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Janus 2003



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O feitiço contra o feiticeiro: os prisioneiros “taliban”

Catarina de Albuquerque *

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O estatuto dos prisioneiros capturados pelas forças afegãs anti-taliban e norte-americanas é fonte de divergências entre o governo dos EUA e diversas organizações de defesa do direito internacional e humanitário. O estatuto de prisioneiro de guerra é salvaguardado pelas Convenções de Genebra de 1949 e seus Protocolos Adicionais, que consagram uma série de direitos a conceder aos indivíduos capturados num conflito. Os EUA não integram os taliban nesta categoria, considerando-os combatentes irregulares e, portanto, merecedores de um tratamento inferior ao constante na Convenção.

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Desde o início das operações militares dos Estados Unidos da América no Afeganistão em Outubro de 2001, milhares de pessoas – quer os taliban, quer os combatentes da Al-Qaeda – têm sido detidas por forças afegãs anti-taliban e ainda pelas forças armadas norte-americanas. Para além dos cidadãos afegãos, existe ainda um elevado número de paquistaneses entre os detidos, bem como números mais reduzidos de sauditas, nacionais de outros Estados árabes, uzebeques, tchetchenos, chineses, europeus e outros.

A maior parte dos combatentes capturados encontra-se no poder das novas autoridades afegãs pós-taliban.

O maior número, que atinge cerca de vários milhares de pessoas, encontra-se num grande complexo prisional em Shiburghan, existindo outras dezenas de prisões de pequenas dimensões e outros centros de detenção ad-hoc, espalhados pelo Afeganistão. Membros das forças armadas norte-americanas têm estado a interrogar os detidos em poder do Afeganistão, com o objectivo de identificar pessoas que os EUA querem julgar ou deter, ou que possam ter em seu poder informações úteis (tais como sobre o paradeiro de dirigentes taliban ou da Al-Qaeda , ou informações sobre o funcionamento interno da rede da Al-Qaeda ). Por conseguinte existem em poder dos EUA várias centenas de detidos, que estavam anteriormente em poder das forças afegãs, os quais foram entretanto transferidos para centros de detenção americanos localizados no Afeganistão (num centro fora de Kandahar e em navios da marinha americana). Para além destes casos, os EUA detiveram directamente pessoas, aquando das operações militares no Afeganistão. Neste contexto, em Janeiro de 2002, o governo americano começou a transferir essas pessoas de centros de detenção situados nas imediações do teatro de hostilidades para um centro de detenção de carácter mais permanente situado na base militar americana na baía de Guantanamo, em Cuba. De acordo com dados fornecidos pela Casa Branca, estão detidas 460 pessoas. De acordo com a ONG de direitos humanos norte-americana Human Rights Watch, os detidos serão mais de 500.

 

Como é que o direito protege os combatentes que caíram nas mãos do inimigo?

As Convenções de Genebra de 1949 (em número de quatro) e os seus dois Protocolos Adicionais contêm regras que garantem um leque de direitos aos combatentes que foram feitos prisioneiros, bem como aos civis durante conflitos armados. Tanto os EUA como o Afeganistão são Partes nas Quatro Convenções de Genebra.

A Terceira Convenção de Genebra (relativa ao Tratamento dos Prisioneiros de Guerra) vem dar uma definição do conceito de prisioneiro de guerra, bem como enumerar os direitos de que beneficiam os prisioneiros de guerra. A Convenção determina que, em caso de dúvida quanto ao estatuto a conceder às pessoas capturadas, estas beneficiarão da protecção garantida pela Terceira Convenção, enquanto aguardam que o seu estatuto seja fixado por um tribunal competente, isto é, devem ser tratadas como se tivessem direito ao estatuto de prisioneiro de guerra. De qualquer das formas, mesmo as pessoas que não beneficiem do estatuto de prisioneiro de guerra, incluindo os chamados “combatentes ilegais”, têm direito às garantias previstas na Quarta Convenção de Genebra relativa à Protecção das Pessoas Civis em Tempo de Guerra.

