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- JANUS 2004 -

Janus 2004



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O conflito comercial entre a UE e os EUA (II)

José Pereira da Costa *

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Os EUA praticam importantes restrições à entrada no seu mercado, apesar de pretenderem liderar a política de liberalização económica a nível mundial. Através da legislação conhecida por Foreign Sales Corporations concedem isenção de impostos aos lucros das empresas cuja principal actividade é a exportação de bens industriais e agrícolas, e também de bens do sector informático e militar. A UE ficou habilitada, sob a égide da OMC, a aplicar medidas de retorsão aos produtos provenientes dos EUA, considerando-se que a lei favorecia claramente os exportadores norte-americanos.

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A superpotência americana pretende não só estar acima da lei internacional, sempre que esta não sirva os seus interesses, como ainda que as suas próprias leis prevaleçam fora do seu território. É o caso do célebre Helms-Burton Act, que o presidente Clinton ratificou em Março de 1996, autorizando os cidadãos americanos a perseguir em justiça as empresas estrangeiras que tenham negócios em Cuba.

Esta lei faz parte de um conjunto de outras que foram decretadas a partir de 1962, quando o governo dos EUA impôs um embargo comercial unilateral a Cuba. Em Agosto de 1996, uma lei idêntica à precedente, a Iran and Libya Sanctions Act, foi criada para ser válida durante cinco anos. Esta última permite a aplicação de sanções pelas autoridades americanas às empresas que façam investimentos naqueles países acima de 20 milhões de dólares, nos sectores petrolífero e do gás natural.

A União Europeia (UE), assim como o Canadá e o México, apresentaram nas instâncias próprias, que não se reduzem às da OMC, protestos formais contra aquelas medidas. A resposta dos Estados Unidos foi a de não só manter o Helms-Burton Act, como de prolongar por mais cinco anos o Iran and Lybia Sanctions Act.

 

Foreign Sales Corporations e "dossier" bananas

O governo federal dos Estados Unidos e os governos estaduais fornecem apoio directo e indirecto às empresas americanas. A legislação conhecida por Foreign Sales Corporations (FSC) é apenas um exemplo. Consiste na isenção de taxas aos lucros das empresas que têm como principal actividade a exportação de bens industriais e agrícolas, e recentemente também dos sectores informático e militar. Os produtos exportados terão que incluir um valor acrescentado de mais de 50% de origem americana.

As autoridades tentaram de início justificar esta lei como uma medida para evitar a dupla tributação a que estariam sujeitas as suas numerosas empresas multinacionais estabelecidas em todo o mundo. Mais tarde verificou-se que a maior parte dessas empresas tinham sede em paraísos fiscais, como as Virgin Islands, Guam e Barbados, onde já não pagavam quaisquer taxas.

Considerando que a FSC dá vantagens aos exportadores norte-americanos que são contrárias às regras do livre mercado, as instâncias da OMC autorizaram a UE, que entretanto tinha apresentado uma reclamação, a implementar medidas de retorsão, podendo aplicar aos bens importados dos Estados Unidos taxas adicionais no valor total de 4 mil milhões de dólares. Para esse fim os serviços do comissário Pascal Lamy elaboraram uma lista de bens americanos a importar, aos quais será aplicada uma taxa de 100% aquando da sua entrada em território europeu, no caso da Foreign Sales Corporations não ser anulada. O próprio Robert Zoellick apressou-se a dirigir-se ao Congresso a pedir a alteração dessa legislação que, segundo ele, põe em perigo o desenvolvimento futuro da própria OMC. Este dossier foi dos que envolveu um dos maiores montantes em medidas de retorsão.

Anteriormente, a UE tinha sido penalizada pela OMC no que respeita às bananas importadas dos países ACP, que beneficiam de condições especiais segundo a Convenção de Lomé. Estados Unidos, Equador, Guatemala, Honduras e México, estes últimos sede das multinacionais americanas do sector, Chiquita, Del Monte e Dole, apresentaram uma queixa que resultou na possibilidade de aplicarem medidas de retorsão no valor de 191,4 milhões de dólares por ano, a partir de 1999.

