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- JANUS 2009 -



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Direitos Humanos e diálogo intercivilizacional

Patrícia Jerónimo *

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Em vista do respeito pelas identidades culturais subjacente ao diálogo entre civilizações em curso, seria de esperar que um consenso universal sobre os Direitos Humanos fosse tomado como um desiderato a alcançar idealmente no decorrer do processo e não como um seu ponto de partida inegociável. Não é isso, no entanto, que se verifica, o que permite antecipar alguns (não negligenciáveis) focos de ruído.

 

Os termos do diálogo

A decisão de celebrar 2001 como o Ano do Diálogo entre Civilizações, tomada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas, com base numa proposta do então presidente iraniano Mohammad Khatami, ficou a dever-se, em boa medida, à necessidade de repudiar o maniqueísmo incendiário da tese de Samuel Huntington sobre um iminente choque de civilizações e impedir que esta se tornasse uma self-fulfilling prophecy . O texto da resolução n.º 55/23, de 13 de Novembro de 2000, reconheceu existirem especificidades civilizacionais, elogiou a diversidade como precioso património da humanidade e apelou ao respeito pelas crenças, culturas e idiomas de todos os seres humanos. Acrescentou, porém, que o respeito pela diversidade depende forçosamente da protecção universal dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. E exemplificou apontando como indispensável a emancipação das mulheres...

Estas ideias foram retomadas pela resolução n.º 56/6, de 9 de Novembro de 2001, que definiu uma Agenda Global para o Diálogo entre Civilizações, escassos meses passados sobre os ataques terroristas em Washington e Nova Iorque. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, apesar de tantas vezes denunciada como instrumento da hegemonia ocidental, surge aí na qualidade de parâmetro comum a todos os povos. E os Direitos Humanos, porque correlato da dignidade inerente a todas as pessoas, são ditos universais, indivisíveis, inter-relacionados e interdependentes. É para defesa destes direitos que, em primeira linha, importa empreender um diálogo entre civilizações, identificando e promovendo os valores comuns aos vários povos, de modo a oferecer uma resposta conjunta aos grandes desafios com que se depara a humanidade. Pretende-se, por certo, incentivar o respeito pela diversidade cultural, mas apenas na estrita medida em que isso não colida com os princípios fundamentais contidos na Declaração Universal, desde logo o de iguais direitos para homens e para mulheres.

Também em Novembro de 2001, a Conferência Geral da UNESCO adoptou, por unanimidade, a Declaração Universal sobre Diversidade Cultural, um documento que, logo no seu texto preambular, sublinha a importância da tutela dos Direitos Humanos e liberdades fundamentais consagrados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e noutros instrumentos jurídicos universalmente reconhecidos. O articulado inclui uma secção com a epígrafe diversidade cultural e direitos humanos, onde pode ler-se que a defesa da diversidade cultural é um imperativo ético indissociável do respeito pela dignidade humana e se proibe a invocação da diversidade cultural para justificar o desrespeito ou a limitação de direitos humanos garantidos pelo Direito Internacional (artigo 4.º). Diz-se ainda que os direitos culturais são parte integrante dos Direitos Humanos, que são universais, indivisíveis e interdependentes; e que todos têm o direito de participar na vida cultural que escolham, desde que dentro do respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais (artigo 5.º).

Ainda sob os auspícios da UNESCO, veio a ser celebrada, a 20 de Outubro de 2005, a Convenção sobre a Protecção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, que Portugal ratificou em Março de 2007. Reconhece-se que a diversidade cultural é uma característica essencial da humanidade e que o respeito mútuo entre os povos e as culturas é indispensável à paz e à segurança a nível local, nacional e internacional. A diversidade cultural, entretanto, é elogiada pelo seu contributo para a plena realização dos Direitos Humanos e das liberdades fundamentais proclamados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e noutros instrumentos universalmente reconhecidos. A Convenção tem, entre os seus objectivos, o de proteger e promover a diversidade das expressões culturais e incentivar o diálogo entre culturas, em prol do respeito intercultural e de uma cultura de paz (artigo 1.º). A prossecução desses objectivos deve pautar-se pelo princípio da igual dignidade e do respeito de todas as culturas, mas também, e antes de mais, pelo princípio do respeito dos Direitos Humanos, segundo o qual a diversidade cultural só pode ser protegida e promovida se forem assegurados os direitos humanos e as liberdades fundamentais (como a liberdade de expressão, de informação e de comunicação ou a possibilidade de os indivíduos escolherem as suas expressões culturais) e não é permitido invocar o disposto na Convenção para atentar contra os direitos humanos e as liberdades fundamentais consignados na Declaração Universal dos Direitos do Homem ou garantidos pelo direito internacional, nem para limitar o respectivo âmbito de aplicação (artigo 2.º).

