com a lógica da violência inter-religiosa que dominou a história humana até há poucas décadas.

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Ambiguidades de um processo

Estando no começo, este processo não é isento de ambiguidades, das quais o discurso de Bento XVI, em Ratisbona, é apenas um símbolo. Mas também as reprimendas do Vaticano aos teólogos católicos que aprofundam a questão do pluralismo religioso traduzem esse movimento contraditório.

A controvérsia provocada pelo Papa na Alemanha, ao citar o imperador Manuel II Paleólogo, que relacionava o Profeta Maomé com a violência, incendiou a rua de vários países muçulmanos. Informação insuficiente, como comentou o teólogo Hans Küng sobre o deslize do Papa? Ou um mal entendido a que as imagens televisivas acabaram por dar uma dimensão maior que o esperado? Bento XVI foi obrigado a retratar-se repetindo que o seu objectivo não era ofender os crentes do Islão, acabando por pedir desculpa pública pela afirmação.

O episódio concluiu-se com o convite do Papa para uma audiência colectiva, duas semanas depois, com líderes das comunidades islâmicas em Itália e embaixadores de países de maioria muçulmana junto do Vaticano. Mas os ânimos só se apaziguaram definitivamente com a viagem de Bento XVI à Turquia, no final de Novembro de 2006, e com a imagem-emblema: o Papa católico, dentro da Mesquita Azul, em posição de oração. O próprio diria, dias depois, sobre esse momento: «Detendo-me por alguns minutos em recolhimento naquele lugar de oração, dirigi-me ao único Senhor do céu e da terra, Pai misericordioso de toda a humanidade. Possam todos os fiéis reconhecer-se Suas criaturas e dar testemunho de verdadeira fraternidade.»

No Vaticano, o episódio teve também consequências: na mesma altura, o Papa Bento XVI voltou atrás, em relação à decisão que tomara em Fevereiro de 2006, de integrar o Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-Religioso na estrutura paralela da Cultura. Os dois organismos ficaram de novo separados.

 

Vida difícil de teólogos

A aproximação da Igreja Católica a outras religiões confronta-se com uma dificuldade: os teólogos que mais têm aprofundado a questão do diálogo inter-religioso não têm tido uma vida facilitada pelo Vaticano. Apesar de coincidirem, no tempo, com as grandes iniciativas simbólicas de João Paulo II, a sua reflexão teológica foi sendo objecto de censuras várias, por parte da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), na altura presidida pelo cardeal Joseph Ratzinger, hoje Papa Bento XVI.

O caso mais gritante talvez seja o do padre jesuíta Anthony de Mello, cujos escritos foram investigados em 1998 pela CFD, decorridos onze anos sobre a sua morte. Tony de Mello, como ele assinava os livros (vários deles publicados em Portugal pela editora Paulinas) era sobretudo um conferencista e animador de retiros. Nas suas obras, reflecte essa sua actividade, recorrendo a histórias de diferentes tradições religiosas – incluindo Hinduísmo, Budismo ou Taoísmo.

Foram livros como O Canto do Pássaro , vocacionados para a reflexão e a espiritualidade, que estiveram sob a lupa minuciosa da Congregação. Na sua análise, a CDF considerava que eles continham «elementos válidos, provenientes da sabedoria oriental», mas criticava: «A revelação feita em Cristo, é substituída por uma intuição de Deus sem forma e sem imagens a ponto de falar de Deus como de um puro vazio». Num dos seus contos, Anthony de Mello escreveu, sem imaginar o que viria a suceder aos seus textos: «As pessoas matam por dinheiro ou poder. Mas os assassinos mais implacáveis são os que matam por ideias.»

No campo estrito da teologia, outro jesuíta, o belga Jacques Dupuis, viu também condenado um livro seu. Vers une théologie chrétienne du pluralisme religieux («Para uma Teologia Cristã do Pluralismo Religioso», Les Éditions du Cerf, Paris) partia da sua experiência na Índia, onde vivera entre 1948 e 1984, para propor, em 600 páginas, que o pluralismo religioso é não apenas um facto mas que tem «uma razão de ser própria». O Cristianismo devia não só perguntar-se que papel pode «atribuir às outras tradições religiosas históricas, mas procurar a razão última do próprio pluralismo» e «a possibilidade de uma convergência mútua das diversas tradições no pleno respeito das suas diferenças».

Apesar de ter sido consultor do Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-Religioso, entre 1985 e 1995, e professor na Universidade Pontifícia Gregoriana, defendendo teses radicadas nas declarações do Vaticano II já citadas, Dupuis não se livrou da censura. Valeu-lhe a defesa que dele fez o então arcebispo de Calcutá, Henry d'Souza, e o antigo arcebispo de Viena, cardeal Franz König.

 

Um balde de água gelada

Neste processo de avanços simbólicos e recuos doutrinais ou teológicos, a ambiguidade maior será, porventura,

a declaração Dominus Iesus , de Setembro de 2000. O texto caiu como um balde de água gelada nos dias que antecederam o encontro inter-religioso promovido pela Comunidade de Santo Egídio, em Lisboa. Os responsáveis da iniciativa reagiram com um misto de relativização do documento (apenas um texto, com pouca influência no processo de diálogo que já existe) e de preocupação com o seu conteúdo.

