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- JANUS 2007 -



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Dez anos de guerras e pazes: o velho, o novo e o novíssimo

José Manuel Pureza *

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Clausewitz viveria um desconforto assinalável com a viragem do século XX para o século XXI. Arauto da modernidade, o autor de Da guerra viu nela – como “continuação da política por outros meios” – a expressão acabada do processo de afirmação do Estado como produto por excelência da modernidade. O nosso tempo põe essa percepção claramente em causa: terminámos o século XX a descobrir as “novas guerras” e iniciamos o século XXI sob o manto da guerra contra o terrorismo. E por ambas passa a mesma marca de aparente perda de centralidade do Estado na guerra.


A pré-modernidade das novas guerras

Há dez anos atrás, no rescaldo do fim da Guerra Fria, a categoria de “novas guerras” ganhou estatuto de referência analítica. Pretendeu a literatura que a consagrou (Kaldor, 1999) pôr em evidência alguns traços de conflitualidade, patentes nas guerras das periferias do sistema-mundo, diferentes dos que haviam marcado a guerra até então. Mary Kaldor é clara: “as novas guerras podem ser contrastadas com as do passado pelos seus objectivos, pelos métodos e pela forma como são financiadas”. Sublinhava naquele primeiro domínio a (re)emergência das identidades etno-religiosas como factores de alimentação desses conflitos (o que tem vindo a ser objecto de vivo debate teórico entre primordialistas, instrumentalistas e construtivistas); vincava, no segundo, o primado do controle da população sobre a disputa de território, num ressurgimento combinado das tácticas da guerrilha com as da contra-insurgência e em que as práticas de “limpeza étnica” assumem um visível destaque; e realçava, no último dos aspectos inovadores referidos, quer a importância das economias informais na alimentação da guerra (através de pilhagens sistemáticas), quer da íntima articulação entre guerras locais e mercados globais de recursos específicos (diamantes, marfim, ópio, petróleo), quer ainda da assunção da guerra como factor de estruturação económica e social.

Mas, em bom rigor, o que o conceito de nova guerra traz para o centro do debate sobre a realidade da guerra são dois aspectos essenciais. O primeiro, mais específico, é o da desestatização tendencial da violência. As novas guerras da década de 90 ocorreriam, na opinião de Kaldor e dos seus seguidores, “no contexto da erosão do monopólio da violência legítima organizada”, algo que sucede quer por força da transnacionalização das forças militares quer como resultado da privatização da violência. O protagonismo de milícias, forças paramilitares ou empresas privadas de segurança em conflitos como os de Angola, do Sudão, da Bósnia ou de Nagorno-Karabakh testemunha essa distância face à representação da guerra como fenómeno estritamente interestatal. O segundo aspecto, mais geral, é o da identificação das novas guerras como uma realidade co-natural aos chamados Estados frágeis ou falhados. Incapazes de reunir os requisitos básicos do padrão weberiano e abandonados à sua sorte pelo fim da lógica bipolar, muitos dos Estados pós-coloniais seriam afinal um terreno de disputa de recursos e de lealdades, entre senhores da guerra e facções, sendo o governo não mais do que uma delas.


Ambições e limitações para a paz

A pré-modernidade irrompe brutalmente nos processos de construção (tantas vezes forçada e apressada) da modernidade. E esse choque alimentou, ao longo da última década, uma transformação não menos importante no modo de conceber a paz e os procedimentos a ela (re)conducentes.

