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Janus 2004



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Justiças alternativas

Jorge Pegado Liz *

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A chamada “resolução alternativa de conflitos” não pretende substituir os tribunais na aplicação da justiça, mas constituir um meio de prevenção ou de resolução de conflitos, sem o recurso a um tribunal comum. Já em 1985 um Memorando da Comissão referia a criação de “processos simplificados” facilitadores da resolução de litígios de consumo, mas foi em 1993 que a questão dos meios extrajudiciais veio a ser encarada de forma decisiva como um objectivo da UE. As “justiças alternativas” promovem assim maior proximidade, rapidez e menor custo na resolução de conflitos de consumo.

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De alguns anos a esta parte, em particular no domínio do direito comunitário do consumo, o tema de resolução de conflitos de consumo por meios alternativos, vulgo ADR (1), tem sido tónica dominante da literatura jurídica e de iniciativas práticas, algumas com carácter experimental, prosseguidas ou promovidas e incentivadas pelas instituições comunitárias.

Com estes métodos ou processos alternativos de resolução de litígios, sejam eles quais forem, não se pretende, não se deseja, nem se defende que sejam uma alternativa à justiça dos tribunais. Como fundamento mesmo do poder democrático, o exercício da justiça, terceiro pilar de qualquer Constituição democrática, só aos tribunais, como órgão de soberania, deve caber, sejam tribunais nacionais, comunitários ou internacionais, expressão última do “Estado de Direito” e da legalidade democrática.

Outra coisa que estes meios de resolução alternativa também não são é uma “justiça de 2.ª classe”, uma “imitação pobre” da justiça, uma justiça para conflitos “menores”. Não é, com efeito, correcto classificar os litígios em maiores ou menores, consoante o valor dos interesses envolvidos ou a natureza das questões tratadas. Quando se fala, pois em “justiças alternativas”, não é de uma alternativa ao exercício da justiça pelos tribunais de que se trata, mas de uma outra forma, de um outro modo, de uma maneira outra, de prevenir ou de resolver conflitos, sem o recurso aos tribunais ordinários, e de acordo com princípios e critérios diversos dos geralmente seguidos na justiça, nomeadamente em áreas ou em domínios onde, por variadas razões, o recurso aos meios tradicionais ou às formas institucionalizadas de justiça, ou estão excluídos ou se revelam desajustados dos interesses em disputa. (2)

 

As origens próximas das justiças alternativas

Embora seja sempre possível, como em tudo, recuar pelo menos até ao tempo dos romanos para aí encontrar a origem remota dos ADR (3), foi no entanto, nas décadas de 70 e 80 que, primeiro ao nível do Conselho da Europa (4) e, depois, em especial com o Memorando da Comissão transmitido ao Conselho, em 4 de Janeiro de 1985, sobre o Acesso dos Consumidores à Justiça, que, pela primeira vez, se suscitou a questão da “inadaptação dos sistemas judiciários tradicionais ao tratamento das pequenas queixas” e se avançou com a ideia do apoio a “projectos-piloto” com vista à criação de “processos simplificados” para a resolução de litígios de consumo (5).

No seu seguimento, várias iniciativas foram surgindo, um pouco por todo o lado, na Europa, como “projectos-piloto” que procuravam interpretar, de acordo com as circunstâncias e os condicionamentos próprios de cada ordenamento jurídico nacional, as ideias de maior proximidade, mais celeridade, menos burocracia, prova mais fácil, menor custo e equidade na resolução de conflitos de consumo. O nosso Tribunal Arbitral de Conflitos de Consumo de Lisboa, criado em 1988, é disso um bom exemplo (6).

Mas foi, no entanto, apenas em 1993, com o “Livro Verde sobre o Acesso dos Consumidores à Justiça e a resolução dos litígios de consumo no mercado único” que a questão dos meios extrajudiciais veio a ser encarada de uma forma decisiva e como objectivo da União Europeia, a nível comunitário (7). Com efeito, a par de uma abordagem tímida às “class actions” (8) e de uma primeira aproximação a um sistema comunitário de assistência judiciária (9), foi aí que surgiu reforçada a ideia do recurso aos meios não judiciais para resolução de litígios transfronteiras de consumo (10).