Nos termos da Terceira Convenção de Genebra, há diversas categorias de combatentes que “caíram em poder do inimigo” e que têm direito ao estatuto de prisioneiro de guerra (PG). Estas categorias incluem os membros das forças armadas de uma Parte no conflito, assim como os membros das milícias e dos corpos de voluntários que façam parte destas forças armadas e ainda os movimentos de resistência organizados que defendam um território não ocupado contra o invasor. O estatuto de PG também se aplica aos membros de forças armadas irregulares, desde que preencham os seguintes quatro critérios: terem à sua frente uma pessoa responsável pelos seus subordinados, um sinal distinto fixo que se reconheça à distância, usarem as armas à vista e respeitarem, nas suas operações, as leis e usos da guerra.

O Governo de George Bush considera que os taliban entram na categoria de forças irregulares, devendo por isso preencher os quatro critérios acima enunciados para poderem beneficiar do estatuto de PG.

Em sentido diametralmente oposto, a maior parte dos especialistas internacionais de direito humanitário e as ONGs de direitos humanos têm defendido que os taliban são as forças armadas do Afeganistão que, por seu lado, é um dos Estados Partes nas Convenções de Genebra. Por outro lado, o Governo dos EUA tem alegado igualmente que os taliban não eram o governo reconhecido do Afeganistão, pelo que os membros das suas forças armadas não podem beneficiar do estatuto de PG. Contudo, para que as Convenções de Genebra sejam aplicadas, só é necessário que haja um conflito armado, não se exigindo nunca um reconhecimento formal de um Estado pelo outro. Se assim fosse, muito facilmente um Estado poderia escapar às suas obrigações à luz das Convenções, declarando para tal simplesmente que um governo inimigo não era o legítimo representante do Estado. É interessante notar neste âmbito que, por exemplo, durante a Guerra da Coreia os EUA reconheceram que os prisioneiros da República Popular da China (RPC) tinham direito ao estatuto de PG ao abrigo das Convenções de Genebra, apesar de nem as Nações Unidas nem os EUA reconhecerem na época o governo da RPC.

Os prisioneiros de guerra têm direito a beneficiar de todas as garantias previstas na 3ª Convenção de Genebra, não podendo nomeadamente ser julgados pelo simples facto de serem combatentes. Os combatentes capturados que não tenham direito ao estatuto de PG beneficiam da protecção da Quarta Convenção de Genebra enquanto “pessoas protegidas”, e já não da 3ª relativa aos Prisioneiros de Guerra (ver tabela ao lado). Em nenhuma das Convenções de Genebra se encontram as expressões utilizadas pelos EUA para caracterizar os membros da Al-Qaeda ou taliban detidos, a saber as de “combatentes ilegais”, “combatentes não privilegiados” ou “combatentes ilícitos”.

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A determinação do estatuto dos prisioneiros no conflito do Afeganistão

Até à data os EUA partilharam pouca informação sobre as pessoas capturadas no Afeganistão, excepto para dizer que elas são oriundas de 25 países. Os Estados Unidos classificaram todas as pessoas por si capturadas no Afeganistão como “combatentes ilegais” ou “combatente ilícitos”, tendo indicado que, apesar de eles poderem ser tratados de acordo com os preceitos das Convenções de Genebra, os EUA não têm qualquer obrigação de o fazer. Fizeram-no designadamente após a publicação, a 11 de Janeiro de 2002, de uma fotografia pelo Departamento de Defesa norte-americano, em que eram mostradas as imagens de detidos taliban e da Al-Qaeda no Campo “X-Ray” na baía de Guantanamo, ajoelhados e acorrentados, dentro de uma espécie de jaula. Houve igualmente alegações de que tinham sido ministrados sedativos aos prisioneiros.

No seguimento desta fotografia, que provocou acesas reacções por parte de diversas ONGs e governos europeus, a 22 de Janeiro de 2002 o secretário de Estado da Defesa norte-americano Donald Rumsfeld afirmou que, independentemente do estatuto jurídico dos prisioneiros, o importante era o facto de eles estarem a ser tratados humanamente. Independentemente da questão de saber se as Convenções de Genebra são, ou não, aplicáveis a estes detidos, eles “estão a ser tratados humanamente e continuarão a sê-lo no futuro”.