A colocação da fragilidade institucional, económica e política dos Estados pós-coloniais na raiz da eclosão das “novas guerras” e a convicção de que a divisão etno-religiosa das suas sociedades constitui factor maior da respectiva perpetuação tiveram como resposta uma sofisticação das missões de paz, sobretudo das estruturadas em torno da Organização das Nações Unidas. A nova geração de operações de paz, consolidada ao longo desta última década, descolou da prática ancestral da organização – traduzida no binómio peace-enforcing e peacekeeping – e adoptou um modelo muito mais exigente e sofisticado. Inspiradas, em grande medida, em aquisições teóricas dos peace studies – designadamente na complementaridade entre paz física e paz estrutural – e tributárias de um pensamento que identifica fragilidade económica e política com propensão para o conflito, as novas operações de paz passaram, por regra, a englobar quatro áreas complementares de peacebuilding: uma dimensão militar e de segurança (desarmamento, desmobilização e reinserção social de ex-combatentes), uma dimensão político-constitucional (realização de eleições e edificação da institucionalidade própria de um Estado de direito democrático), uma dimensão económico-social (inserção do país no mercado internacional e assimilação de regras de desenvolvimento sustentado) e uma dimensão psicossocial (reatamento de laços intracomunitários e superação dos traumas causados pela experiência de guerra e de violência social disseminada).

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Esta sensível ampliação da geografia conceptual da paz acabou por ceder, ao longo desta década, à hegemonia ideológica de uma agenda demoliberal bastante menos ambiciosa. Talvez a herança maior destes dez anos, neste domínio, venha, aliás, a ser a projecção política prática ganha pelas teses da “paz pela democracia” e da “paz pelo mercado” e a sua capacidade de formatar políticas públicas de pacificação de territórios devastados por conflitos.

O balanço está por fazer mas, neste momento, suscitam-se inúmeras críticas a esse ascendente académico-político, sobretudo diante dos resultados concretos de fragilização acrescida, de polarização social e de disseminação de diversas violências nos tecidos sociais, a que não é alheia uma subalternização das políticas de reconciliação, de emprego e de segurança. A advertência “institutionalization first” (Paris, 2004) vale como denúncia do viés programático destes dez anos e dos seus resultados por vezes catastróficos.


De que é feita a pós-modernidade?

A natureza transicional dos últimos dez anos não se evidencia, porém, apenas, na persistência do pré-moderno no domínio do moderno. Foram também as novas configurações que emergiram, rompendo com os cânones anteriores. Situo-as em três planos.


A revolução nos assuntos militares

O primeiro é o da “revolução nos assuntos militares”. Andrew Latham, um dos seus mais conceituados estudiosos, escrevendo em 1999, situa-a como “transição da guerra total industrializada (simbolizada pela Primeira e Segunda Guerra Mundiais) para o que foi indistintamente designado como ‘guerra de precisão’, ‘ciber-guerra’, ‘guerra informatizada’ e ‘guerra de terceira vaga’”. Para, de seguida, concluir que “a revolução nos assuntos militares em curso foi, de algum modo, antecipada pelas transformações tecnológicas, especialmente no domínio da informação, pelas mudanças sociais com o declínio do exército de massas e por outros factores, designadamente um novo ‘discurso sobre a ameaça’ construído após o fim da Guerra Fria”.

Trata-se, pois, de um processo de passagem do paradigma napoleónico e do subsequente modelo de guerra industrializada total – que combinava mobilização (não só demográfica mas também económica e ideológica) em massa, produção em massa e destruição em massa – para aquilo a que o mesmo Latham chama a guerra conhecimento-intensiva. Se, do ponto de vista material, essa mudança se traduziu no recurso crescente à microelectrónica, às munições de precisão, à tecnologia de ponta em matéria de comunicações, de controle e de computação, do ponto de vista discursivo e ideológico, a revolução nos assuntos militares assentou na substituição da velha ameaça comunista por novas ameaças em que pontua a articulação entre Estados falhados, Estados-párias e descontrole dos movimentos de armas de destruição em massa. Esse novo (?) discurso materializou-se, após os atentados de 11 de Setembro de 2001, na conhecida doutrina do “eixo do mal” e na legitimação do recurso à guerra preventiva, à margem do disposto na Carta das Nações Unidas e no Direito Internacional geral.