Desta orientação de fundo iria surgir, já no tempo da comissária Emma Bonino, o Plano de Acção relativo ao acesso dos consumidores à justiça e à resolução dos litígios de consumo no mercado interno (11), onde são enunciadas várias iniciativas tendentes a melhorar o acesso dos consumidores à justiça e onde sobreleva “uma reflexão prioritária” em matéria de procedimentos extrajudiciais, com um programa de trabalho e um calendário, que tinha como objectivo a definição de critérios mínimos uniformes para a implementação dos referidos procedimentos a nível comunitário e a consequente elaboração de uma Recomendação. Este objectivo foi concretizado em 1998, com a publicação da Comunicação da Comissão sobre a Resolução Extrajudicial dos Conflitos de Consumo e da Recomendação da Comissão relativa aos princípios aplicáveis aos órgãos responsáveis pela resolução extrajudicial dos litígios de consumo (12).

Entre nós, o passo mais significativo foi dado pelo então ministro José Sócrates ao “transpor” o teor da Recomendação referida para um instrumento coercivo – o Decreto-Lei 146/99 de 4 de Maio, com o qual se dá um impulso decisivo na adopção de “mecanismos alternativos de resolução de litígios de consumo, desde que garantido o respeito de certos princípios essenciais”, precisamente os que eram já recomendados pela Comissão, e que foram justamente reforçados no nosso direito interno.

 

As iniciativas comunitárias e nacionais

A nível comunitário, os desenvolvimentos mais importantes, resultantes deste impulso no sentido das justiças alternativas, foram de duas ordens. De um lado, a criação e a implementação de uma Rede Europeia Extrajudicial (EEJ-NET), com origem num importante documento de trabalho da Comissão, de Março de 2000 (13), cujas orientações foram adoptadas pelo Conselho de Consumidores, de Abril de 2000 (14) e com a finalidade de ligar em rede os diversos organismos nacionais reconhecidos para a resolução extrajudicial de conflitos de consumo (15). É importante salientar que na Resolução do Conselho se frisa, com clareza, que “toda e qualquer iniciativa deverá assentar numa participação voluntária, não privando os consumidores do direito de acesso aos tribunais (...) não prejudicando quaisquer outras vias de recurso administrativo ou judicial, tendo plenamente em conta as disposições jurídicas, a tradição e a prática nacionais” (16).

O outro desenvolvimento, iniciado no Conselho “Justiça e Assuntos Internos”, de Maio de 2000, durante a presidência portuguesa, foi o do “estabelecimento a uma escala europeia de um método de trabalho relativo à resolução de conflitos, por meios alternativos, relativamente a questões civis e comerciais” (17). A grande novidade desta iniciativa, que foi concretizada no “Livro Verde sobre osmodos alternativos de resolução dos litígiosem matéria civil e comercial” (18) reside nofacto de ele se referir não já apenas aosconflitos de consumo, mas antes de teralargado o seu âmbito de aplicação aosconflitos relativos a questões de direito civile comercial, englobando ainda as relaçõesde família e as relações de trabalho.

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Tomando como base as Recomendações da Comissão de 30 de Março de 1998 e de 4 de Abril de 2001 para a resolução extrajudicial de litígios de consumo (19), o Livro Verde aponta claramente para a necessidade de um instrumento comunitário que defina os princípios gerais que devem enformar, harmonizando-os na União Europeia, os sistemas nacionais de resolução alternativa de conflitos de natureza civil ou comercial, por forma a ser garantida uma justiça alternativa eficaz, pronta, transparente, imparcial e justa (20). Aguarda-se, agora, da Comissão, o seguimento a dar a este Livro Verde, em face das respostas recebidas às questões nele suscitadas sobre a natureza, o âmbito e o conteúdo do instrumento comunitário desejável para regular os ADR nas áreas civil e comercial.

Entre nós, os desenvolvimentos mais recentes nesta área foram também de dois níveis. Um primeiro, de nível jurídico-positivo, regula a competência, a organização e o funcionamento dos julgados de paz e a tramitação dos processos da sua competência, com vista a estimular a justa composição dos litígios por acordo das partes (21). Embora com carácter experimental e limitado apenas a algumas localidades (22), a iniciativa retoma uma tradição, esquecida em Portugal, embora ainda corrente em vários países europeus e latino-americanos, de proximidade da justiça aos cidadãos e de institucionalização da mediação como alternativa aos tribunais comuns (23).

