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- JANUS 2007 -



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Alterações na segurança internacional

Luis Tomé *

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O que mudou na segurança internacional? Quase tudo. De facto, na última década ocorreram alterações substanciais, sublinharam-se várias tendências e emergiram aspectos inovadores. Salientamos, a seguir, alguns dos elementos mais marcantes.

Ameaças, actores, conceito de segurança e conflitos

Uma das alterações mais significativas diz respeito às ameaças. Nos últimos anos, em particular após os atentados do 11 de Setembro, o “terrorismo de novo tipo” e a proliferação de armas de destruição massiva (ADM) têm sido descritos como as maiores ameaças à paz e à segurança internacional. Sobretudo, a associação entre terrorismo e ADM passou a ser o maior pesadelo da segurança internacional. Por outro lado, o acesso a capacidades nucleares por mais países (Índia, Paquistão, Coreia do Norte e também o Irão) e a descoberta da rede nuclear no mercado negro do paquistanês Khan significam que os mecanismos de contra proliferação não só não têm sido eficazes como correm o risco de ser definitivamente desmantelados, com os riscos inerentes para a estabilidade de certas regiões e do mundo. Mas não são apenas estes os perigos para a segurança internacional: as ameaças sociais e económicas, incluindo a pobreza e o subdesenvolvimento, doenças infecciosas e degradação ambiental; os conflitos internacionais, isto é, entre Estados; os conflitos intra-estatais, incluindo guerra civil, genocídio e outras atrocidades em larga escala; a criminalidade organizada transnacional; os Estados falhados; a interrupção do acesso às fontes energéticas – todas estas são também vulgarmente referidas, de uma forma ou de outra, como ameaças. A verdade é que, ao longo da última década, se acentuou a noção de que as ameaças à segurança internacional vão muito para lá das guerras de agressão entre Estados e que as ameaças actuais não se restringem às fronteiras nacionais; estão relacionadas entre si e devem ser encaradas tanto nos planos internacional e regional como no plano nacional.

Ora, isto significa que o conceito de segurança se ampliou, entretanto, para permitir nele incluir todas essas vertentes. Além disso, considera que aquelas ameaças estão todas interligadas, isto é, que a segurança, o desenvolvimento económico e a liberdade humana são indivisíveis. Acresce que ganhou ênfase a ideia de esbatimento das fronteiras entre a segurança interna e a segurança externa, bem como a de que a segurança internacional não é apenas a segurança dos Estados mas também a dos povos e, em particular, dos indivíduos.

Nos últimos anos, ficou também claro que as ameaças provêm tanto de actores estatais como não-estatais, e que afectam a segurança tanto dos Estados como dos seres humanos. A este respeito, destaca-se a emergência de novos actores no panorama da segurança internacional: as redes terroristas transnacionais, certos “senhores da guerra”, os grupos de criminalidade organizada; as organizações internacionais, regionais e não-governamentais; certas empresas de segurança nos palcos de conflito... Ou seja, mais claramente do que em eras anteriores, os Estados já não detêm o exclusivo da violência, e estão longe de ser os únicos a perturbar ou a promover a segurança internacional.

No que toca à tipologia de conflitos, não há, aparentemente, grandes alterações. Manteve-se a preponderância dos conflitos violentos intra-estatais (que representam entre 90% e 95% dos conflitos armados na última década), essencialmente motivados por extremismos étnicos e religiosos, e também por separatismos e nacionalismos. Porém, muitos conflitos extravasaram as fronteiras do respectivo país, interligando-se com outros fenómenos como o terrorismo transnacional ou o “grande jogo” político de certos Estados e organizações. Por outro lado, embora alguns conflitos se tenham resolvido, outros surgiram, outros permanecem latentes e outros ainda recrudesceram na fase dita pós-bélica, não só dificultando os processos de pacificação e estabilização mas também funcionando como “pântanos” que impedem os Estados e as organizações que se envolveram de dali saírem.

