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- JANUS 2006 -

Janus 2006



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A viabilidade da PESC

António Vitorino *

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Na sequência da intervenção militar no Iraque, que desencadeou uma crise transatlântica tanto quanto uma crise interna à União Europeia (UE), várias vozes puseram em causa a viabilidade de uma Política Externa e de Segurança Comum (PESC) da União. Estas vozes estribavam-se não apenas na crispação entre dois blocos de países, um liderado pelo eixo franco-alemão e o outro polarizado em torno das posições do Reino Unido, mas também na incapacidade dos órgãos da União (em especial a presidência rotativa do Conselho de Ministros e o Alto Representante para a Política Externa) de exercerem uma função mediadora que propiciasse uma plataforma de entendimento entre os Estados-membros.

O cepticismo sobre a viabilidade da PESC foi sendo contrabalançado quer pelas indicações de que os cidadãos europeus tinham na sua larga maioria uma posição convergente sobre a questão da intervenção no Iraque (de condenação da acção unilateral dos Estados Unidos da América e do Reino Unido), quer pelo facto de as sondagens de opinião persistirem em indicar um apoio de cerca de 70% dos inquiridos à necessidade de afirmação de uma política externa comum aos Estados da União Europeia.

As crises, sendo naturalmente indesejáveis, servem também para testar a consistência das grandes orientações de fundo sobre as políticas prosseguidas. Ora, no caso vertente, o sentido global da construção de um espaço continental europeu comum depende, enquanto elemento de legitimação e condição de eficácia, da sua capacidade de afirmação externa. O que nos projecta imediatamente para o debate da transformação do poder europeu, originariamente de ordem económica, numa acção concreta de índole política que o transforme em potência de intervenção à escala global.

 

A União Europeia: potência parcial ou relutante?

A cooperação em Política Externa, inaugurada com o Acto Único Europeu e aprofundada com a estrutura de pilares introduzida pelo Tratado de Maastricht que criou a União Europeia, desemboca assim na fase em que a Europa se confronta com os ditames da sua potencial afirmação como potência. Sendo por demais evidente que essa “capacidade de potência” existe consolidadamente no plano económico, o que está, pois, em causa é a sua projecção no plano político, em termos de afirmação de um rumo de intervenção comum estribado numa acção diplomática e numa capacidade de projecção de força que afirme um protagonismo próprio nas questões de segurança.

No plano político e diplomático a União Europeia tem um lastro de afirmação de um estatuto de potência não negligenciável (desde a ajuda ao desenvolvimento à ajuda humanitária, passando pelas negociações da Organização Mundial de Comércio e de outros fora internacionais – em especial no domínio do ambiente e dos transportes –, inclusive no domínio das relações monetárias internacionais ou da própria política de concorrência). A conjugação destes vectores das relações externas europeias (e muito especialmente no quadro do relacionamento com os EUA) traduzem-se numa afirmação de potência de soft power , aceite e praticada pelos órgãos e instituições da União tanto quanto pelos próprios Estados-membros individualmente. A questão inadiável é a da complementaridade de uma dimensão de hard power , de capacidade de projecção de força militar em sustentação da acção política e diplomática, que faça da UE um parceiro credível nas questões de segurança colectiva e mesmo de defesa. Nos últimos anos, na senda dos Conselhos Europeus de Helsínquia e de Santa Maria da Feira (1999/2000), assistimos à progressiva construção de uma componente específica de segurança e de defesa (comité político de segurança – COPS – comité militar, força militar de reacção rápida complementada por uma força de polícia para intervenção nas denominadas “missões de Petersberg ”, instituição de um fundo comum para financiamento de intervenções humanitárias e de gestão de crises), componente essa indissociável da definição de uma doutrina europeia sobre os objectivos estratégicos da União na cena internacional (o denominado documento estratégico do Alto Representante para a PESC adoptado pelo Conselho Europeu de Dezembro de 2003). Na sequência destas decisões foram levadas a cabo duas missões concretas (nos Grandes Lagos e na Macedónia) que constituíram os primeiros testes concretos a esta nova componente de projecção de força da EU.

