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Janus 1997



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Resta-nos a Cultura, Claro

Eduardo Prado Coelho*

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1. Solicitado a reflectir sobre Portugal, a sua forma de estar no mundo de hoje, a sua eventual imagem no mundo, o modo contemporâneo de ser português, e as modas desse modo, começo por recorrer à minha própria experiência, a mais recente, e percorrer de novo as primeiras impressões de quem entra em terra portuguesa vindo de carro e acaba de passar a quase invisível fronteira de Vilar Formoso. A sensação inicial é a de que o risco de morte aumentou: a condução dos carros de matrícula portuguesa é genericamente muito mais perigosa, evidenciando não apenas imperícia como uma assinalável falta de civismo. Afinal, a mensagem aterradora das estatísticas pode ser empiricamente confirmada. Sucede ainda que nos é proposta uma estrada de nome IP5, que, pelo seu traçado, parece um permanente desafio à competência e ao sangue-frio dos condutores.

Pouco a pouco, vamo-nos habituando a atravessar vilas e aldeias que nada têm a ver com as admiráveis povoações francesas da mesma ambição e dimensão; aqui, o gosto das moradias é quase sempre deplorável, a desordem dos traçados assustadora e o desleixo na conservação das coisas é tristemente manifesto.

Compramos um semanário português, e que encontramos? A imagem de um país em que o confronto de ideias ou de projectos parece ter sido substituído por um clima de quezília permanente, e onde a Imprensa, na mira do escândalo que assegure a sobrevivência económica, espreita com volúpia os mais ténues sinais de conflitos entre pessoas (de que o paradigma máximo é a tentativa de encontrar a todo o custo pontos de atrito entre o Presidente e o primeiro-ministro).

A chegada a Lisboa também não nos traz apenas alegrias. Se entrarmos pelo lado de Loures e Odivelas, e subirmos pelo que foi em tempos a calçada de Carriche, rumo ao Lumiar, confrontamo-nos com uma espécie de apocalipse urbanístico de tais proporções que se torna difícil perceber se é obra dos homens ou de uma qualquer força demoníaca. Quando, exaustos, depois de uma luta tenaz para ultrapassar as agruras de uma circulação automóvel exasperante, conseguimos um momento de repouso e abrimos a televisão, é-nos lançada à cara, em programas de que nos sentimos envergonhados só de os estarmos a ver, a imagem de um país deprimente e reduzido à sua expressão mais alarve. Felizmente, numa das poucas ocasiões em que vale a pena olharmos para o ecrã, podemos ouvir o Ministro da Cultura, Manuel Maria Carrilho, numa emissão intitulada "Figuras de Estilo", traçar este diagnóstico de grande lucidez: "O problema português não é o de atingir ou não atingir a pós-modernidade, mas, sim, o de desenvolver os valores da modernidade".

2. Eis o problema: saltámos uma etapa, baralhámos os tempos, ficámos no vertiginoso e insalubre enredo de uma imensa confusão. A pertinência conjuntural do chamado "cavaquismo" veio, como inúmeras vezes sublinhei, de uma espécie de curto-circuito entre os valores arcaicos e as instituições da pós-modernidade.

Daí a permanente oscilação entre um pragmatismo que incentivava uma modernização quantitativa e mecânica, alheia aos valores da modernidade, e um retorno, por necessidade arfante de um suplemento de alma, às doutrinas mais fossilizadas do conservadorismo. Mas, ao mesmo tempo, a capacidade de sintonizar com o Portugal "profundo" e a desenvoltura de quem se apercebe que as referências políticas tradicionais estão em erosão.

No entanto, a partir de certa altura, os mecanismos de oscilação entraram em roda livre, e propagou-se uma desordem improdutiva e fatigante: foi a morte entrópica de um sistema que não soube teorizar a tempo a sua especificidade, e que acabou por tropeçar nos limites estruturais da crise económica. Hoje, quando, no PS ou no PSD, tanto se discute a necessidade de ajustar o funcionamento dos partidos aos dados reais do mundo contemporâneo, sentimos bem que o problema do PS é o de acompanhar e contornar os sinais de crise da modernidade sem deixar de considerar que Portugal precisa urgentemente de se apropriar dos principais valores dessa modernidade em crise. Só assim, e se ainda formos a tempo, o que não é certo, estaremos em condições de contrariar esta espécie de modernização bárbara e lorpa, precipitada, rasca e acéfala, a que parecemos condenados.

3. Talvez uma das melhores maneiras de colocarmos os verdadeiros problemas seja lermos uma troca algo fictícia de correspondência entre "o português europeu" a que Curt Meyer-Clason dá voz na segunda edição dos seus "Diários Portugueses", e João Barrento, publicada no excelente número de "A Phala", com data de Abril/Maio, da responsabilidade da editora Assírio & Alvim. O texto de Meyer-Clason (a quem a cultura portuguesa na Alemanha tanto deve) é de 87, a resposta de Barrento vem nove anos depois, e o desajustamento temporal também explica alguma divergência de sensibilidades, entusiasmos e pontos de vista.

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A questão que Meyer-Clason põe é a seguinte: "O que é que Portugal pode fazer no mundo, na Europa?" E depois de uma pergunta ("por que é que vocês são tão pouco capazes de tirar partido da vossa identidade?") e de uma verificação sempre actual ("a falta de uma promoção própria planificada a nível internacional"), Meyer-Clason alinha algumas sugestões bem intencionadas: Portugal é mais europeu do que a Espanha, porque é um país mais aberto (embora diga também: "Os espanhóis publicitaram a sua adesão à CE com um programa interno e externo em que investiram milhões"), Portugal tem uma forma específica de viver a Europa e é dessa Europa portuguesa que a Europa de hoje precisa, devemos valorizar o nosso papel de sociedade intermediária entre o espaço afro-brasileiro e o espaço europeu, devemos promover "um humanismo luso-europeu" baseado na sobriedade, na solidariedade e na pobreza redignificada.