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O relatório apresentado em 2006 pelo Grupo de Alto Nível constituído no âmbito da Aliança das Civilizações baseia-se igualmente na Declaração Universal dos Direitos do Homem e sustenta, sem surpresa, que a estabilidade social e a paz nas relações internacionais dependem de uma completa adesão às normas consagradoras de direitos humanos. Todos os Estados, organizações internacionais, actores não governamentais e indivíduos, em quaisquer circunstâncias, devem respeitar estes direitos, que incluem a proibição da tortura, a liberdade religiosa e a liberdade de expressão e que, pela sua natureza, são universais e incondicionais. O relatório também afirma que não existe nenhuma hierarquia entre culturas e, a propósito da pretendida universalização dos sistemas democráticos, recomenda que se deixe que a democracia emirja organicamente das culturas próprias de cada sociedade, no respeito pelos valores perfilhados pelos seus membros e de acordo com as respectivas necessidades.

Seria oportuno estender este raciocínio aos Direitos Humanos, cuja universalidade tem sido fortemente contestada fora do Ocidente, desde logo no mundo muçulmano, o inimigo cuja fúria os apelos ao diálogo pretendem aplacar. Para sermos consequentes com o tão propalado respeito pelas outras culturas, importa que sejamos capazes de compreender que a tutela da dignidade da pessoa humana não passa necessariamente pela atribuição de um vasto leque de direitos subjectivos e que princípios como a igualdade de género ou a primazia da liberdade de expressão sobre os sentimentos religiosos são susceptíveis de ferir o sentimento de justiça de muitas pessoas. A insistência sobre o carácter universal e absoluto dos Direitos Humanos afigura-se, por isso, contraproducente.

 

Civilizações e direitos

Os Direitos Humanos, tal como estão consagrados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e demais documentos complementares, são um produto da Europa moderna, o que se reflecte em três aspectos fundamentais: a centralidade do indivíduo, a primazia dos direitos sobre os deveres e a prioridade dada ao conflito sobre a conciliação. O facto de terem conhecido uma expansão extraordinária e de constituírem hoje parte do vocabulário inevitável nas relações internacionais (adoptado mesmo por aqueles que censuram o imperialismo dos Direitos Humanos) não obsta a que continuem a ser uma construção ocidental de aplicabilidade limitada. São a forma que o Ocidente encontrou para proteger a dignidade da pessoa humana, mas outras, igualmente legítimas e merecedoras de respeito, se afiguram possíveis. Ainda que possamos falar de uma natureza humana, não podemos pretender que ela se realize numa qualquer humanidade abstracta. O homem realiza a sua natureza no seio de culturas, sendo dessa circunstância que resulta a consciência que tem de si próprio, do seu lugar no mundo e da sua relação com os outros. A diferentes culturas correspondem, por isso, diferentes formas de conceber a condição humana e de lhe oferecer uma adequada tutela. Não existe um modelo único, nem sequer um modelo melhor.

É certo que a adopção desta perspectiva relativista nos impõe uma imobilidade incómoda, forçando-nos ao convívio com valores e práticas que chocam frontalmente com os nossos mais elementares princípios de justiça. E faz-nos incorrer no risco de pactuar com aproveitamentos políticos que pervertem inteiramente a lógica do respeito pelas culturas. Parece-nos, no entanto, que não pode ser de outro modo. Se acreditamos, como fazemos, na igual dignidade de todos os homens e respectivas identidades culturais, somos forçados a admitir que as formas de vida por eles adoptadas não têm de ser idênticas à nossa. Por muito que estejamos certos da bondade dos nossos valores, nada nos autoriza a pretender estendê-los aos outros. Nem mesmo a pretexto de os libertar.