A dinâmica assim desencadeada foi seriamente abalada pela crise do Iraque, a qual legitima as dúvidas sobre a sua sustentabilidade a prazo. Com efeito, a actual crise de confiança no projecto europeu no seu conjunto, expressa em especial pela rejeição referendária do novo Tratado Constitucional em França e na Holanda, avoluma as dúvidas sobre o futuro da PESC e da dinâmica a que nos vimos referindo. A dúvida consiste, pois, em saber se a PESC será uma vítima da actual crise europeia ou se, pelo contrário, também está na PESC parte da resposta aos sentimentos de incerteza dos europeus sobre o rumo da União.

A segunda componente do dilema é aquela em que deverá assentar a resposta que procuramos. Mas para encontrar tal resposta importa não escamotear os obstáculos e os testes de viabilidade a que a curto prazo a PESC irá ser submetida.

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Os testes de viabilidade da PESC

Em primeiro lugar coloca-se um problema de ambição que nos deve ajudar a caracterizar a natureza da própria PESC. Trata-se de uma “política externa comum”, não exactamente de uma “política externa única”. Colocar a viabilidade da PESC à luz do critério global e absoluto com que normalmente avaliamos as políticas externas nacionais consiste em desejar-lhe uma “morte súbita”. Também para a PESC há que retirar o melhor dos ensinamentos dos “pais fundadores” do projecto de integração europeia: a progressividade da sua construção, uma política de pequenos passos que não queima etapas nem define objectivos irrealistas que só poderão acarretar retrocessos ou descredibilização.

A escolha criteriosa das matérias prioritárias da PESC é, pois, um elemento central da sua consolidação. Bem como a explicação aos cidadãos dos países da União do fundamento dessas escolhas e dos objectivos que se pretendem alcançar. Exemplos de testes a curto prazo da sustentabilidade da PESC são, neste contexto, a continuidade de uma posição comum europeia sobre a estabilização dos Balcãs, a prossecução de uma política comum de abordagem da crise do Médio Oriente (que deu à UE uma posição central no chamado Quarteto, com efectiva capacidade de influência sobre a posição da própria administração americana), a condução das negociações sobre produção de materiais nucleares com o Irão, a definição de um partenariado com a Rússia e a definição de uma posição comum própria quanto ao levantamento do embargo de venda de armas à China.

O segundo pressuposto de viabilidade da PESC reporta-se às preocupações de coerência e de unidade de comando e de orientação referente às diferentes dimensões do relacionamento externo da União. Trata-se, aqui, de ligar estreitamente a agenda de “relações externas”, das matérias que, tendo sido comunitarizadas, são hoje em dia largamente protagonizadas pela União (comércio externo, concorrência, ajuda humanitária e ajuda ao desenvolvimento, ambiente, entre outras), com uma estratégia de acção política e diplomática de enquadramento, seja no plano das relações bilaterais, seja no quadro de organizações multilaterais. Esta coerência Relex/PESC, para usar o jargão comunitário, este entrosamento entre a dimensão externa do 1º pilar (comunitário) da União e o 2º pilar intergovernamental (PESC) constitui um teste fundamental à consistência da afirmação da União Europeia como potência global. Neste domínio as soluções do novo Tratado Constitucional apresentam um valor acrescentado que poderiam, do ponto de vista funcional, propiciar um desenvolvimento mais harmonioso desta convergência de acções em prol da coerência dos objectivos políticos da União em sentido mais lato (ver caixa).

O terceiro pressuposto da viabilidade da PESC reporta-se à sua envolvente externa propriamente dita,a qual se pode desdobrar em duas componentes fundamentais.

