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- JANUS 2007 -



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A criança e o conceito hodierno de família

Fernando Silva *

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A Convenção sobre os Direitos da Criança consagra no seu preâmbulo o seguinte: “Convictos de que a família, elemento natural e fundamental da sociedade e meio natural para o crescimento e bem-estar de todos os seus membros, e em particular das crianças, deve receber a protecção e a assistência necessárias para desempenhar plenamente o seu papel na comunidade;
Reconhecendo que a criança, para o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade, deve crescer num ambiente famíliar, em clima de felicidade, amor e compreensão
”. Esta declaração de princípio vincula os Estados partes a assumirem internamente o princípio da prevalência da família, no pleno reconhecimento de que um regime jurídico destinado à protecção das crianças não pode deixar de criar regras que assegurarem o seu enquadramento e desenvolvimento no seio da comunidade. O que significa que as estruturas sociais devem estar preparadas e organizadas de forma a potenciar este enquadramento.

 

A criança e a família

A família apresenta-se como célula natural de enquadramento da criança, desde logo pela sua vinculação biológica e potencialmente pela sua vinculação afectiva. Assim, constitui pressuposto essencial para uma real política de protecção das crianças a direcção dos instrumentos de protecção centrados na criança e na família. Ou seja, promover a tutela eficaz das crianças, pressupõe, em primeiro lugar, promover a protecção da família.

O reconhecimento desta necessidade está traduzido no Art.º 9.º da Convenção dos Direitos da Criança, que a seguir se transcreve:

“1 – Os Estados Partes garantem que a criança não é separada de seus pais contra a vontade destes, salvo se as autoridades competentes decidirem, sem prejuízo de revisão judicial e de harmonia com a legislação e o processo aplicáveis, que essa separação é necessária no caso do interesse superior da criança. Tal decisão pode mostrar-se necessária no caso de, por exemplo, os pais maltratarem ou negligenciarem a criança, ou no caso de os pais viverem separados e uma decisão sobre o lugar da residência da criança ter de ser tomada.

2 – Em todos os casos previstos no n.º 1, todas as partes interessadas devem ter a oportunidade de participar nas deliberações e de dar a conhecer os seus pontos de vista.

3 – Os Estados Partes respeitam o direito da criança separada de um ou de ambos os seus pais manter regularmente relações pessoais e contactos directos com ambos, salvo se tal se mostrar contrário ao interesse superior da criança.

4 – Quando essa separação resultar de medidas tomadas por um Estado parte, tais como detenção, prisão, exílio, expulsão ou morte (incluindo a morte ocorrida no decurso de detenção, independentemente da sua causa) de ambos os pais da criança, ou de um deles, ou da própria criança, o Estado Parte, se tal lhe for solicitado, dará aos pais, à criança ou, se for esse o caso, a outro familiar, informações essenciais sobre o local onde se encontrem o membro ou membros da família, a não ser que tal procedimento seja prejudicial ao bem-estar da criança. Os Estados Partes comprometem-se, além disso, a que a apresentação de um pedido de tal natureza não determine em si mesmo consequências adversas para a pessoa ou pessoas interessadas”.

Nesta norma enuncia-se expressamente o direito das crianças em manter contacto e relações com os pais, mas contém mais do que essa enumeração, constituindo verdadeiramente o direito da criança a ter uma família .

A família constitui o próprio meio onde a criança está inserida, estando assim, investida de um conjunto de poderes-deveres associados à educação, desenvolvimento e bem-estar da criança, o que traduz um verdadeiro compromisso educacional assumido, desde logo, pelos pais e de forma mediata por toda a família. É no seu seio que, em primeira linha, surge a intervenção para protecção da criança, apenas se justificando a intervenção de entidades terceiras quando a família se revele incapaz de ultrapassar as situações de perigo que afectam a criança, ou quando seja aquela a fonte da situação de perigo. Por isso, uma verdadeira política de infância envolve, necessariamente, a valorização do papel das famílias, promovendo o fortalecimento da instituição familiar.