Isso não significa, no entanto, que devamos prescindir da procura de valores e de regras que sejam comuns a todos os povos. É esse o propósito e a promessa de um diálogo entre civilizações pautado pelo reconhecimento e respeito mútuos. Necessário é que não partamos para o diálogo começando por impor aos nossos interlocutores uma adesão incondicional às nossas verdades. O resto do mundo, que abraçou com entusiasmo o lema do diálogo entre civilizações, tem legítimas expectativas de poder fazer ouvir a sua versão da história, superando estereótipos e outros mal entendidos. Sem ter de se sujeitar ao paternalismo condescendente dos velhos senhores, como sublinha a Declaração de Tunis para a Aliança de Civilizações, emitida em Fevereiro de 2006 no âmbito de um Simpósio Internacional organizado pela Islamic Educational, Scientific and Cultural Organization (ISESCO).

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Informação Complementar

Islão e Direitos Humanos

Confrontados com as insistentes denúncias ocidentais de violação dos direitos humanos, os líderes políticos e religiosos islâmicos respondem acusando o Ocidente de etnocentrismo e hipocrisia. As suas críticas, dizem, pecam por falta de legitimidade, uma vez que são formuladas a partir de valores próprios da civilização ocidental e estranhos ao mundo muçulmano. Não têm, de resto, razão de ser, atenta a circunstância de o Islão dispor de um padrão muito superior de tutela da dignidade dos seres humanos, o contido na Sharia, a Lei revelada, cujas principais fontes são o Alcorão e a Sunna , a tradição do Profeta Maomé. A Sharia não apenas se antecipou em mais de mil anos na consagração dos direitos que hoje ufanam o Ocidente como ainda representa – ao contrário das declarações ocidentais – um quadro normativo incontestável, verdadeiramente absoluto. Os direitos nela previstos, que advêm aos homens pela sua condição de representantes de Deus na Terra, não se limitam a ser o produto de concretas e volúveis vontades humanas, são expressão da vontade divina. Compõem um catálogo mais rico e mais vasto do que o dos textos ocidentais, porque não esquecem dimensões humanas da maior importância como a fé, os laços familiares, a solidariedade e a honra. A liberdade humana é plenamente respeitada sem cair no materialismo e no individualismo que viciam o modelo ocidental. A Sharia consagra, designadamente, os direitos à vida, à integridade física, ao respeito pela castidade das mulheres, a um mínimo nível de vida, à liberdade, à justiça, a um tratamento não discriminatório, à segurança da propriedade, à honra, à liberdade de pensamento e de expressão (desde que dirigidas à propagação da verdade e da virtude), à liberdade de consciência, à protecção dos sentimentos religiosos e a um governo justo conforme à Lei de Deus. É pela obediência à Lei divina que os muçulmanos se realizam e se tornam livres (esse é o sentido do conceito de taklif, fundamental para a jurisprudência islâmica). Antes de serem titulares de direitos, os muçulmanos têm deveres para com Deus e para com os demais membros da Umma, a comunidade de fiéis. Deste entendimento decorre não apenas que os direitos à vida e à dignidade pessoal podem ser sacrificados em homenagem ao interesse comunitário, mas também que os direitos económicos e sociais dependem, para serem satisfeitos, do concurso dos restantes membros da comunidade. Um humanismo idiossincrático que podemos encontrar nas recentes declarações islâmicas de direitos do homem, elaboradas em jeito de réplica à arrogância ocidental e que apenas na forma se assemelham ao cânone cunhado pelas Nações Unidas. Os direitos individuais contidos na Declaração Islâmica Universal dos Direitos do Homem, de 1981, na Declaração do Cairo sobre Direitos Humanos no Islão, de 1990, e na Carta Árabe de Direitos Humanos, de 1994, têm o exacto alcance que lhes é atribuído na Sharia, nada mais. Daí que, por exemplo, a igual dignidade de homens e mulheres ande a par com uma distribuição desigual dos deveres de uns e outros no seio da família; e que o exercício da liberdade de expressão seja subordinado à propagação da verdade e ao respeito pelos sentimentos religiosos de todos.

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* Patrícia Jerónimo

Licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Doutorada em Direito pelo Instituto Universitário Europeu de Florença. Docente na Escola de Direito da Universidade do Minho. Tem trabalho publicado em revistas nacionais e estrangeiras. Autora do livro Os Direitos Humanos à Escala das Civilizações. Proposta de Análise a partir de um confronto dos modelos ocidental e islâmico.

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