Em primeiro lugar trata-se de afirmar este papel global da Europa enquanto bloco político e económico face à superpotência global que são os EUA. Convém abordar o tema desassombradamente: as ambições da PESC, tal como foram sendo afirmadas nos últimos anos, não foram recebidas nem com entusiasmo nem com gestos de encorajamento em Washington, desde logo pela Administração Clinton e, com maior expressão pública, pela Administração Bush. O “pico” desta tensão foi encenado pelas referências à “velha Europa” por contraponto à “nova Europa” e pela doutrina de que “a missão faz a coligação”, nesta orientação suscitando-se fundadas dúvidas não apenas quanto ao papel futuro da NATO, mas também quanto ao espaço de relações bilaterais directas dos EUA com a UE. A visita de Bush a Bruxelas no início do seu segundo mandato de certo modo atenuou este clima de suspeição, mas a afirmação da PESC continuará a ser um factor de tensão nas relações transatlânticas. Do mesmo modo o perfil da PESC, tal como for definido pelos próprios europeus, acabará por relevar para a clarificação destas tensões na relação com a potência global hegemónica.

Com efeito, a ideia de uma afirmação adversatorial da PESC, prefigurando a UE como contrapoder aos EUA, alimentada por certa retórica continental de inspiração francesa, constitui, desde logo, um factor de divisão entre os europeus e uma dificuldade adicional de afirmação de uma política comum.

Em segundo lugar, a definição da PESC depende também da percepção do papel da UE por parte dos demais países e blocos regionais à escala global. A construção de uma componente de hard power pelos europeus, mesmo que apresentada como representando um contributo de sustentabilidade de posições comuns norteadas pelos valores da paz e do respeito pela legalidade internacional, não pode deixar de passar pelo crivo da análise e da reacção daqueles países terceiros que, no passado, conheceram relações de tipo colonial com as potências europeias. A começar pelos vizinhos próximos, seja a Leste, seja a Sul.

Em todos os casos, o teste de viabilidade da PESC passa pela formulação de uma doutrina comum em relação a matérias tão sensíveis e centrais como a reforma das Nações Unidas, o papel da lei e das jurisdições internacionais na ordem global, as condições do uso da força armada, a adopção de políticas no plano da defesa da paz, dos direitos humanos, das relações económicas e financeiras globais, do desenvolvimento sustentável e do equilíbrio ambiental, conformes com os valores e os princípios proclamados.

O quarto pressuposto tem a ver com a capacidade de desenvolver, no quadro institucional da União, uma plataforma política que conjugue a vontade política dos Estados-membros com a inelutável diferenciação resultante da diversidade da sua inserção na cena internacional. Com efeito, é no domínio da política externa que as diferenças de dimensão, capacidade militar, poderio económico e as tradições políticas e culturais de relacionamento com as diferentes áreas do globo mais se fazem sentir: estas diferenças, digamos naturais, têm que ser compaginadas com princípios estruturantes do funcionamento da União, designadamente o princípio da igualdade entre os Estados-membros.

Na ordem global emergente da Segunda Guerra Mundial, em especial no quadro das Nações Unidas, a existência de dois países europeus com lugares permanentes no Conselho de Segurança e de outros dois ou três que aspiram a um estatuto equiparável no quadro da reforma da ONU constituem poderosos factores de diferenciação que condicionam a capacidade de afirmação da vocação global da PESC. Sendo pouco provável que a França e o Reino Unido aceitem, num prazo previsível, que naquele Conselho de Segurança haja um lugar único representativo das posições comuns da União Europeia (a que acresce a dúvida sobre se tal solução representaria um valor acrescentado em termos dos equilíbrios entre os grandes blocos regionais sobre que assenta o funcionamento da ONU), a afirmação da PESC da UE terá que encontrar formas aproximativas que propiciem a convergência progressiva de posições entre os Estados da União de molde a afirmá-la como um protagonista da vida política internacional.

