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Janus 2004



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Iraque: uma nova forma de guerra?

Luís Tomé *

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A guerra contra o Iraque, para além das considerações de legalidade e de legitimidade, foi um sucesso militar anglo-americano com aspectos inovadores, susceptíveis de influenciar as guerras no futuro. Devido à forte contestação internacional a guerra deveria ser curta e “cirúrgica”, objectivo que foi alcançado. Em 26 dias o Iraque foi ocupado e o seu regime deposto na totalidade, com um mínimo de baixas e de destruição das infraestruturas do país, o que se deveu sobretudo à capacidade tecnológica e de integração de sistemas dos EUA – Comando, Controlo, Comunicações e Intelligence.


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A legitimidade e a legalidade de uma guerra não dependem nem derivam do êxito ou do insucesso da campanha militar. Assim, independentemente da posição que se tenha sobre a guerra ocorrida no Iraque entre Março e Abril de 2003, é relativamente consensual que a estratégia e a operação montada pelos Estados Unidos e seus aliados foi um sucesso do ponto de vista militar, com aspectos inovadores, outros surpreendentes, e outros ainda susceptíveis de influenciar as guerras no futuro.

 

Contexto da guerra

A guerra no Iraque de 2003 ocorreu num contexto específico que certamente pesou na elaboração de estratégias e na definição de capacidades e meios. Em primeiro lugar, ela foi desencadeada num quadro de forte contestação internacional, o que fez aumentar significativamente os riscos políticos e obrigou a coligação a delinear uma estratégia que atenuasse as tensões, nomeadamente através de uma campanha militar “rápida” e “cirúrgica”. Depois, os fins da IIª Guerra do Golfo eram muito mais ambiciosos do que, por exemplo, em 1991: tratava-se de derrubar o regime de Saddam – “condição essencial” para desarmar o Iraque e desmantelar uma ameaça – e de reconfigurar o mapa geopolítico da região. Ora, tal objectivo obrigava os EUA e as forças da coligação à ocupação efectiva do Iraque e a uma vitória total. Em terceiro lugar, a guerra decorreria num país muito particular, com um regime altamente repressivo, um líder (Saddam Hussein) e uma instituição (Partido Baas) no poder de carácter panarabista, uma população multinacional – sendo históricas as rivalidades entre xiitas, sunitas e curdos –, e uma localização geoestratégica muito sensível, o que levou a coligação a contar com algum apoio interno, numa estratégia de utilizar “nacionais contra nacionais”, por um lado, e a tomar particulares precauções de modo a evitar o alastramento da conflitualidade, por outro. O contexto desta guerra foi ainda claramente marcado pelos impactos dos atentados do 11 de Setembro e dos novos conceitos estratégicos dos Estados Unidos no combate contra o terrorismo e contra a proliferação das armas de destruição maciça, em particular os respeitantes às acções preventivas e preemptivas. Por isso, esta guerra no Iraque tem de ser enquadrada num empreendimento muito mais vasto e complexo.

 

Guerra assimétrica

Tratou-se, inequivocamente, de uma guerra assimétrica, não só porque as forças eram absolutamente incomparáveis pela esmagadora superioridade tecnológica e militar dos EUA, mas também porque, do lado iraquiano, muitos combatentes não pertenciam a unidades regulares ou especiais do Exército, mas sim a unidades paramilitares, nomeadamente ligadas ao Partido Baas e às milícias Fedayin. Como é natural, tal desproporção obrigou a estratégias e tácticas completamente distintas entre os beligerantes, com o regime iraquiano a utilizar tácticas de guerrilha e métodos terroristas que revelavam tanto essa assimetria como o desespero das suas acções. Com efeito, a superioridade militar dos Estados Unidos é de tal ordem que os seus adversários só os poderão visar com processos assimétricos.

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Novas estratégias

O regime de Saddam e a coligação liderada pelos EUA utilizaram estratégias bem distintas, não só entre si como também em relação à Guerra do Golfo de 1991. Há 12 anos, só depois de 39 dias consecutivos de bombardeamentos é que foi desencadeada a campanha terrestre, com a coligação de então a avançar com um número de efectivos militares próximo do então poderoso exército iraquiano: 550 mil americanos e mais 250 mil entre os outros aliados. O Iraque procurou então uma defesa baseada em grandes unidades e na concentração de forças para impedir o avanço dos adversários, sendo porém completamente desbaratadas pelos intensos bombardeamentos americanos. Quatro dias de combates terrestres de elevada intensidade bastaram para que o Iraque retirasse do Kuwait e se rendesse, com o seu Exército a desagregar-se: um quarto desertou (150 mil), 60 mil renderam-se, parte significativa da sua força aérea refugiou-se no vizinho Irão. Resultado: 43 dias de guerra provocaram 100 mil mortos entre os militares iraquianos contra os 148 da coligação!

