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Janus 2005



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O papel das organizações regionais na resolução de conflitos (II)

Patrícia Magalhães Ferreira *

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Na sequência dos desaires sofridos na Somália (1992) e no Ruanda (1994), o papel dos países mais desenvolvidos na resolução de conflitos em África traduz-se hoje no envolvimento de alguns milhares de tropas europeias e norte-americanas em missões de paz em África apenas no âmbito de arranjos ad-hoc bilaterais ou em missões de carácter muito específico e de duração limitada, não sendo parte integrante de operações alargadas das Nações Unidas. Os números ilustram as dificuldades: se em 1991 oito dos dez maiores contribuintes para as missões de paz da ONU eram países com altos níveis de desenvolvimento, actualmente, para além da Ucrânia (considerado de desenvolvimento médio), todos os outros pertencem ao universo dos países com baixos níveis de desenvolvimento, incluindo quatro países africanos – Gana, Quénia, Nigéria e África do Sul. Este facto está igualmente ligado ao surgimento de programas de apoio à capacitação das organizações africanas no campo da segurança e da paz.

É o caso do Programa ACRI (Africa Crisis ResponseInitiative) criado pelos Estados Unidos em 1995, do RECAMP (Renforcement de la Capacité de Maintien de la Paix), implementado pela França, ou ainda do apoio concedido pela União Europeia no quadro da “Africa Peace Facility”, criada em Abril de 2004. A renovada importância de alguns países africanos devido às questões do terrorismo tem motivado igualmente algumas acções regionais dos EUA, de treino e equipamento de diversos países para o controlo das fronteiras e detecção de movimentos suspeitos, como acontece actualmente com a Iniciativa Pan-Sahel (Pan Sahel Initiative – PSI), dirigida às forças de segurança do Mali, Níger, Chade e Mauritânia.

 

A capacitação das organizações africanas no campo da segurança e da paz: a UA

Ao nível continental, a União Africana – criada em 2002 em substituição da OUA – elegeu desde logo a prevenção e resolução de conflitos como campo privilegiado de actuação, considerando a estabilidade político-social como condição necessária ao sucesso de quaisquer estratégias de desenvolvimento. Se é certo que a longa história de insucessos nas tentativas de integração pan-africana suscita algum cepticismo, a nova organização parece ser menos ideológica e mais pragmática, enfatizando a interdependência mútua. Isto representa uma mudança de filosofia importante, já que, pela primeira vez, os Estados africanos parecem dispostos a abdicar de parte da sua soberania em nome de valores como a paz ou a boa governação. Neste sentido, a existência de um mecanismo de “revisão pelos pares” (peer review), ao qual o Gana foi o primeiro a submeter-se, é um passo importante para a promoção da transparência ao nível das políticas públicas e da credibilidade dos regimes políticos.

 

Soberania “versus” subsidiariedade

Apesar de a África estar, no seu todo, ainda muito longe de constituir uma verdadeira “comunidade de segurança”, os recém criados Parlamento Pan-Africano e Conselho de Paz e Segurança (CPS) da UA – onde nenhum dos 15 membros possui direito de veto –, podem igualmente vir a constituir-se como órgãos vitais na área da democracia e da paz, caso sejam ultrapassados os graves problemas de sustentabilidade financeira actualmente existentes. Uma das componentes essenciais do CPS é o estabelecimento de um Sistema Continental de Alerta Antecipado (CEWS), o qual estará estreitamente ligado às unidades de observação e monitorização das organizações sub-regionais – como as que estão a ser estabelecidas no seio do IGAD, CEDEAO e SADC. Estas unidades deverão coligir e processar os dados a nível sub-regional e transmiti-los para a sala de situação do CEWS. Esta metodologia, largamente inspirada no princípio da subsidiariedade, assume uma importância acrescida no contexto africano, onde a falta de recursos a todos os níveis obriga a que não se dupliquem esforços.

 

Mediação, resolução de conflitos e intervenção militar

Ao nível regional, as iniciativas de mediação e resolução de conflitos são variadas, como ilustram os processos de paz no Burundi, República Democrática do Congo, Somália, Sudão, Libéria ou Serra Leoa. No que respeita às acções político-diplomáticas de mediação, saliente-se as iniciativas para a paz na Somália e no Sudão desenvolvidas pela principal organização de integração regional na África Oriental – a Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento (IGAD); as múltiplas missões diplomáticas e reuniões realizadas na África Ocidental sobre o conflito na Costa do Marfim ou na Libéria; ou ainda a mediação sul-africana nos conflitos congolês e burundês.

