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- JANUS 2004 -

Janus 2004



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Constituição e democracia: o tempo da Europa (II)

Noémia Pizarro *

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A Constituição Europeia veio reduzir os domínios onde se exigia a unanimidade e alterar os critérios da maioria qualificada, devendo esta ser constituída por uma maioria dos Estados membros, representado no mínimo três quintos da população da UE. Em matéria de política externa, os avanços foram muito poucos, mantendo-se o direito de veto neste domínio. No que respeita à justiça e assuntos internos, os avanços foram muito significativos: aplicação da regra da maioria qualificada e da co-decisão em matérias como o asilo, imigração e cooperação judiciária.

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Para além de reduzir os domínios em que se exige a unanimidade, o projecto de Constituição simplifica, em comparação com o Tratado de Nice os critérios para se atingir a maioria qualificada. Ao triplo requisito instituído em Nice, substitui-se o critério segundo o qual, para que uma decisão seja tomada por maioria qualificada, é necessário o voto de uma maioria de Estados membros representando, no mínimo, três quintos da população da União. Quando a adopção de uma proposta legislativa não tiver por base uma proposta da Comissão, têm que estar presentes os votos de, pelo menos, dois terços dos Estados membros da União, representando, no mínimo, três quintos da população europeia. Saliente-se ainda a introdução de uma “maioria reforçada” a substituir a unanimidade nas áreas politicamente mais sensíveis.

Uma nova cláusula passerelle permite ainda que os Estados membros decidam unanimemente que uma matéria que anteriormente exigia o acordo de todos eles possa vir a ser adoptada por maioria qualificada. Apesar de a maioria qualificada ter sido estendida a bastantes domínios novos, a unanimidade é ainda exigida em áreas cruciais, como a PESC (por exigência do Reino Unido) e o procedimento de revisão dos tratados. A questão das maiorias e a da ponderação de votos no Conselho são também dossiers que poderão ser reabertos na Conferência Intergovernamental, em Outubro.

 

Simplificação

A classificação dos actos legislativos da União Europeia sempre foi matéria da maior complexidade, resultante da sua denominação completamente desfasada da dos direitos internos dos Estados membros. Assim, é natural que poucos sejam os cidadãos europeus a saber que um “Regulamento” comunitário é, na verdade, uma lei geral e abstracta, directamente aplicável na ordem jurídica interna dos Estados. O projecto de Constituição consegue reduzir de quinze para seis o número de actos legislativos, introduzindo ainda uma espécie de hierarquia entre eles.

A divisão é efectuada entre actos legislativos e não legislativos. Os primeiros incluem os actuais regulamentos e directivas que passam a chamar-se leis e leis-quadro respectivamente, adaptando-se assim o nome ao conteúdo. Os actos não legislativos são os regulamentos e as decisões europeias, que são normas de execução, vinculativas.

No que respeita aos procedimentos, a co-decisão torna-se a regra e desaparece o procedimento de cooperação. Mantêm-se ainda algumas excepções importantes à regra da co-decisão, exigindo-se, nesses casos, a utilização de “procedimentos especiais” em que a intervenção do Parlamento Europeu não é decisiva: as decisões sobre recursos próprios da União e o programa financeiro multianual apenas requerem o consentimento do PE; este é apenas consultado para a adopção, entre outras, de medidas de combate à discriminação e à evasão fiscal, assim como na cooperação policial.

 

Democracia

A reclamada intervenção dos Parlamentos nacionais na tomada de decisões europeias é consagrada no projecto de Constituição através do chamado “mecanismo de alerta precoce”, pelo qual aqueles intervêm activamente no controlo da aplicação da subsidiariedade. De acordo com este novo mecanismo, a Comissão Europeia é obrigada a remeter as suas propostas legislativas aos Parlamentos nacionais e, em simultâneo, ao Parlamento Europeu.