A reacção de João Barrento é extremamente significativa. Partindo do princípio de que "a cegueira conserva e a vista consome", Barrento fala-nos do que vê e do modo como uma tal visão o impede de qualquer forma de optimismo. Tudo está em marcha acelerada, e num andamento que parece irreversível, a Europa não precisa de nós e não quer nenhuns bons ofícios mediadores, a ideia de um humanismo luso-europeu apoiado em algumas virtudes austeras foi já cilindrada por um modelo de sociedade capitalistamente calculista e culturalmente americanizado.

4. A verdade é que foram feitos alguns esforços para inserir Portugal no espaço cultural europeu: depois do trabalho regular e admirável da Fundação Calouste Gulbenkian, hoje retomado e actualizado pelas potencialidades do Centro Cultural de Belém e pela magnífica programação da Culturgest, depois de iniciativas especiais como a Europália (cujos efeitos positivos ainda hoje são visíveis), da Lisboa 94 e da Expo 98, a imagem portuguesa no mundo começa a ter alguns contornos em meios receptivos (é o caso do cinema, é o caso da dança, é o caso da literatura). Mas também é verdade que essa imagem é ainda insuficiente e avulsa, e que as grandes cidades portuguesas não estão ainda integradas nas redes culturais europeias (basta folhearmos uma revista internacional de artes plásticas ou de música para nos darmos conta disso).

E devemos reconhecer que os valores culturais africanos ou brasileiros não precisam de nós para se tornarem internacionalmente conhecidos: é a França que revela Cesária Évora aos portugueses, e não os portugueses que a fazem conhecer aos franceses; e Mia Couto vai-se impondo pela sua qualidade intrínseca. E, se existem hoje valores incontestáveis na produção cultural portuguesa, há muitas vezes entre eles e um exíguo, sufocante, esganado meio português uma espécie de conflito insanável: os casos de Oliveira, Maria de Medeiros ou Saramago são bem sintomáticos.

Barrento sublinha o que Meyer-Clason diagnosticou: que Portugal não tem qualquer visibilidade internacional do ponto de vista económico, militar ou político. E daí a frase que repete com alguma irónica insistência: "Resta-nos a cultura, claro". Mas para que este resto tivesse sentido talvez fosse preciso que esta Europa fosse um pouco outra e que Portugal e os seus governantes se reconhecessem melhor na outra do que nesta. Tal como as coisas estão, as esperanças são escassas.

O Governo tomou recentemente uma decisão importante: a de dar prioridade a uma política cultural voltada para os espaços de língua portuguesa. E disso foi sinal inequívoco a criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Ela baseia-se num elemento comum por todos cantado e celebrado: a língua portuguesa. Amplamente se tem repetido que o português é a terceira língua europeia mais falada no mundo.

Contudo, este enunciado pode ser transformado em canção de embalo se não tivermos em consideração que uma coisa é o peso demográfico e outra o peso simbólico de uma língua: é por isso que os "bateaux-mouches" do Sena continuam a falar em espanhol, alemão ou italiano, mas não em português. O peso do português pode vir de factores económicos, turísticos ou políticos. No caso do português, contam mais as culturas, seja a brasileira ou a nossa, a angolana ou a cabo-verdiana, do que outra coisa. Donde, poderemos tirar três conclusões provisórias:

a) Não devemos separar uma política da língua de uma política da cultura; as duas têm o destino ligado;
b) Não podemos deixar de incentivar as relações entre Portugal e a Europa se queremos recuperar os valores de modernidade que hoje tanta falta nos fazem;
c) Donde, se queremos desempenhar adequadamente o nosso papel no espaço da lusofonia, temos de reforçar a nossa integração no espaço cultural europeu e procurar que a construção europeia ganhe uma assumida e expansiva dimensão cultural. Ora, como acentua João Barrento, "Portugal não tem hoje uma política da língua". Temos uma retórica da língua portuguesa, temos uma gestão da língua, temos demagogos da língua, temos mesmo "gangsters" da língua, mas não temos uma política da língua.

Em tempos, foi criada uma Comissão Nacional da Língua Portuguesa, superiormente dirigida pelo Prof. Vítor Manuel Aguiar e Silva, mas depois ela foi morrendo à míngua de recursos, e hoje parece inteiramente esquecida ou recalcada. Estamos assim na estranha situação de haver, e muito bem, um Instituto Internacional da Língua Portuguesa, sem que exista uma política nacional para a língua portuguesa.

Quanto ao plano cultural, precisaríamos de passar das grandes ou pequenas iniciativas mais ou menos desgarradas para uma política cultural externa portuguesa que fosse não apenas de todo o Governo, mas também de todo o País. O que implica coordenação de esforços, distribuição equilibrada de recursos, escuta atenta e democrática de actores e agentes culturais, sensibilidade às diferenças regionais no espaço português, empenhamento económico efectivo e múltiplo, definição de prioridades de um modo não casuístico, construção de estratégias por domínios culturais e por áreas geográficas. Só assim podemos conservar a esperança de um dia nos orgulharmos de um Portugal plena e descomplexadamente europeu, plena e dinamicamente lusófono e plena e reconciliadamente moderno e português. Trabalho não falta — esperemos que o resto também não.

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* Eduardo Prado Coelho

Professor universitário. Director do Instituto Camões em Paris. Colunista do PÚBLICO.

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