É, evidentemente, muito cedo para um balanço dos seus resultados, mas importa deixar expresso o aplauso pela tentativa de dar resposta a críticas várias e persistentes ao mau funcionamento dos meios tradicionais de aplicação da justiça. O outro nível de intervenção, de carácter eminentemente político, foi concretizado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 175/2001, de 5 de Dezembro de 2001 (24) que reafirmou o “firme propósito de promover e incentivar a resolução de litígios por meios alternativos (...) enquanto formas céleres informais, económicas e justas de administração e realização de justiça”. Embora traduzida numa declaração de intenções, esta resolução do anterior executivo marcou uma preocupação fundamental pela construção de um sistema de administração da justiça caracterizado por “maior acessibilidade, proximidade, celeridade, economia, multiplicidade, diversidade, proporcionalidade, informalidade, oportunidade, visibilidade, comunicabilidade, inteligibilidade, equidade, participação, legitimidade, responsabilidade e reparação efectiva” (25).

A par das preocupações estatais, são de destacar as iniciativas da sociedade civil organizada, em particular nos domínios do consumo, com a criação de Centros de Arbritagem de Conflitos de Consumo de carácter geral (26) ou temático (27). Por outro lado, vários sectores de actividade económica têm criado os seus próprios órgãos de resolução extrajudicial de conflitos ou de mediação, sendo de destacar as agências de viagens, os telefones, algumas instituições de crédito e alguns órgãos de comunicação social (28).

 

Apreciação geral

Se alguma conclusão geral houver que tirar, em especial numa perspectiva do desenvolvimento do mercado único e da possibilidade do aumento do número e da importância dos conflitos transfronteiras, será a de que a preocupação pela criação de meios alternativos de resolução de litígios corresponde a uma necessidade de assegurar uma mais fácil e mais pronta realização da justiça, por forma menos burocrática e menos dispendiosa. Inscrevem-se, assim, os ADR na preocupação maior de garantir o acesso à justiça a todos os cidadãos europeus, em condições de igualdade.

Sem nunca pôr em causa o direito de recurso aos tribunais, não oferece contestação que os ADR facultam o acesso a formas alternativas de realização da justiça, com vantagens irrecusáveis, quer para a sociedade civil, quer para os próprios Estados.

É pois fundamental que nos próprios “curricula” escolares, desde os níveis intermédios aos níveis superiores, com especial incidência nos estudos jurídicos, os mecanismos de resolução alternativa de disputas estejam presentes como disciplina obrigatória de conhecimento científico. Como essencial será que a sua concretização prática seja estimulada e incentivada a todos os níveis da vida económica, por forma a contribuir para facilitar a concretização de transacções transfronteiras, num mercado único cada vez mais alargado.

 

Informação Complementar

As dificuldades de acesso à Justiça

A questão da procura de uma outra forma de justiça para os conflitos de consumo é verdadeiramente universal. Na Nova Zelândia, uma professora da Victoria University de Wellington, no livro sobre “Consumer Law in New Zealand”, escreve: “Não é suficiente existirem leis com o objectivo de proteger os consumidores. (...) Além de leis substantivas, os consumidores necessitam de ter acesso aos direitos que essas leis consagram. Sem acesso à justiça, os direitos dos consumidores são miragem. Por razões diversas, o acesso à justiça é um dos principais motivos de preocupação no domínio dos conflitos do consumo”.

No pólo oposto à Nova Zelândia, um professor da Universidade do Quebeque em Montreal, Pierre-Claude Lafond, enumera os diversos obstáculos no acesso dos consumidores à justiça, nos meios judiciais tradicionais. Primeiro, considera os obstáculos objectivos, uns de natureza económica, como sejam os honorários dos advogados, as custas judiciais, os custos das peritagens, as despesas com o processo, os custos indirectos (perda de salários das partes e das testemunhas, despesas de transportes, de alojamento e de alimentação), outros como a lentidão da justiça e a sua ineficácia e ainda outros obstáculos institucionais (o princípio do contraditório, o formalismo e a complexidade do processo judicial, os horários de funcionamento dos serviços judiciais). Em segundo lugar, refere os obstáculos subjectivos onde se enquadram as barreiras psicológicas (o medo e o complexo de inferioridade face ao aparelho judicial, o sentimento de descontentamento da população face aos tribunais), os obstáculos ligados à informação judicial (a linguagem jurídica, a ausência ou insuficiência de informação jurídica), a ausência de propensão para o litígio e o desequilíbrio das forças em presença.