Entretanto, a “assimetria” emergiu no léxico da segurança internacional para referenciar actores, ameaças, processos, estratégias e mesmo guerras. E perante a ausência virtual de conflitos simétricos entre Estados, o “conflito assimétrico” começou a ser descrito como novo paradigma de conflito, opondo actores de natureza distinta (Estados e organizações versus grupos terroristas, paramilitares ou insurrectos), com meios completamente desproporcionados, recorrendo a processos completamente distintos e obedecendo a regras totalmente diferentes.


Segurança humana, ingerência humanitária, responsabilidade de proteger e penalização internacional

Um dos aspectos mais inovadores que, em matéria de segurança internacional, surgiu nos últimos anos é o conjunto de noções em torno de “segurança humana”, “ingerência humanitária” e “responsabilidade de proteger”, no centro das quais está a protecção dos indivíduos, não a dos Estados. Como a segurança dos Estados não significa automaticamente a segurança dos povos e dos indivíduos, e considerando que o quadro analítico tradicional que explica e procura evitar as guerras entre Estados é claramente insuficiente e irrelevante para explicar os conflitos violentos dentro dos Estados, que vêm ocorrendo em muito maior número, emergiu uma nova abordagem – a segurança humana. Este conceito relativamente recente, é hoje amplamente utilizado para descrever o complexo das ameaças inter-relacionadas e associadas aos Estados falhados, à guerra civil, a práticas de genocídio e a outros graves atentados contra os direitos humanos. Embora os defensores e promotores da segurança humana apresentem divergências entre si acerca de que ameaças os indivíduos devem ser protegidos, o consenso existe sobre a noção de que o primeiro objectivo da segurança humana é a protecção dos indivíduos e a dignidade humana.

A expansão e afirmação da segurança humana muito deve às tragédias ocorridas nos anos 1990 no Haiti, na Somália, em Timor-Leste, na Serra Leoa, na Bósnia e, em particular, o genocídio no Ruanda, em 1993/94, e a tentativa de genocídio no Kosovo, cinco anos depois. Com a intervenção da NATO no Kosovo, em 1999 – sem a aprovação do Conselho de Segurança mas invocando razões humanitárias para evitar que se repetisse a tragédia do Ruanda (onde a passividade internacional e a paralisia da ONU custaram centenas de milhares de mortos) – emergia o princípio da “intervenção humanitária”, ou melhor, da “ingerência humanitária”, na medida em que se aceitava poder atentar contra a soberania de um Estado para defender valores universais e os direitos humanos elementares. É uma evolução impressionante, se considerarmos que um dos pilares da segurança internacional sempre foi a não ingerência nos assuntos internos dos Estados soberanos – agora, em causa está a soberania do indivíduo contra a soberania do Estado!

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Neste período, começou igualmente a vingar a ideia de que a comunidade internacional não só poderia actuar em casos de tragédia humanitária como teria a responsabilidade de o fazer em nome dos valores universais. A “responsabilidade de proteger” começou, assim, a emergir como norma internacional ou princípio-guia de comportamento para a comunidade dos Estados. Este princípio acabaria mesmo por ser adoptado na Cimeira Mundial da ONU, em Setembro de 2005, embora alguns países temam que este princípio seja instrumentalizado pelos Estados mais poderosos para impor a sua vontade e outros pretendam evitar criar uma “obrigação” de intervir.

A mesma lógica de responsabilização internacional verifica-se num outro aspecto, distinto mas igualmente inovador: o desenvolvimento de mecanismos de penalização de crimes contra a humanidade e crimes de guerra, de que são exemplo os Tribunais Criminais Internacionais para a ex-Jugoslávia e o Ruanda ou o Tribunal Penal Internacional.