A 27 de Janeiro de 2002, após uma visita aos prisioneiros detidos na Base da Baía de Guantanamo, Rumsfeld afirmou que as “pessoas capturadas [são] combatentes ilegais, e não legais. É por essa razão que os caracterizamos como detidos e não como prisioneiros. Os membros da Al-Qaeda são muito claramente parte de uma rede terrorista – não usam uniformes, não usam as armas à vista nem apresentam um sinal distintivo fixo que se reconheça à distância, e comportam-se de uma forma diferente das forças armadas. São terroristas. É essa a diferença.”

Recentemente o Presidente George Bush sugeriu que as Convenções de Genebra não se aplicam à guerra contra o terrorismo, e que por isso o governo pode decidir que os combatentes capturados não são PG e que tratar os detidos como PG impediria que os mesmos fossem interrogados pela alegada prática de crimes.

Apesar das ONGs de direitos humanos e diversos especialistas de direito internacional humanitário defenderem que os detidos devem ser considerados PG até um tribunal decidir em sentido contrário (tal como se encontra consagrado no direito internacional humanitário), o governo norte-americano defende não haver qualquer dúvida quanto ao seu estatuto, pelo que não é necessário que o mesmo seja determinado por qualquer tribunal.

A decisão por parte dos EUA de reinterpretar as Convenções de Genebra de 1949 e de não conceder o estatuto de PG ao combatentes taliban e da Al-Qaeda detidos, sem ter havido qualquer decisão prévia de um tribunal sobre o seu estatuto, pode ser extremamente perigosa e colocar em perigo os soldados de todo o mundo, e especialmente os soldados americanos que sejam capturados em combate. Volta-se assim o feitiço contra o feiticeiro.

 

Informação complementar

O tratamento dos detidos

A reputada Organização Não-Governamental norte-americana Human Rights Watch (HRW) publicou a 15 de Agosto de 2002 um relatório de cerca de 100 páginas intitulado “Presunção de Culpa: Abusos de direitos humanos dos detidos relacionados com o 11 de Setembro”, no qual acusa o governo dos EUA de ter realizado detenções arbitrárias, violado o direito a um processo equitativo e levado a cabo detenções secretas no decurso da sua investigação relacionada com os acontecimentos do passado dia 11 de Setembro. Este relatório baseia-se em entrevistas realizadas pela HRW a dezenas de presos e aos seus advogados, analisando de forma exaustiva o tratamento dos estrangeiros que foram detidos após os acontecimentos de 11 de Setembro.

Com efeito, imediatamente após os acontecimentos de 11 de Setembro, o Ministério da Justiça norte-americano deu início a um processo de interrogação de milhares de pessoas que poderiam ter informações ou relações com redes terroristas. Estes interrogatórios levaram à detenção de cerca de 1.200 estrangeiros, apesar de não existirem números exactos sobre as detenções, nem informações sobre as suas identidades. Em Fevereiro de 2002 o Ministério da Justiça admitiu que a maioria das pessoas detidas em relação com os acontecimentos de 11 de Setembro eram acusadas de violação das leis de imigração, sendo consideradas como detidos com “especial inte-resse”. Em Julho de 2002 nenhum destes detidos de “especial interesse” tinha sido condenado por participar em actividades terroristas, tendo a sua maioria sido deportada por violação às leis de imigração.

A detenção de pessoas com base no facto de permanecerem nos EUA para além da data limite fixada no visto de entrada permitiu ao Ministério da Justiça dos EUA mantê-las detidas enquanto prosseguia as investigações e interrogatórios – o que constitui uma forma de prisão preventiva proibida pelo direito penal americano.

A utilização desta escapatória permitiu que o Ministério da Justiça não fosse obrigado a respeitar regras como a da necessidade de existir uma causa prová-vel para a detenção, o direito do detido a comparecer perante um juiz num prazo de 48 horas e a beneficiar dos serviços de um advogado nomeado pelo tribunal.

No contexto do seu trabalho de estudo sobre esta questão, a Human Rights Watch concluiu que o governo norte-americano deteve pessoas (sem que existisse qualquer acusação contra as mesmas) durante períodos de tempo prolongados, tendo-as impedido de ter acesso a um advogado, realizou interrogatórios abusivos e ignorou ou anulou decisões judiciais que ordenavam a colocação daquelas pessoas em liberdade durante a pendência de processos de imigração relacionados com os seus casos.