__________

1 - De “Alternative Dispute Resolution”.
2 - Numa “questão escrita” à Comissão, apresentada no PE, em Setembro de 1985 era salientado que “os peritos estimam que apenas 3% dos litígios que implicam os consumidores são levados aos Tribunais. Nos restantes 97% dos casos, o consumidor renuncia a fazer valer os seus direitos” (M.Willy Knipsers).
3 - Com a figura dos “magistratus cum potestate sine imperio”.
4 - Carta do Conselho da Europa sobre Protecção de Consumidores, aprovada pela Resolução 543 da Assembleia Consultiva de 17 de Abril de 1973.
5 - Doc. COM (84) 692 final.
6 - Mas outros projectos foram também sucesso, como, designadamente, o da Sheriff Court de Doudee, os de Denize e de Marchienne-au-Pont, na Bélgica, de Dijon e La Creusot, em França, o “Consumer Personnel Service” da Irlanda.
7 - Doc. COM (93) 576 final de 16 de Novembro de 1993.
8 - Que se traduziria na Directiva relativa às acções inibitórias (Directiva 98/27/CE de 19 de Maio de 1998, J.O. L 166/51 de 11.06.98).
9 - Que daria origem à Directiva 2002/8/CE de 27 de Janeiro de 2003 relativa à melhoria do acesso à justiça nos litígios transfronteiriços (J.O. Nº L 26/41 de 31.01.03).
10 - No Parecer que o CESE produziu sobre este Livro Verde, da autoria do Dr. Manuel Ataíde Ferreira diz-se, designadamente, que “deve ser incentivado o diálogo entre as entidades públicas, as organizações profissionais e as organizações deconsumidores no sentido quer da co-regulação dos interesses em causa, quer da prevenção de litígios, pelo incentivoà institucionalização de procedimentos de carácter voluntário de mediação e de conciliação”; e que “sem prejuízo doaperfeiçoamento e melhoria dos mecanismos de carácter judiciário, um lugar destacado deve ser dado aos procedimentosde carácter arbitral institucional como forma alternativa de resolução de conflitos de consumo”.
11 - Doc. COM (96) 13 final de 14.02.96.
12 - Doc. SEC (1998) 576 final e Recomendação 98/257/CE de 30 de Março de 1998 (J.O. Nº L 115/31 de 17.04.98).
13 - Doc. SEC (200) 405 final de 17.03.2000.
14 - O seu lançamento foi objecto de uma importante conferência realizada em Lisboa, a 5/6 de Maio de 2000.
15 - No caso particular de questões relativas a serviços financeiros transfronteiriços foi criada a FIN-NET, de que faz parte, entre nós, o Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo de Lisboa.
16 - É de recordar que, paralelamente a esta iniciativa, a Comissão, também em 2000, preparou uma Proposta de Decisão do Conselho para o estabelecimento de uma Rede Judiciária Europeia em matéria civil e comercial (Doc. COM (2002) 592 final de 22.09.2000) acompanhando a tendência iniciada por essa altura, com a integração do 3º pilar, de uma definição de um direito processual à escala comunitária, embrião de um verdadeiro “espaço judiciário único” (Cf. Regulamentos CE 1346/2000, 1347/2000 e 1348/2000, todos de 29 de Maio de 2000 in J.O. L 160 de 30.06.2000 sobre, respectivamente os processos de insolvência com efeitos transfronteiriços, a competência, o reconhecimento e a execução de decisões em matéria matrimonial e poder paternal e a citação e notificação de actos judiciais e extrajudiciais em matéria civil e comercial).
17 - Acta do 2266º Conselho de Justiça e Assuntos Internos de 29 de Maio de 2000.
18 - oc COM (2002) 196 final de 19.04.02.
19 - Publicadas, respectivamente no J.O. L 115/31 de 17.04.98 e L 109/56 de 19.04.01.
20 - No Parecer do CESE, da autoria do Sr. Malosse aponta-se para que esse instrumento seja uma Recomendação muito embora se deixe em aberto a questão de oportunidade, a prazo, de uma Directiva, poder vir a ser adoptada.
21 - Lei 78/2001 de 13 de Julho e Portaria 436/2002 de 22 de Abril.
22 - Lisboa, Seixal, Oliveira do Bairro e Vila Nova de Gaia.
23 - Ver “Julgados de Paz e Mediação: um novo conceito de Justiça” de Ana Soares da Costa e outras, AAFDL, 2002.
24 - In DR n.º 299, de 28.12.01.
25 - Não há conhecimento de o actual executivo ter dado qualquer seguimento a este tipo de preocupações.
26 - Lisboa, Porto, Coimbra, Vale do Cávado, Vale do Ave e Algarve.


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* Jorge Pegado Liz

Advogado. Membro da Alta Autoridade para a Comunicação Social e Conselheiro do CESE.

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