Prevenção

Se o conceito de dissuasão estava intimamente associado ao período da Guerra Fria, o de prevenção tem emergido como pilar da segurança internacional contemporânea. Há, porém, que distinguir dois tipos de situações, uma muito mais polémica do que a outra. Primeiro, a chamada “acção preventiva” (que os críticos preferem chamar de “guerra preventiva”). A noção de um Estado ou conjunto de Estados poder intervir militarmente “ainda que a incerteza subsista tanto sobre o tempo como sobre o local do ataque inimigo”, tal como enunciado expressamente no National Security Strategy dos EUA de Setembro 2002, revela a crescente descrença na dissuasão como elemento vital da segurança perante um novo tipo de ameaças e de actores e subverte as abordagens convencionais de prevenção, preempção e “ameaça directa e iminente”. Apesar do intenso debate que provocou, agudizado pela intervenção no Iraque em 2003, esta doutrina começou a ser incorporada nos documentos estratégicos de certos Estados e organizações, ainda que, por vezes, de forma ambígua. A justificação reside, essencialmente, nos riscos associados ao terrorismo transnacional, que professa uma cultura de suicídio, martírio e destruição, com uma inaceitável magnitude potencial de destruição e desafiando as tradicionais abordagens sobre dissuasão e racionalidade. Um raciocínio semelhante desenvolve-se a propósito da proliferação de ADM: face a grupos terroristas como os que gravitam ou se inspiram na rede Al-Qaida, ou indivíduos como Ossama bin Laden ou os presidentes/regimes da Coreia do Norte, Irão ou Síria (e, antes, também do Iraque) considera-se que a “posse equivale a uso”. A prevenção é, portanto, considerada a estratégia mais adequada podendo, segundo alguns, inclusivamente, se necessário, envolver a acção militar antecipatória... preventiva.

A segunda situação é substancialmente diferente e decorre, quer da nova tipologia das ameaças, quer da ênfase na prevenção de conflitos, crises e catástrofes humanitárias. Com efeito, a cultura da prevenção começou a estar no centro dos esforços da segurança internacional, numa perspectiva muito mais abrangente que envolve o desenvolvimento e a erradicação da pobreza, a luta antiterrorista, a prevenção de conflitos armados e a gestão de crises, o combate à proliferação de ADM, a cooperação entre os serviços de intelligence, a diplomacia multilateral, o desarmamento, o controlo de armas ligeiras, a defesa dos direitos humanos, da democracia e do Estado de direito, o combate à radicalização e ao recrutamento para o extremismo/terrorismo, a prevenção do genocídio, os sistemas de “alerta precoce”, a estabilização e reconstrução pós-bélica, etc. Em grande medida, é em torno da prevenção que o sistema de segurança colectiva baseado nas Nações Unidas se tem reformado, de que são exemplo a reafirmação dos Objectivos do Milénio, a criação recente da Comissão de Consolidação da Paz (PeaceBuilding Commission) ou do cargo de Conselheiro Especial para a Prevenção do Genocídio e a centralidade da prevenção de conflitos armados e gestão de crises.


Efectivo multilateralismo e “Coligações de Vontades”

Outro aspecto marcante da segurança internacional nos últimos anos é o activismo multilateral, como nunca antes se vira. Mas também aqui temos que distinguir as situações. Por um lado, verifica-se que as Nações Unidas têm muito mais meios e efectivos envolvidos nas suas operações de paz (ver quadro), além de outras missões políticas e de uma cooperação muito mais intensa com outras organizações. Por outro, constata-se que certas organizações regionais ou pan-

-regionais (NATO, UE, OSCE, União Africana) passaram a ter, nos últimos anos, as suas próprias missões de paz e de assistência à segurança e a participar, directamente, na gestão de crises e conflitos, em cooperação com as Nações Unidas e/ou com outras organizações e Estados.