O reconhecimento do peso específico de alguns Estados com uma tradição histórica de projecção global mais vincada (que aflora nos entendimentos sobre a política de defesa ou sobre a estratégia negocial em relação ao Irão entre a França, a Alemanha e o Reino Unido) constitui um factor sensível da construção da PESC, na medida em que, sendo ele pressuposto da eficácia de uma política comum, a sua expressão concreta pode colocar em causa a igualdade entre os Estados-membros e sobretudo a igual possibilidade de todos os Estados contribuírem e participarem na definição das grandes orientações da PESC.

 

A PESC e o Tratado Constitucional da União

Daí que, numa perspectiva realista, a PESC enquanto política comum da União tenha que assentar, durante largos anos, num modelo híbrido, tributário de elementos do processo comunitário e do processo de decisão intergovernamental, como pressuposto necessário da criação de um lastro de confiança que permita a sua consolidação quer enquanto política comum da União, quer enquanto elemento estruturante das relações internacionais actuais.

Foi a tentativa de construir esse modelo híbrido e de regular formas de “geometria variável” em termos de participação nas acções comuns externas que presidiu às inovações introduzidas nas normas que regulam a PESC no Tratado Constitucional da União, tratado esse que neste momento se encontra paralisado pela rejeição francesa e holandesa nos referendos de Maio e de Junho de 2005. Neste contexto pode-se dizer que o quarto pressuposto da viabilidade da PESC se encontra, de momento, na expectativa de uma evolução política e institucional que permanece largamente incerta (ver informação complementar).

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Informação Complementar

A PESC NO TRATADO CONSTITUCIONAL

O Tratado Constitucional apresenta inovações, com especial incidência no domínio da Política Externa e de Segurança Comum, incluindo uma específica componente de defesa, de que cumpre destacar:

No plano substantivo a abolição da estrutura de pilares, criando um Tratado único que põe fim à destrinça entre o pilar comunitário (o primeiro) e os pilares intergovernamentais (o segundo – PESC – e o terceiro – Cooperação policial e judiciária penal). São consequências da abolição da estrutura de pilares o reconhecimento da personalidade jurídica internacional da União no seu todo (e já não apenas da componente comunitária – as Comunidades Europeias), com o reconhecimento da capacidade de celebração de acordos e tratados internacionais sobre todas as matérias que sejam objecto das competências da União, uma maior integração das matérias de “relações externas” no âmbito da acção política externa da União, sem prejuízo da subsistência de particularidades, quer na definição das competências dos órgãos da União, quer no que concerne aos métodos e formas de decisão (prevalecendo nas questões fundamentais da PESC e no âmbito das matérias de defesa e militares o requisito da unanimidade).

O Tratado Constitucional actualiza as denominadas “missões de Petersberg” (gestão de crises e intervenção humanitária) e consagra uma cláusula de solidariedade entre os Estados-membros em caso de agressão militar, ataque terrorista ou catástrofe natural, instituindo um mecanismo de cooperação reforçada de tipo especial no âmbito da defesa (participação voluntária, sujeita ao crivo do preenchimento de certos requisitos de capacidades militares, regra da abertura à participação em momento ulterior ao lançamento dessa cooperação estruturada no domínio da defesa).

No plano institucional as principais inovações reportam-se à criação da figura do Ministro dos Negócios Estrangeiros da União, que é simultaneamente Vice-Presidente da Comissão encarregue da coordenação das “relações externas”, o qual deve contar com a confiança dupla do Conselho Europeu e do Parlamento Europeu no quadro da responsabilidade colegial da Comissão e que preside ao Conselho de Ministros na sua componente Relações Externas, o qual fica assim sub-
traído à regra da rotatividade das presidências das formações sectoriais do Conselho com base no novo modelo das “equipas de presidência” formadas por grupos de Estados-membros.

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* António Vitorino

Licenciado em Direito. Ex-Comissário Europeu. Deputado do PS.

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