Desta vez, com um Exército muito menos poderoso e reduzido a cerca de metade do de 1991, Saddam evitou deliberadamente o confronto directo de grandes unidades, não arriscando sequer tentar controlar o espaço aéreo. Optou por tácticas de guerrilha destinadas a flagelar a coligação numa estratégia de “retalhar às postas uma serpente toda esticada” e tentou atrair os seus adversários para confrontos urbanos, prometendo o “inferno” para os seus inimigos. Por seu lado, a coligação liderada pelo General americano Tommy Franks, fez coincidir a ofensiva terrestre (avançando com 150 mil dos cerca de 300 mil militares da coligação estacionados na região) com a campanha de bombardeamentos (iniciada a 20 de Março). O hiato entre capacidades foi agora ainda muito mais pronunciado do que na Guerra do Golfo: mais de 90% das armas americanas eram inteligentes e, por isso, os bombardeamentos foram bastante mais precisos (95% a 98% de precisão), enquanto o extraordinário arsenal militar e os meios de detecção e vigilância permitiam aos americanos correr maiores riscos logísticos, fazendo progredir rapidamente uma coluna (3ª divisão mecanizada de infantaria) sobre o objectivo principal designado, Bagdad.

Entretanto, a coligação foi conquistando outros objectivos estratégicos, mas para evitar um elevado número de baixas, optou por ir ocupando o território sem entrar logo nas cidades, preferindo primeiro contorná-las, depois controlá-las, e finalmente ocupá-las, fazendo-o “fatia a fatia”. Foi o que sucedeu no Sul, área de maioria xiita hostil a Saddam, onde foram sendo tomadas Umm Qsar, Bassorá, Nassíria, Kerbala e Najaf antes de se chegar à capital. No Norte, impossibilitados de desembarcar em território turco a sua 4ª divisão de infantaria, os EUA redesenharam a ofensiva conjugando a distribuição de forças aerotransportadas apoiadas e protegidas por tropas especiais com os guerrilheiros curdos “peshmergas”, ao mesmo tempo que prosseguiam os bombardeamentos sobre as posições iraquianas. Depois de tranquilizar a Turquia face às pretensões curdas, foram tomadas as cidades de Mossul e Kirkuk.

O avanço sobre Bagdad fez-se por Sueste, através da 3ª divisão de infantaria americana que duas semanas antes tinha deixado o Kuwait, e por Sudoeste, por intermédio da 1ª divisão de marines que, entretanto, ultrapassara a “divisão Bagdad”, colocada estrategicamente junto a uma ponte sobre o Rio Tigre, próximo de Al Kut. Para defender a capital, os iraquianos utilizaram uma estratégia que se revelou desajustada e muito vulnerável perante as capacidades americanas, e que passou pela colocação de dois anéis, um a 60 e outro a 30 km, em redor da cidade. Em pouco tempo, os americanos entraram no perímetro de Bagdad, controlaram o aeroporto – fundamental para o reforço de meios militares e logísticos – e iniciaram o ataque final, depois de pequenas incursões ao centro da cidade para testar o dispositivo e a tenacidade adversária.

Numa manobra bastante rápida e perante uma surpreendentemente frágil resistência, os americanos facilmente tomaram a capital iraquiana, com o derrube da estátua de Saddam, à frente do Hotel Palestina e perante centenas de jornalistas de todo o mundo, a simbolizar a vitória da coligação e o fim do regime (9 de Abril). Faltava o assalto à terra natal de Saddam, Tikrit, que ocorreria cinco dias depois com um contingente de apenas 800 militares que pouco mais fizeram do que aceitar a rendição dos líderes das 21 principais tribos da região, na última campanha da operação “Liberdade Iraquiana” e pondo um ponto final na guerra.

Em 26 dias, um país com a dimensão do Iraque (cerca de cinco vezes maior que Portugal) foi ocupado e o seu regime deposto, o que foi conseguido com relativas poucas baixas, poupando a esmagadora maioria das infraestruturas do país, e não provocando grandes vagas de refugiados. A campanha militar foi um êxito, mas os números não deixam de ser curiosos: agora houve mais baixas entre a coligação (159 mortos) do que na Guerra do Golfo (148) e, apesar da toda a panóplia tecnológica, registou-se uma percentagem invulgarmente elevada de vítimas do “fogo amigo” (40, um quarto do total). A estes militares que pereceram durante a guerra deve somar-se um número ainda mais elevado (e que aumenta diariamente) de outros que entretanto perderam a vida depois de ter sido declarado o fim da guerra. Do lado iraquiano, houve muito menos vítimas do que em 1991, quer entre civis quer entre militares (os cálculos variam entre 3 mil e 12 mil).