Toda esta reflexão conduz os Estados a colocar na primeira linha de uma intervenção social, no plano da protecção das crianças, a da protecção da própria família, num reconhecimento de que ambas as realidades estão intimamente associadas, como interdependentes, não podendo sobreviver uma sem a outra. Orientados pelo reconhecimento desta realidade, os vários Estados vão consagrando de forma progressiva os meios adequados a promover a protecção da instituição familiar. Muitos são os que elevam esta necessidade ao nível da consagração constitucional. Em constituições como a alemã, a dinamarquesa, a grega ou a portuguesa, encontramos a referência ao direito da criança a uma família, bem como à necessidade de consagração da protecção da família, sendo comum, em relação aos pais, a afirmação da maternidade e da paternidade como valores sociais eminentes, bem como do direito a realizarem a sua missão de educação dos filhos. E em relação aos filhos (crianças) o reforço do direito a não serem separados dos seus pais, mas de beneficiarem de protecção do Estado em relação a eventuais abusos por parte dos pais, e a encontrarem soluções alternativas, sempre que a família não assuma a necessária protecção.

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O direito das crianças a uma família

A Convenção sobre os Direitos da Criança enuncia o mote inspirador das medidas que os Estados vão implementando, com sentido cada vez mais intenso, de assegurar que todas as crianças têm o direito a pertencer a uma família, a serem integradas nessa família e a reclamar uma protecção para ela.

Mas não podemos dissociar este princípio da evolução que o próprio conceito de família conheceu ao longo do tempo. Referimo-nos naturalmente à concepção jurídica, social e política, sobre a qual se desenvolve toda a actividade dos Estados nesta matéria.

Podemos verificar que se assistiu a um lento, mas progressivo, abandonar da concepção do “velho poder paternal”, ínsito no direito romano, em que a criança surgia como objecto de posse do poder paterno, o qual se perpetuou por largos séculos. Concepção segundo a qual, os interesses, os direitos e até mesmo a identidade da criança se perdia no poder absoluto dos pais, mormente do pai, não beneficiando de um espaço de afirmação própria. Tal conceito apenas viria a conhecer uma inversão a partir dos ecos da Revolução Francesa, que marcou a afirmação do direito da família, diluindo o papel do pater familias e acentuando o papel individual de cada membro desta, a sua afirmação no âmbito da família e a atribuição do direito de exigir desta a necessária protecção.

Foi nesta filosofia, neste quadro ideológico, que, ao longo do séc. XX, fomos assistindo à proclamação internacional, a diversos níveis e domínios, dos direitos humanos e da individualidade de cada um.

Particularmente no que se refere aos direitos das crianças, assistimos a uma verdadeira revolução (R. Monteiro, 2002), em que os direitos das crianças deixaram de ser vistos como o direito que os adultos têm sobre as crianças, para se implementar um novo direito da infância, marcado pelo reconhecimento da plenitude da personalidade jurídica da criança, do primado do seu interesse superior, da consagração de um conjunto de direito exclusivos, dos quais elas se apresentam como titulares autónomos, assumindo paulatinamente a sua titularidade e a capacidade do seu exercício.

Assim, o que muda, principalmente, é o sentido da relação entre a criança e a família, exigindo desta uma atitude positiva no plano do respeito pelos direitos daquela. O poder paternal foi dando lugar ao compromisso parental, as próprias legislações nacionais foram substituindo uma designação pela outra. Mas esta família à qual se entende que a criança tem direito não é necessariamente a sua família biológica. O conceito hodierno de família é o da família dos afectos, a família que ama e cuida, independentemente da sua vinculação natural com a criança.

 

A procura da família

Estando a criança investida deste direito a ter uma família – acrescente-se, de afecto – a comunidade, mas particularmente o Estado, assumem um papel preponderante no desenvolvimento das acções na busca da família, da sua verdadeira família.

Sempre que a família biológica se mostre indigna, incapaz de proteger a criança, ou assuma uma atitude reveladora de um desrespeito pelos espaço de afirmação dos direitos da criança, esta passa a poder exigir do Estado, que intervenha, para, em primeiro lugar, inverter a actuação da família e, se esta inversão se mostrar impossível, para retirar a criança àquelas pessoas, pois, não podem ser consideradas a sua família, devendo ser procurada outra família, ou melhor, a sua família.

Esta nova compreensão está plasmada na forma como os Estados têm desenvolvido internamente o regime da adopção, hoje afirmada como instituição universal, associada à função do Estado em promover o respeito pelo interesse superior da criança e, principalmente, em criar condições para a total afirmação do direito à família, que a esta está conferido.