A nova configuração da guerra

b) Aqui mesmo radica a segunda nova configuração da guerra, herdada dos últimos dez anos. A “guerra contra o terrorismo” transporta a guerra para um patamar substancialmente diferente do que ela ocupava há dez anos. Os arautos da guerra preventiva e da longa guerra contra o mal insinuam-na não mais como uma irrupção de irracionalidade violenta mas como um mecanismo regulatório e sistémico. Roubada à sua acepção metafórica, a guerra é muito mais do que sinónimo de tolerância zero em domínios específicos da vida social. Sendo “contra o mal”, é uma guerra cultural e identitária de escala global. E nesta sua nova configuração estatutária vai arrastada, na prática, uma inversão da lógica clausewitziana – é cada vez mais a política que tende a ser vivida como condução da guerra por outros meios, mas subordinada a ela e aos seus códigos binários.


O rosto das guerras pós-modernas

c) O terceiro rosto das guerras pós-modernas é o que se vem chamando de “novíssimas guerras” (Moura, 2005). Tem razão Martin Van Creveld (1998) quando afirma que “a simplificação das armas, e não o contrário, aumentará (...), as tropas assemelhar-se-ão cada vez mais a polícias (...) não se desenrolará no seio da ambientes complexos (...) será uma guerra de escutas,, de viaturas roubadas, de mortes corpo-a-corpo (...)”. É o que está a suceder já hoje, com a disseminação da violência armada, com picos de concentração nas periferias dos grandes centros urbanos em países em paz formal. São novíssimas porque aprofundam a chegada da guerra ao privado, anunciada já nas novas guerras. Não são apenas novas porque radicalizam a circunscrição territorial dos seus teatros: os espaços urbanos onde se desenrolam (do Rio de Janeiro a Lisboa, a Paris, à Praia ou a Cape Town) são microterritórios de guerra em países em paz institucional. Mas também não são apenas espaços de criminalidade organizada. A estrutura social que lhes dá corpo e os índices de letalidade das práticas de violência dominantes são francamente superiores aos de muitos territórios formalmente declarados em guerra, além de que integram todos os ingredientes da cultura de guerra, desde a hierarquização rígida dos actores envolvidos até à legalidade paralela e à disputa de territórios e recursos (não apenas simbólicos).

Em 1996, início da década aqui em apreço, Johan Galtung, patriarca dos estudos para a paz, publicava Peace by peaceful means e fazia aí a apologia da correspondência entre as diferentes expressões de violência os diferentes patamares de construção da paz. Em acrescento ao que era o discurso tradicional dos peace studies, Galtung não mais deixou de sublinhar, desde então, a centralidade da paz cultural, no avesso das práticas sociais legitimadoras de formas de violência. Na linguagem, na religião, na arte, e sobretudo no senso comum, a cultura da paz ganha densidade como alternativa radical. Sinal dos tempos, uma das tensões que mais marcou esta década foi precisamente a que contrapôs a celebração do ano internacional da cultura da paz, por proposta da UNESCO, em 2000, e a assimilação pelo senso comum da hipótese do choque de civilizações. É uma contraposição funda, que está para durar.

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* José Manuel Pureza

Professor Associado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Coordenador da Licenciatura em Relações Internacionais. Coordenador do Núcleo de Estudos para a Paz do Centro de Estudos Sociais.

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Bibliografia

Kaldor, Mary — New and old wars. Organized violence in a global era. Londres: Polity Press, 1999.
Latham, Andrew — “Re-imagining warfare: the ‘revolution in military affairs’, in Snyder, C. (ed.), Contemporary Security and Strategy. Londres: MacMillan, 1999.
Moura, Tatiana — “Novíssimas guerras, novíssimas pazes: desafios conceptuais e políticos”, Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 71, 2005, pp. 77-96.
Van Creveld, Martin — La tranformation de la guerre. Paris: Éditions du Rocher, 1998.

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