No entanto, pondo em prática uma política de reconciliação em relação à Europa, a administração Bush, assim que chegou ao poder, aceitou um acordo que foi realizado durante o primeiro trimestre de 2001. Segundo este, a UE pode importar bananas dos países ACP sem pagar direitos até ao montante de 750.000 dólares. Estas condições ficarão em vigor até 31 de Dezembro de 2005. A partir daí a UE terá que modificar o regime actual.

 

Os organismos geneticamente modificados (OGM)

A UE recusa-se a importar produtos de organismos geneticamente modificados. Os Estados Unidos consideram que não existe perigo para a saúde pública resultante do consumo desses produtos.

O diferendo começou em 1997 quando pela primeira vez a UE recusou a importação de sementes transgénicas produzidas pelos americanos. Mais tarde, em 2002, a Europa confirmou essas medidas, que poderiam ser ultrapassadas se Washington aceitasse a etiquetagem desses produtos a fim de serem reconhecidos pelos consumidores antes de os adquirirem. Mas o governo americano pretende que não existem razões suficientes para uma prevenção em termos de saúde pública.

Os transgénicos (à letra, organismo que recebeu um gene estranho ou de outra espécie) começaram a ser produzidos pela multinacional americana Monsanto e, mais tarde, pela Novartis. Introduziram no milho e no algodão um gene que mata as lagartas destruidoras das plantas. Nos Estados Unidos existem dezenas de milhões de hectares onde se produz milho e soja nestas condições. Alguns países em desenvolvimento, carentes dos produtos necessários para alimentar toda a sua população, começaram também a utilizar esta técnica. Mas o facto é que não existe, cientificamente, um controlo total do processo, nem estão definitivamente esclarecidos os prejuízos que resultam para as outras plantas vizinhas que não sejam submetidas ao mesmo tratamento, assim como para o ambiente e para os humanos.

A política da UE é pois de ganhar tempo a fim de que os estudos em curso sobre este problema sejam concluídos. Prevê-se que a moratória seja levantada brevemente. Os produtos serão então identificados e etiquetados desde que exista na sua composição mais de 1% de matéria de origem transgénica. Acresce que politicamente se torna imoral uma produção ilimitada de alimentos de origem transgénica quando existe já um excesso de alimentos produzidos na Europa e nos EUA. Por outro lado, este país tem-se servido da ajuda alimentar aos países em desenvolvimento como escoamento dos produtos geneticamente modificados que não consegue vender no mercado internacional. A esse respeito, a UE apresentou também uma queixa na OMC.

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Pouco tempo depois de terminar a guerra no Iraque, no ano passado, os Estados Unidos apresentaram queixa na Organização Mundial do Comércio contra a moratória da UE. Mas durante os preliminares da invasão acenaram aos países europeus com o adiamento dessa medida caso recebessem o seu apoio.

 

A interdição da carne com hormonas e o problema da agricultura

A UE proclamou uma interdição de dez anos para a importação de carne com hormonas proveniente dos Estados Unidos. Esse tempo é destinado à conclusão dos estudos que estão em curso sobre os possíveis malefícios para a saúde humana da utilização daquela carne. Neste caso, as autoridades americanas também asseguram que não existem quaisquer perigos. Na Europa, porém, este é um assunto que sensibiliza grandemente a opinião pública, porque existem poderosas máfias envolvidas nesta actividade.

A UE propôs entretanto aos Estados Unidos, como compensação, um aumento das importações de carne americana isenta de hormonas pelo mercado comunitário, assim como novas condições para a importação de bananas. Estas medidas serviriam para compensar os produtores americanos dos prejuízos verificados. Mas Washington não aceitou e continuou a impor, como retorsão, direitos aduaneiros extraordinários de 100% sobre as exportações europeias, previamente calculados pela OMC em 116,8 milhões de dólares anuais.