Num prazo de seis semanas, qualquer Parlamento ou câmara parlamentar pode enviar um parecer fundamentado ao Presidente da Comissão, do Conselho ou do Parlamento Europeu, explicando o motivo pelo qual considera que a proposta viola o princípio da subsidiariedade. Os Parlamentos unicamerais têm dois votos e cada câmara dos parlamentos bicamerais dispõe de um voto.

Se pelo menos um terço desses votos for no sentido de que a proposta legislativa viola a subsidiariedade, a Comissão deve reanalisá-la e, em seguida, decidir se a quer manter ou retirar. Caso não concordem com o acto legislativo final, os Parlamentos nacionais dispõem de acesso directo ao Tribunal de Justiça.

Independentemente do interesse de tal controlo, concebido para reforçar o carácter democrático da vida comunitária, fácil é de constatar que este mecanismo, se mal utilizado, poderá dificultar e tornar ainda mais demorada a tomada de decisões.

A constitucionalização da Carta dos Direitos Fundamentais é, sem dúvida, uma das boas notícias trazidas pela Convenção. Ao proteger os direitos dos cidadãos europeus contra os actos das instituições comunitárias, a Carta surge como um complemento à protecção dada pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem, à qual, aliás, a União passa a poder aderir caso sejam ultrapassados alguns obstáculos de ordem jurídica.

As alterações às regras do recurso dos particulares perante o Tribunal de Justiça das Comunidades (induzidas certamente pela inclusão da Carta no texto constitucional) vão precisamente no sentido de alargar a possibilidade de acesso directo dos indivíduos à justiça comunitária, flexibilizando os critérios tornados demasiado rígidos pela jurisprudência restritiva do TJCE.

 

Política externa

Para além da já referida criação da figura do Ministro dos Negócios Estrangeiros, muito poucos foram os progressos alcançados na PESC, situação à qual não foi alheia a crise que abalou a Europa a propósito da intervenção anglo-americana no Iraque e que coincidiu em cheio com os trabalhos da Convenção. Por conseguinte, o direito de veto mantém-se na tomada de decisões de política externa, o que, numa Europa a vinte e cinco, é a receita para a inacção. Os maiores avanços registaram-se na Política de Segurança e Defesa (PESD): os Estados membros que preencham “elevados critérios em termos de capacidades militares” e com a vontade de desempenhar algumas missões sobre a égide da União Europeia podem estabelecer entre si uma “cooperação estruturada”; é introduzida uma cláusula de solidariedade entre Estados que sejam vítimas de ataques terroristas ou de catástrofes naturais; é instituída uma cooperação mais estreita, no âmbito da União, em matéria de defesa mútua, segundo a qual, caso um dos Estados que nela participam seja alvo de uma agressão armada no seu território, será ajudado e assistido por todos os meios, militares ou outros, ao alcance dos outros Estados participantes (tal cláusula, semelhante à contida no Tratado da UEO, é contestada por vários países, nomeadamente o Reino Unido, apesar de o projecto garantir que esta cooperação não afecta “os direitos e obrigações decorrentes do Tratado do Atlântico Norte”); prevê-se igualmente a criação de uma Agência Europeia de Armamento.

 

Justiça e Assuntos Internos (JAI)

É a política onde se registam os maiores progressos, confirmando a importância que as matérias da JAI tinham vindo a adquirir na União Europeia desde os ataques de 11 de Setembro. 

Os avanços são em número significativo: supressão do terceiro pilar; utilização de instrumentos comuns e extensão do controlo do TJCE a todas as matérias de Justiça e Assuntos Internos (salvo algumas excepções); o princípio do reconhecimento mútuo é estabelecido como a base da cooperação judiciária e em matéria penal; aplicação da maioria qualificada e da co-decisão como regra geral a matérias que incluem o asilo, a imigração e a cooperação judiciária em matéria civil (excepto no direito da família); reforço da cooperação operacional através da reavaliação das bases jurídicas da Europol e do Eurojust, incluindo o reforço dos poderes daquele órgão; adopção de procedimentos comuns relativamente a crimes com dimensão europeia; criação no Conselho de um comité destinado a coordenar a cooperação operacional entre Estados membros.