No documento, a CDF afirmava que «existe uma única Igreja de Cristo, que subsiste na Igreja Católica, governada pelo sucessor de Pedro [o Papa] e pelos bispos em comunhão com ele». Numa alusão aos ortodoxos e anglicanos, referia-se ainda que há outras igrejas que, «não estando em perfeita comunhão com a Igreja Católica, se mantêm unidas a esta por vínculos estreitíssimos, como são a sucessão apostólica e uma válida Eucaristia». Ao contrário, a maior parte das comunidades protestantes, «que não conservaram um válido episcopado e a genuína e íntegra substância do mistério eucarístico, não são Igrejas em sentido próprio».

Acerca das outras religiões, o texto também é claro: «Se é verdade que os adeptos das outras religiões podem receber a graça divina, também é verdade que objectivamente se encontram numa situação gravemente deficitária, se comparada com a daqueles que na Igreja têm a plenitude dos meios de salvação.» E acrescenta que a paridade no diálogo da Igreja com outros credos se refere «à igual dignidade pessoal das partes, não aos conteúdos doutrinais e muito menos a Jesus Cristo – que é o próprio Deus feito Homem – em relação com os fundadores das outras religiões».

O documento foi mal recebido em diferentes igrejas cristãs, mesmo se alguns o relativizavam, considerando-o tradução da convicção católica. Mas os danos provocados foram evidentes. No próprio encontro de Santo Egídio, em Lisboa, foram vários os comentários de desagrado por parte de líderes de outras religiões.

Neste processo fundador, ainda cheio de contradições e ambiguidades, não é de estranhar que o agora Papa Bento XVI afirme a necessidade imperiosa do diálogo e a busca de caminhos de reconciliação. No discurso já referido, aos embaixadores de países muçulmanos e líderes islâmicos de Itália, afirmou o Papa:

«Num mundo marcado pelo relativismo que, com muita frequência, exclui a transcendência da universalidade da razão, nós temos imperativamente a necessidade de um diálogo autêntico entre as religiões e entre as culturas, capaz de nos ajudar a superar juntos todas as tensões, num espírito de colaboração frutuosa. […] As lições do passado devem ajudar-nos a procurar caminhos de reconciliação, a fim de viver no respeito da identidade e da liberdade de cada um, em vista de uma colaboração frutuosa ao serviço de toda a humanidade. Como declarou o Papa João Paulo II no seu discurso memorável aos jovens, em Casablanca, Marrocos, “o respeito e o diálogo exigem a reciprocidade em todos os âmbitos, sobretudo no que diz respeito às liberdades fundamentais e sobretudo à liberdade religiosa. Eles favorecem a paz e o entendimento entre os povos”.»

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Informação Complementar

O conflito do Médio Oriente e o uso da Bíblia

O Médio Oriente é, provavelmente, a região do Mundo onde o diálogo inter-religioso mais é posto à prova, tendo em conta os factores políticos e económicos que cruzam as questões teológicas e religiosas. São muitos os grupos e as pessoas que defendem uma aproximação entre crentes de diferentes religiões (ver no Janus 2007 o artigo sobre o bispo Elias Chacour, por exemplo). São múltiplas também as iniciativas conjuntas, seja ao nível do simbólico (um cordão humano pela paz, na altura do Natal) ou do diálogo teológico.

Neste último âmbito, sucedem-se encontros e reuniões de responsáveis de diferentes credos. Rabis judeus, xeques e imames muçulmanos, padres e pastores de diferentes igrejas cristãs encontram-se com frequência para propor outro olhar sobre o conflito, mesmo se essas iniciativas são omitidas pelo discurso mediático.

Uma das últimas iniciativas realizou-se em Berna (Suíça), em Setembro de 2008, e congregou 85 teólogos judeus e cristãos, incluindo palestinianos, europeus e norte-americanos. Noticiada pelo serviço Ecumenical News International, do Conselho Mundial de Igrejas, a iniciativa concluiu-se avisando contra o uso da Bíblia na justificação das diferentes posições no conflito.

«O actual conflito Israel-Palestina ressoa metáforas bíblicas», dizia o texto. Mas «a Bíblia não deve ser usada» para justificar ou suportar «comentários simplistas» sobre a situação, dizia o documento final.

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* António Marujo

Licenciado em Comunicação Social pelo ISCSP. Jornalista do PÚBLICO desde 1989, onde se ocupa da informação religiosa. Colaborou com os programas “Toda a Gente é Pessoa” (RDP-Antena 1) e “Setenta Vezes Sete” (RTP). Foi redactor da revista “Cáritas”, do “Expresso” e do “Diário de Lisboa”. Co-autor do documentário “Senhora de Maio”. Vencedor (1995 e 2005) do Prémio Europeu de Jornalismo Religioso na Imprensa Não Confessional, da Conferência das Igrejas Europeias e Fundação Templeton. Tem quatro livros publicados.

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Fontes consultadas

Concílio Ecuménico Vaticano II, ed. AO (Apostolado da Oração), Braga, 8.ª edição, 1979.

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