Como é sabido, a política agrícola da UE, uma das primeiras a ser criada a nível comunitário, é geralmente atacada de todos os quadrantes por ser a responsável pelo gasto de cerca de 50% do orçamento anual da UE. Esta enorme massa de dinheiro é basicamente utilizada em subsídios que compensam os agricultores europeus dos prejuízos resultantes de apresentarem os seus produtos no mercado internacional a preços concorrenciais e não aos dos verdadeiros custos de produção.

Aquando da criação da OMC, em 1995, foi acordado entre os países aderentes uma redução dos subsídios de Estado à agricultura. Os países desenvolvidos deveriam fazer uma redução de 20% em seis anos. Os países em desenvolvimento 3% durante as próximas duas décadas. Foi dentro destes princípios que a UE, no seu relatório sobre a PAC do ano 2000, se comprometeu a reduzir substancialmente o nível dos seus subsídios à produção e à exportação e a canalizá-los para outras áreas, como o ambiente e o ordenamento rural.

Por outro lado, os Estados Unidos são acusados pela UE da não aplicação dos acordos estabelecidos aquando da criação da OMC para redução dos subsídios agrícolas. Nesse ano de 1995, a produção agrícola da UE tinha sido de 271 mil milhões de dólares, com um total de 116,5 mil milhões de ajudas aos agricultores, enquanto os EUA tinham produzido 190,1 mil milhões de dólares, com 60,9 mil milhões de ajudas. Daí para cá, segundo Bruxelas, as ajudas aos agricultores americanos aumentaram três vezes mais e correspondem actualmente ao dobro do valor das que são atribuídas aos europeus.

 

A disputa Boeing/Airbus e as limitações à importação de aço

Actualmente encontram-se ainda em vigor dois acordos sobre os apoios estatais à indústria aeronáutica civil. Um deles data de 1979 e foi criado ainda no seio do GATT. O outro é um acordo bilateral UE/EUA datando de 1992. Estes acordos regulam as formas e o nível dos apoios governamentais de ambos os lados, procurando que exista sempre transparência nos apoios directos e indirectos concedidos.

A UE considera que no ano 2000 houve 2 mil milhões de dólares de subsídios governamentais à indústria aeronáutica americana, incluindo os benefícios que a Boeing usufrui da legislação Foreign Sales Corporations. Por outro lado, a Boeing beneficia de encomendas do Pentágono para a força aérea americana sem que participem quaisquer outros concorrentes, o que vai igualmente contra os acordos em vigor.

No que respeita aos transportes aéreos, utilizando a justificação do 11 de Setembro de 2001, o governo dos Estados Unidos tem promovido ajudas às companhias de aviação americanas, que podem ser calculadas em 15 mil milhões de dólares, segundo a UE, disponibilizadas nos meses que se seguiram aos atentados, enquanto na Europa se tem assistido, nos últimos anos, a falências, fusões e desaparecimentos de algumas importantes companhias deste sector. Além do mais, a legislação americana é altamente restritiva no que respeita à entrada de investimentos no sector do transporte aéreo, não permitindo por exemplo que os estrangeiros participem em mais de 49% no capital dessas empresas.

No dia 5 de Março de 2002, o presidente Bush proclamava medidas de salvaguarda às importações de aço provenientes de vários destinos, como a UE, o Japão, a China, a Coreia, o Brasil, etc. Estas medidas implicam um aumento de 8 a 30% sobre as tarifas que os vários tipos de produtos siderúrgicos pagam ao entrar nos EUA.

Ao abrigo do “1916 Antidumping Act”, aqueles países são acusados de dumping, ou seja, cálculo ilícito dos preços de exportação abaixo dos custos reais na origem. Sete outros Estados, juntamente com a UE, apresentaram uma queixa na Organização Mundial do Comércio, que lhes deu razão. Aquela lei, assim como a conhecida por “Byrd Amendment”, são consideradas como não conformes com a legislação da OMC, que foi aceite pelos Estados Unidos quando aderiram à organização. Não porque as medidas anti-dumping sejam proibidas. Qualquer estado tem o direito de fazer inquéritos sobre o cálculo dos preços dos produtos importados e tomar medidas quando se justificar. O que a OMC não aceita é a legislação americana e o tipo de medidas de retorsão que pretende aplicar.