No campo da intervenção militar, a CEDEAO é ainda a única organização sub-regional que funciona com um sistema de defesa integrado, através do seu braço armado, o Ecowas Monitoring Group (ECOMOG), não obstante a grande dependência externa relativamente aos meios logísticos e financeiros necessários para realizar as suas missões. Durante os anos 90, esta força interveio em três conflitos – Libéria (1990-1997), Serra Leoa (1993-2000) e Guiné-Bissau (1998-1999) – mas os resultados foram objecto de fortes críticas, quer pela transformação das missões de paz em campanhas militares a favor de uma das facções ou de interesses nacionais (nomeadamente nigerianos), quer pela conduta de alguns efectivos, acusados de aproveitamento económico, de abuso de autoridade e de violações graves dos direitos humanos.

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A reformulação da CEDEAO

A persistência de conflitos prolongados em vários Estados membros da CEDEAO e os erros cometidos nas suas anteriores intervenções vieram suscitar uma alteração dos objectivos da organização, inserindo-se neste contexto a assinatura, em 1999, do Protocolo para o estabelecimento de uma arquitectura de segurança e de resolução de conflitos na região, a criação do Conselho de Mediação e Segurança (permitindo uma intervenção militar com maioria de 2/3 dos votos), a criação de uma unidade contra a proliferação de armas leves, a constituição de um Fundo para a Paz, criado em Dezembro de 2003, com vista a financiar as intervenções militares e diminuir a dependência de contribuições de contingência feitas pelos países ocidentais, ou ainda o surgimento de vários centros de treino regionais para formação específica dos militares relativamente a missões de paz, como, para além das academias militares da Nigéria e do Mali, a criação no Gana, em Janeiro de 2004, do Kofi Annan International Peacekeeping Training Centre, especialmente vocacionado para o reforço das capacidades de manutenção da paz ao nível sub-regional através do treino de oficiais para uma futura força permanente da CEDEAO. Espera-se assim assegurar uma maior heterogeneidade na composição das missões, e suplantar o predomínio de tropas nigerianas no núcleo de todas as missões de paz efectuadas pela organização, uma vez que a Nigéria é o único país da região com uma substancial capacidade militar de forças navais e aéreas.

 

Um novo patamar de segurança: reacção versus prevenção

A posição nigeriana, no sentido de criar condições, ao nível do Conselho de Mediação e Segurança, para permitir que os Estados prontos a intervir avancem imediatamente para o terreno, permitiu desbloquear diversas acções que numa situação de unanimidade não teriam tido a rapidez necessária. O exemplo da intervenção na Libéria em Agosto de 2003 é paradigmático, uma vez que a Nigéria optou por reorientar para Monróvia um contingente militar que se encontrava em processo de regresso da Serra Leoa, permitindo assim colocar uma força de interposição no terreno, num curto espaço de tempo e numa fase crítica das hostilidades. A previsível criação de uma força de reacção rápida que irá funcionar através da activação de unidades de stand-by no seio das forças armadas nacionais dos Estados-membros, permitirá, num futuro próximo, reforçar ainda mais a capacidade de intervenção ao nível regional.

Contudo, a organização está igualmente empenhada em passar de uma posição reactiva a uma abordagem mais pró-activa dos conflitos, que permita antecipar crises e implementar medidas preventivas em caso de tensões potencialmente conflituosas. Nesse sentido, estão a ser criados seis centros de alerta antecipado em pontos-chave da África Ocidental, coordenados pelo Centro de Observação e Monitorização sediado em Abuja. Para além disso, o conflito na Libéria fez com que, em 2003, pela primeira vez desde a sua criação, a CEDEAO interviesse num conflito intra-estatal como organismo de mediação, promovendo a assinatura do acordo de paz entre o governo liberiano e os dois principais grupos rebeldes.

 

A África Austral e a SADC

Apesar da existência de uma organização sub-regional mais consistente em termos de integração económica e sectorial – a SADC –, na África Austral os esforços de coordenação nas áreas da política externa e de segurança estão ainda numa fase embrionária. O Órgão de Política, Defesa e Segurança, com funções de prevenção e resolução de conflitos, tem sido objecto de longos debates sobre a sua estrutura e estatuto, encontrando-se praticamente inoperante desde a sua criação, em meados da década de 90. Isto deve-se principalmente ao seu carácter intergovernamental, a querelas políticas entre Estados-membros, à ausência de valores comuns (coexistência de regimes autoritários e democráticos), a disparidades entre os elementos orientadores das várias políticas externas (pacifistas nuns casos, militaristas noutros), e a uma acérrima competição pela afirmação de poder e influência regionais.

A resposta da SADC às crises no Lesoto e na RD do Congo, em 1998, ilustram claramente os aspectos referidos. No primeiro caso, a intervenção foi considerada por muitos como unilateral, devido ao predomínio dos efectivos sul-africanos, para além de parcial, por auxiliar claramente uma das partes do conflito. No segundo, a existência de interesses económicos e políticos divergentes dividiram os países em “duas SADC”, com objectivos e estratégias inconciliáveis: de um lado Estados como a África do Sul, a Tanzânia ou a Zâmbia, manifestando preferência por uma posição mais neutral; do outro, Angola, Namíbia e Zimbabué, adeptos de uma intervenção militar e defendendo claramente interesses nacionais concretos.