O projecto abre ainda a porta à criação de um Procurador-Geral europeu e a um corpo europeu de guardas fronteiriços, mas tais iniciativas exigem a unanimidade dos Estados membros e nenhum prazo é fixado para a sua criação. Resquícios do terceiro pilar revelam-se na continuação da excepção ao direito de iniciativa exclusiva da Comissão Europeia. Assim, no que respeita (agora apenas) à cooperação judicial em matéria penal e à cooperação policial, a Comissão ainda partilha com os Estados o direito de propor legislação, embora, neste último caso, a proposta deva recolher o apoio de, pelo menos, um quarto dos Estados membros.

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Economia e Finanças

Nas questões de natureza económica, o projecto de Constituição apenas consolida os já existentes poderes de coordenação da União Europeia. O direito de veto mantém-se para as questões fiscais, embora seja agora possível ao Conselho, por unanimidade, introduzir a maioria qualificada nas medidas de combate à evasão fiscal.

A maior novidade consiste na atribuição de poderes formais ao Eurogrupo, que actualmente reúne numa base meramente informal. Estes poderes incluem o direito exclusivo de voto nas matérias relacionadas com a política monetária comum, sem a intervenção dos Estados que não aderiram à moeda única. O texto prevê também uma maior flexibilização das regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento, que tomará em conta o investimento público e a sustentabilidade a longo prazo das finanças públicas.

 

Portugal e a Convenção

De entre todos os países da União Europeia, Portugal é, provavelmente, um dos menos entusiasmados com o projecto de Constituição. Os representantes portugueses na Convenção assumiram, em geral, uma posição defensiva e cautelosa, mostrando-se avessos a grandes alterações no sistema institucional europeu, preocupados sobretudo com a eventual diminuição de poder por parte dos países mais pequenos. Bateram-se pela manutenção de um comissário por país, pelo reforço dos poderes da Comissão, pela manutenção da unanimidade nas questões fiscais, contra o fim das presidências rotativas e contra a figura do Presidente do Conselho Europeu. Apoiaram o Ministro dos Negócios Estrangeiros europeu, a utilização generalizada da maioria qualificada e da co-decisão e a inclusão da Carta no texto constitucional.

No final, os representantes à Convenção acabaram por considerar aceitável o projecto, mas o Governo português declarou que iria reabrir alguns dos dossiers na Conferência Intergovernamental.

Ao nível interno, uma sondagem recente conduzida pelo Eurobarómetro revelou que 46% dos Portugueses nunca tinha ouvido falar da Convenção, apesar de uma grande maioria ser a favor de uma Constituição Europeia. O escasso conhecimento da opinião pública sobre estas questões fulcrais fica a dever-se, por um lado, à sua fraca cobertura televisiva (embora o mesmo não se possa dizer da cobertura efectuada pela imprensa escrita) e, por outro, ao facto de tais temas nunca terem sido objecto de intervenções visíveis por parte do Governo ou dos líderes de opinião.

De qualquer maneira, é possível dizer-se que os principais partidos políticos, parceiros sociais e organizações profissionais apoiaram, em geral, as posições do Governo no que respeita à manutenção do equilíbrio institucional, do princípio da igualdade entre Estados e ao reforço dos poderes da Comissão europeia.

Dos parceiros sociais e associações industriais, UGT e AIP foram os que mais activamente defenderam a constitucionalização de um modelo económico e social europeu respeitador da Estratégia de Lisboa, em que a coordenação das políticas económicas e sociais assume um papel fundamental.

Desde o final da Convenção, Portugal tem vindo a concertar posições com os restantes países pequenos da UE de modo a apresentar-se na CIG com uma posição forte e margem de manobra suficiente para fazer valer as suas posições nas negociações que se avizinham.