O caso da reacção unilateral do governo em favor da indústria siderúrgica americana, que levou a mais uma condenação dos EUA, fez com que um senador democrata tivesse afirmado recentemente que a administração Bush devia “acordar”, pois que em 15 casos levados à OMC desde 2001 tinha perdido 13.

 

Outras restrições do mercado americano

Além de todas as restrições já citadas no acesso ao mercado americano, existem ainda as que derivam do não reconhecimento das patentes e normas estandardizadas internacionais. Com efeito, segundo o documento já citado da UE sobre as dificuldades de acesso ao comércio e investimento nos Estados Unidos, existem mais de 2.700 autoridades estaduais e municipais que têm poderes para requerer diversos certificados de conformidade às empresas que pretendem instalar-se e vender os seus produtos em território americano, qualquer que seja a sua actividade.

Este condicionalismo provoca um custo acrescido dos produtos que desvirtua as regras do mercado e vai contra os princípios defendidos aquando da criação da OMC.

Do sector automóvel ao das telecomunicações, passando pelo da electrónica, produtos farmacêuticos, agricultura e serviços, incluindo a banca e os seguros, todas as actividades são atingidas por normas em vigor que dificultam o acesso ao mercado. Um exemplo disso é o Buy America Act, que data de 1933 e ainda não foi revogado pelo Congresso. Esta lei proíbe os serviços públicos americanos de comprarem produtos oriundos de outros países, incluindo a adjudicação de contratos a empresas de construção estrangeiras.

Para quem pretende, com efeito, ter a liderança da política de liberalização económica a nível mundial, como afirmou recentemente o presidente Bush, o balanço é muito modesto, após pouco mais de sete anos de funcionamento da Organização Mundial do Comércio. Dir-se-ia que melhor e em menos tempo conseguiu a UE na implementação do seu Mercado Único, abrangendo uma diversidade muito grande de países e interesses que não se comparam com a dos Estados Unidos da América.

 

Conclusão

Os interesses económicos divergentes entre as duas maiores potências comerciais do mundo actual indiciam uma situação de bipolaridade que não se verifica a nível político e militar. Um bipolarismo que se assemelha ao existente entre os Estados Unidos e União Soviética durante a Guerra Fria. O fim da URSS como potência capaz de enfrentar os EUA em todos os domínios engendrou igualmente o seu declínio económico. Logo no início dos anos 90, várias empresas americanas, e também algumas europeias, entraram na Rússia e nas outras antigas repúblicas soviéticas com vista a tomarem posições-chave nalguns dos principais sectores da economia, nomeadamente no sector energético.

Embora recuperando e reorganizando-se economicamente, a Rússia está longe de se poder apresentar como uma potência rival dos Estados Unidos ou da UE, devido ao seu atraso tecnológico. Foi precisamente neste período que sucedeu ao desmoronamento da União Soviética que a Europa se fortaleceu, com a implementação do Mercado Único e a possibilidade de se alargar a leste, como agora está a acontecer. O êxito do lançamento do euro, que se apresenta como moeda alternativa ao dólar, tornou-a na principal potência económica mundial.

É à luz destes factos que se deve encarar muito do que está a acontecer actualmente. A invasão do Iraque pelos Estados Unidos, no ano passado, apenas serviu para clarificar melhor a situação e mostrar ao mundo que este país não permitirá, nos tempos mais próximos, que outra potência, qualquer que ela seja, atinja um poder equivalente ao seu.

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* José Pereira da Costa

Licenciado em Ciências Políticas e Relações Internacionais pela Université Libre de Bruxelles. Mestre em Política Internacional pelo Centre d’Etudes des Relations Internationales et Stratégiques da Université Libre de Bruxelles. Funcionário da Comissão Europeia, em Bruxelas, de 1989-2002.

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