Alguns detidos foram vítimas de abusos físicos e verbais devido à sua nacionalidade ou religião, tendo sido detidos em segredo cerca de 1200 estrangeiros em relação aos acontecimentos de 11 de Setembro. A grande maioria é do Médio Oriente, Sul da Ásia e Norte de África.

 

Os direitos dos combatentes detidos

Tratamento humano

Prisioneiros de Guerra – Os PG devem ser sempre tratados humanamente. Devem ser protegidos contra actos de violência ou intimidação e contra insultos ou a curiosidade pública. Os PG devem ser detidos em instalações que ofereçam as mesmas condições que aquelas da potência detentora na mesma zona. As instalações para uso dos PG devem ser adequadamente aquecidas e iluminadas.

“Combatentes ilegais” – Os combatentes ilegais têm igualmente direito a tratamento humano. Apesar de lhes poderem ser negados alguns direitos que possam pôr em perigo a segurança, essas limitações aos seu direitos devem ser absolutamente necessárias e nunca poderão dar azo a tratamentos desumanos ou degradantes.

Interrogatório

Prisioneiros de Guerra – Apesar de a potência detentora os poder interrogar, os PG só têm a obrigação de revelar o seu nome, graduação, data de nascimento e seu número de matrícula. Os PG não podem ser punidos pelo facto de não fornecerem informações adicionais. Não lhes pode ser infligida qualquer tortura física ou mental, nem qualquer forma de coacção, com o objectivo de lhes extrair qualquer tipo de informação. Os prisioneiros que se recusem a responder não poderão ser ameaçados, insultados ou expostos a um tratamento desagradável ou inconveniente de qualquer natureza.

“Combatentes ilegais” – Apesar de os combatentes ilegais não poderem invocar a mesma protecção que os PG durante um interrogatório, estão, aliás como qualquer detido, protegidos contra a tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, tal como se encontra consagrado nas normas de direitos humanos e direito internacional humanitário. O artigo 75º do Protocolo I Adicional às Convenções de Genebra, o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e o artigo 2º da Convenção contra a Tortura (a qual foi ratificada pelos EUA) determina que “nenhuma circunstância excepcional, qualquer que seja, quer se trate de estado de guerra ou de ameaça de guerra, de instabilidade política interna ou de outro estado de excepção, poderá ser invocada para justificar a tortura”.

Julgamento

Prisioneiros de Guerra – Apesar de os PG não poderem ser julgados ou punidos pelo simples facto de terem participado num conflito armado, já o podem ser por terem cometidos crimes de guerra e crimes contra a humanidade e pela prática de crimes ao abrigo da legislação da potência detentora ou do direito internacional.

Os PG têm direito a ser julgados pelos mesmos tribunais e a beneficiarem do mesmo procedimento aplicável ao pessoal militar da potência detentora, e de beneficiarem das garantias essenciais de independência e imparcialidade. Têm direito a um advogado e devem ser informados sobre as queixas contra si existentes. Têm direito a interpor recurso de uma sentença condenatória.

“Combatentes ilegais” – Estes combatentes podem ser julgados pelo facto de terem participado no conflito armado. Tal como se passa com os PG, também os combatentes ilegais podem ser julgados pela prática de crimes de guerra, crimes contra a humanidade e outros crimes. Apesar de os combatentes ilegais não beneficiarem do extenso rol de direitos de que gozam os PG num julgamento ao abrigo da 3ª Convenção de Genebra, aqueles têm direito a um julgamento “justo e regular” e às protecções garantidas pela 4ª Convenção de Genebra. Têm direito a um julgamento perante um tribunal militar não politizado, a serem informados das queixas contra si existentes, a serem assistidos por um advogado da sua escolha, a terem um intérprete e a apresentarem um recurso da sentença condenatória.

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* Catarina de Albuquerque

Mestre em Direito Internacional Público pelo Institut Universitaire des Hautes Études Internationales. Assessora do Secretário de Estado Adjunto da Ministra da Justiça. Professora Auxiliar da UAL.

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