Entretanto, consolidou-se uma outra forma de multilateralismo, mais informal, baseado na premissa de que “a missão determina a coligação”. Trata-se das tais “coligações de vontades”, em que um conjunto de Estados se associa para resolver um problema específico ou alcançar um objectivo comum, de que constituem exemplos: a coligação que interveio no Afeganistão e uma outra para a fase de estabilização; a que invadiu o Iraque e derrubou o regime de Saddam Hussein e outra no período dito de estabilização; a Proliferation Security Initiative; o “Quarteto” para a Palestina; as negociações a Seis para a crise sobre o programa de armamento norte-coreano; a Container Security Initiative; as negociações dos cinco membros Permanentes do Conselho de Segurança + Alemanha + AIEA para resolver a crise nuclear com o Irão, etc.

Este activismo multilateral é um desenvolvimento interessante – pois significa que mais actores estão envolvidos na promoção da segurança e que os Estados têm um leque mais vasto de opções sobre os mecanismos, tidos por complementares, de promoção da paz e da segurança internacional – mas também contém perigos, na medida em que potencia as competições entre os diversos mecanismos, cria o risco de promover missões de paz e/ou de segurança “a duas velocidades” e pode desgastar o papel das Nações Unidas na gestão de crises e conflitos.


Ordem e anarquia


Fruto das significativas alterações em matéria de segurança internacional, vivemos uma era paradoxal, entre a ordem e a anarquia. De facto, temos uma situação de quase ausência de guerra entre Estados, menos guerras civis, menos conflitos, menos vítimas de violência armada e mais cooperação internacional, mais mecanismos institucionais e multilaterais, convenções, acordos e tratados internacionais para lidar com os múltiplos aspectos de segurança, mais recursos afectos à segurança, mais actores empenhados efectivamente na promoção da segurança e uma noção mais exacta de que os problemas que enfrentamos são globais e exigem respostas globais – tudo somado, isto deveria equivaler a mais ordem e mais segurança. No entanto, actualmente, o sentimento de insegurança e de instabilidade é maior do que em meados dos anos 1990, ao ponto de Kofi Annan, secretário-geral da ONU durante a última década, afirmar – na abertura do “Debate Geral” da 61.ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 19 de Setembro de 2006 – que “nos encontramos ante um mundo cujas divisões ameaçam a própria noção de comunidade internacional, na qual se fundamenta esta instituição. E, no entanto, isto ocorre precisamente quando os seres humanos de todo o mundo, hoje mais do que nunca, formam uma única sociedade”. Além disso, os principais garantes da ordem internacional estabelecida, isto é, os Estados mais poderosos, nomeadamente ocidentais, são igualmente os principais agentes da mudança, com destaque para a “locomotiva americana”, que paga o custo da sua hegemonia com um crescente “anti-americanismo”. Ou seja, fruto das alterações, evoluções e tendências verificadas na segurança internacional na última década, temos mais ordem mas também mais anarquia nas relações internacionais!

Um aspecto decisivo, porém, não se alterou: os grandes protagonistas da segurança internacional e da luta contra as ameaças continuam a ser os Estados soberanos, cujas funções e responsabilidades, direitos e obrigações estão consagrados na Carta das Nações Unidas. Simplesmente, a segurança internacional contemporânea implica, como nunca antes, uma abordagem colectiva: é indispensável contar com estratégias colectivas, instituições colectivas, mecanismos colectivos e um sentido de responsabilidade colectiva. O grande desafio dos próximos anos é plasmar um conceito novo e mais amplo de segurança internacional que englobe as novas realidades e sintetize todas as vertentes, capaz de projectar um sistema de segurança colectiva eficaz, eficiente e equitativo, em torno do qual se recriem as regras de comportamento internacional e a comunidade de segurança. Isso será determinante para fazer prevalecer a ordem sobre a anarquia.


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* Luis Tomé

Licenciado em Relações Internacionais pela Universidade Autónoma de Lisboa. Mestre em Estratégia pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Doutorando em Relações Internacionais na Universidade de Coimbra. Professor na UAL e Professor convidado no Instituto de Altos Estudos Militares e no Instituto de Defesa Nacional. Investigador e Membro do Conselho Directivo do Observatório de Relações Exteriores da UAL.


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