 

Guerra “Lucky Luke”

Velocidade, precisão e flexibilidade foram os factores decisivos na campanha militar da coligação, que privilegiou a utilização de unidades com grande mobilidade e pôs em prática uma nova dinâmica e uma muito maior integração e coordenação entre operações terrestres e aéreas. Em termos operacionais, foi inovador a coincidência de acções de combate e de estabilização, e a conjugação das fases de observação, fogo e controlo. A revolução táctica é portadora de uma revolução estratégica – a estratégia “choque e temor” é o nível superior que liga os aspectos tácticos e operacionais em função de um objectivo político, unificando todas as operações ao nível da temporalidade rápida e do espaço preciso, procurando um efeito de terror sobre as forças inimigas e um nervosismo intenso sobre a população. Tal estratégia foi possível em virtude das impressionantes capacidades tecnológicas ao dispor da coligação, nomeadamente ao nível dos sistemas de satélites e vigilância, condução de mísseis e sistemas de comunicações, dando ao Comando Central sediado no Qatar o perfeito visionamento do teatro de operações, do posicionamento do inimigo e do progresso das suas forças.

Os meios tecnológicos facilitaram ainda uma extraordinária coordenação do Comando, Controlo, Comunicações e Intelligence, permitindo a tomada de decisões em tempo real – por exemplo, o ataque ao restaurante Al-Mansor, a 7 de Abril, onde estariam os Hussein e seus próximos, terá ocorrido apenas 12 minutos depois de recolhida a informação!!! Tudo isto em conjugação com uma incrível capacidade logística, capaz de defender posições e de sustentar com combustíveis, munições, água, alimentos, unidades de busca e salvamento e de reparação, as múltiplas frentes e as forças dispersas pelo vasto território iraquiano.

As unidades de operações especiais e os grupos paramilitares ligados à Intelligence tiveram igualmente um papel vital, sobretudo ao nível da recolha de informações e da identificação e marcação de alvos, mas também na compra e/ou mesmo eliminação de funcionários e agentes do regime e de oficiais das forças armadas iraquianas. Por outro lado, as operações psicológicas foram bem evidentes e de grande envergadura, com a utilização de meios invulgares sobre o adversário e não só. Além das designações “Liberdade Iraquiana” e “Operação Decapitação do Regime”, por exemplo, terão sido lançados 40 milhões de panfletos antes do primeiro ataque e outros 40 milhões durante a campanha militar, que em árabe tentavam explicar que o seu inimigo era o regime dos Hussein e não o povo e o Iraque, e que os militares iraquianos deveriam abster-se de combater ou mesmo insurgir-se contra um regime usurpador.

Um exemplo distinto, mas igualmente em busca de efeitos psicológicos, nomeadamente junto das opiniões públicas ocidentais, foi a espectacular encenação da libertação da soldado Jessica Lynch de um hospital em Nassíria por forças especiais, no momento mais heróico do filme do conflito. Segundo o Los Angeles Times de 20 de Maio de 2003, as cenas terão sido filmadas por um antigo assistente de Ridley Scott no filme “Black Hawk Down” (ou “Cercados”, 2001), as imagens montadas no Comando Central no Qatar, e difundidas pelos media de todo o mundo depois de supervisionadas pelo Pentágono. Com efeito, as estratégias militares foram também pensadas em função da cobertura televisiva.

 

Surpresas

As guerras encerram sempre elementos surpreendentes, e esta não foi excepção. Por exemplo, é no mínimo estranho que os iraquianos, na impossibilidade de utilizar algumas infraestruturas, não as tenham destruído, como é o caso dos aeroportos, dos aeródromos e do porto de Umm Qsar (vitais na projecção de forças e na capacidade logística da coligação), bem como de algumas estradas e pontes, fundamentais para o rápido progresso dos contingentes terrestres anglo-americanos.

Mas a maior surpresa resultou do autêntico “desaparecimento” ou dissolução das forças leais ao regime de Saddam em Bagdad e em Tikrit, quando se presumiam combates muito mais duros e encarniçados em torno destes objectivos, sobretudo depois da surpreendente tenacidade e resistência que se manifestara durante a primeira semana de confrontos (obrigando os americanos a proceder a uma “pausa estratégica”) e das dificuldades da coligação em controlar Bassorá, Kerbala e Najaf. É um dado curioso, verdadeiramente surpreendente, e cuja justificação pode ser relevante para o desfecho do conflito e para o pós-guerra. Terá Saddam preparado uma nova forma de guerra?

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* Luís Tomé

Licenciado em Relações Internacionais pela UAL.Mestre em Estratégia pelo ISCSP. Especialista em questões Estratégicas e Internacionais. Docente na UAL. Assessor no Parlamento Europeu.

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