 

O futuro é europeu

Uma Constituição, o fim da estrutura em pilares, uma personalidade jurídica única, um catálogo de Direitos Fundamentais – a União que sai da Convenção Europeia é uma entidade profundamente renovada. Mesmo que muitas das soluções alcançadas fiquem aquém dos desafios internos e externos que a Europa enfrenta neste início de século, o texto constitucional é, provavelmente, o único compromisso possível conseguido numa Europa que nem sempre partilha uma visão comum do seu futuro.

Resta saber o que fará a Conferência Intergovernamental com o texto que foi unanimemente aprovado por cento e cinco representantes de Governos, parlamentos nacionais e instituições europeias. Tendo em conta as posições já assumidas por vários dos representantes governamentais à Convenção, é duvidoso que qualquer alteração que ocorra na CIG vá no sentido de mais integração. É, portanto, de evitar qualquer reabertura substancial do projecto de Constituição pois isso levará, como afirmou Giscard d’Estaing, “a uma crise de que a Europa não necessita”.

O método de Convenção é indiscutivelmente um método mais democrático de alterar as regras comunitárias em comparação com o método diplomático clássico, em que as negociações decorrem à porta fechada. Apesar de todos os seus defeitos, o projecto de Constituição torna a União Europeia uma organização mais transparente e compreensível e, portanto, mais próxima dos cidadãos.

 

Informação Complementar

O que esperar da Conferência Intergovernamental?

Aprovado por unanimidade pelos representantes à Convenção, o projecto de Constituição Europeia foi considerado pelo Conselho Europeu de Salónica como “uma boa base de trabalho” para a Conferência Intergovernamental que será lançada pelos chefes de Estado e de Governo da UE a 4 de Outubro próximo. Reabrir de novo partes significativas deste texto poderá pôr em causa todo o trabalho da Convenção e levar ao adiamento da assinatura do novo Tratado, prevista para finais de Maio de 2004.

No entanto, várias são as vozes que se têm manifestado contra determinados aspectos do projecto e que pedem a reabertura de dossiers:

- Romano Prodi, Presidente da Comissão Europeia, considerou inaceitável a nova composição desta instituição, que prevê que metade dos Comissários perca o direito de voto durante metade do seu mandato.

- O governo português defende que a futura repartição de poderes na UE tem de respeitar a manutenção da igualdade entre Estados membros, o equilíbrio entre as instituições comunitárias e o actual método de tomada de decisões.

- Na mesma linha, a grande maioria dos pequenos países da UE declarou querer preservar o princípio de um Comissário por país e o sistema rotativo de presidências. Estes serão, sem dúvida, os temas mais “quentes” da próxima CIG.

- Portugal é ainda contrário à possibilidade, aberta pelo projecto, de extensão da actividade da União à defesa colectiva, tal como existe na NATO ou havia na UEO. Para o Governo, isso colocaria sérios problemas àqueles Estados membros que não pertencem à Aliança, bem como àqueles que, como Portugal, consideram que a sua defesa colectiva assenta na NATO.

- A Espanha e a Polónia estão decididas a reabrir as negociações no que respeita à controversa questão da ponderação de votos no Conselho.

- Vários países, incluindo a Holanda, a Alemanha, a Bélgica, o Luxemburgo e Portugal, pretendem que o direito de veto na Política Externa e de Segurança Comum seja suprimido.

- O Parlamento Europeu, que tem um mero papel de observador na CIG, pretende obter aí um maior envolvimento a todos os níveis, algo que mereceu o apoio da Presidência italiana, a qual, porém, não definiu os termos concretos dessa intervenção. Países grandes como a Itália, França e a Alemanha mostraram-se, em geral, satisfeitos com o texto final.

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* Noémia Pizarro

Licenciada em Direito pela Universidade de Coimbra. Docente de Direito, Ciência Política e Estudos Europeus na Universidade Católica Portuguesa (Braga). Investigadora no Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais – IEEI.

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