Para além disto, por diversas ocasiões a organização desqualificou-se a si própria como possível mediador, ao assumir o apoio a um dos beligerantes, como aconteceu relativamente a Angola com a classificação de Jonas Savimbi como criminoso de guerra na Cimeira Anual de 1998. Apesar destes elementos negativos, registem-se os esforços desenvolvidos para a implementação do Protocolo sobre Política, Segurança e Cooperação e a negociação de um Pacto de Defesa Comum (assinado em Julho de 2001), o qual permite a intervenção da SADC, não só contra agressores externos, mas igualmente em conflitos intra-estatais que representem uma ameaça potencial à segurança da região.

 

A “African stand-by force”da União Africana

Vemos assim que a existência de uma capacidade de intervenção militar permanece um elemento importante a ser reforçado nas cinco sub-regiões (África do Norte, Central, Oriental, Ocidental e Austral), a qual se espera vir a materializar-se na formação de brigadas stand-by em cada uma delas, sob supervisão máxima da União Africana. No entanto, persistem problemas delicados com o envolvimento de países vizinhos em conflitos internos. Este factor pode vir a ser minimizado com o reforço da capacidade de intervenção no âmbito continental, através da criação de uma força militar no seio da União Africana, tal como foi decidido no início de 2004 pelos líderes africanos. Esta “African stand-byforce” representa um novo paradigma para manutenção da paz em África e terá cerca de 15.000 efectivos distribuídos em cinco brigadas de forças militares, policiais e observadores, podendo ser mandatada por decisão do Conselho de Paz e Segurança da UA, através de maioria de dois terços.

A primeira missão de paz da UA, realizada entre Abril de 2003 e Junho de 2004 no Burundi, constituiu já um exercício importante na preparação de uma força própria. A African Union’s Mission in Burundi (AMIB), constituída por cerca de 2600 efectivos militares da Etiópia, Moçambique e África do Sul, desempenhou um papel muito positivo na prossecução das tarefas para as quais estava mandatada – supervisionar o cessar-fogo, apoiar iniciativas de desmilitarização e contribuir para a estabilidade política do país –, mas debateu-se desde o início com limitações financeiras importantes que acabaram por ameaçar a continuidade da missão. Para além disso, a grande fragilidade do processo de paz (um dos principais grupos rebeldes não assinou o Acordo de paz vigente) e o desacordo, ao nível político, quanto à reforma das forças armadas, colocou a força de paz numa situação de impasse, impedindo-a de prosseguir os programas de reintegração.

 

A ONU: a prevalência internacional na resolução de conflitos

A actuação das Nações Unidas continua, assim, a ser essencial para os diversos processos de paz em curso nos países africanos, não só por razões práticas, mas, igualmente, como factor de legitimação das intervenções regionais. Nos últimos anos, esta intervenção tem-se desenrolado por várias vezes numa fase posterior à imposição da segurança por forças regionais com mandatos específicos de curta duração, como acontece actualmente na Libéria, em que o contingente da CEDEAO (a ECOMIL), apoiado por forças norte americanas, foi substituído por uma força internacional de manutenção de paz. Na verdade esta “substituição” não é mais do que uma absorção dos efectivos africanos no contingente das Nações Unidas – tal como aconteceu, já em 2004, com os 1400 efectivos da CEDEAO presentes na Costa do Marfim (integrados na Operação das Nações Unidas na Costa do Marfim – UNOCI) e os cerca de 2650 efectivos militares da AMIB no Burundi (absorvidos pela Operação das Nações Unidas no Burundi – UNOB) – o que permitiu, por um lado, colmatar as limitações financeiras das forças regionais, e por outro, resolver o problema da lentidão na implementação das forças das Nações Unidas no terreno.

Contudo, os exemplos da República Centro-Africana, da Libéria ou da Guiné-Bissau demonstram que o desafio da intervenção terá que ser complementado com respostas sustentáveis ao desafio, ainda maior, da reconciliação e reconstrução do tecido social de um país após um conflito. A retirada das tropas regionais ou internacionais após o término das missões de paz, permanecendo no terreno muitos dos factores determinantes para o despoletar da violência, comporta um risco elevado que só poderá ser ultrapassado com mecanismos e instrumentos efectivos de prevenção de conflitos, ainda inexistentes na maior parte das organizações regionais africanas.

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* Patrícia Magalhães Ferreira

Mestre em Estudos Africanos pelo ISCTE. Doutoranda no ISCTE na área de resolução de conflitos e reconciliação. Assistente Convidada no ISCSP. Investigadora no Programa África do Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais – IEEI.

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