As mais recentes alterações legislativas verificadas nos vários Estados têm apontado no sentido da agilização dos processos de adopção, assinalando-se, como corolário deste sentido evolutivo, a institucionalização da Adopção Internacional, como resposta eficaz à tentativa de não frustrar o direito da criança em encontrar a sua família, independentemente da sua idade, sexo, ou raça. Mais uma vez, associamos este fenómeno à internacionalização, ou globalização, do tratamento das crianças, criando para estas uma esfera de protecção à escala mundial.

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Informação Complementar

Algumas consagrações constitucionais sobre o Direito à Família e à Protecção da Família

Como ficou dito, encontramos a contemplação do direito à família e à protecção da família em vários textos internacionais, mas muitos Estados, alguns já anteriormente à própria Convenção, consagram este interesse, no plano dos direitos fundamentais, nas suas Constituições, o que marca a elevação deste direito ao mais alto nível. Entre estes Estados destacam-se:

(D) Constituição da Alemanha

Art.º 6.º n.º 3

As crianças não podem ser separadas das suas famílias contra a vontade dos encarregados da sua educação, a não ser em virtude de uma lei, em caso de insuficiência económica destes ou quando as crianças corram o risco de abandono.

(EL) Constituição da República da Grécia

Art.º 21.º

1. A família, enquanto fundamento e suporte do progresso da Nação, bem como o casamento, a maternidade e a infância, encontram-se sob a protecção do Estado.

2. As famílias numerosas, os inválidos de guerra ou de paz, as vítimas da guerra, as viúvas e os órfãos de guerra, bem como todos os que sofrem de uma doença incurável, física ou mental, têm direito a cuidados especiais por parte do Estado. (…)

(I) Constituição da República Italiana

Art.º 30.º

Os pais têm o dever e o direito de manter, instruir e educar os seus filhos, mesmo que estes tenham nascido fora do casamento.

Em caso de incapacidade dos pais, a lei providencia para que sejam cumpridos estes deveres.

A lei assegura aos filhos nascidos fora do casamento toda a protecção, jurídica e social, compatível com os direitos dos membros da família legítima.

A lei estabelece as regras e os limites na investigação da paternidade.

(P) Constituição da República Portuguesa

Art.º 36.º

(Família, casamento e filiação)

1. Todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade.

2. A lei regula os requisitos e os efeitos do casamento e da sua dissolução, por morte ou divórcio, independentemente da forma de celebração.

3. Os cônjuges têm iguais direitos e deveres quanto à capacidade civil e política e à manutenção e educação dos filhos.

4. Os filhos nascidos fora do casamento não podem, por esse motivo, ser objecto de qualquer discriminação e a lei ou as repartições oficiais não podem usar designações discriminatórias relativas à filiação.

5. Os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos.

6. Os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial.

7. A adopção é regulada e protegida nos termos da lei, a qual deve estabelecer formas céleres para a respectiva tramitação.

(PE) Constituição Política do Peru

Art.º 6.º

A política nacional de povoação tem como objectivo difundir e promover a paternidade e a maternidade responsáveis. Reconhece o direito das famílias e das pessoas a decidir. Nesse sentido, o Estado assegura os programas de educação e a informação adequados e o acesso aos meios, que não afectam a vida ou a saúde.

Constitui dever e direito dos pais alimentar, educar e dar segurança a seus filhos. Os filhos têm o dever de respeitar e assistir a seus pais.

Todos os filhos têm iguais direitos e deveres. Está proibida toda a menção sobre o estado civil dos pais e sobre a natureza da filiação nos registos civis e em qualquer outro documento de identidade.

(CO) Constituição Política da Colômbia

Art.º 5.º

O Estado reconhece, sem discriminação alguma, a primazia dos direitos inalienáveis da pessoa e ampara a família como instituição básica da sociedade.

Art.º 42.º

A família é o núcleo fundamental da sociedade. Constitui-se por vínculos naturais ou jurídicos, pela decisão livre de um homem e uma mulher de contrair matrimónio ou pela vontade responsável de conformá-la.

O Estado e a sociedade garantem a protecção integral da família. (…)

Artº. 44.º

(…) A família, a sociedade e o Estado têm a obrigação de assistir e proteger os filhos para garantir o seu desenvolvimento harmónico e integral e o exercício pleno de seus direitos. Qualquer pessoa pode exigir da autoridade competente o seu cumprimento e a sanção dos infractores.

Os direitos dos filhos prevalecem sobre os direitos dos demais.

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* Fernando Silva

Licenciado em Direito pela Universidade Autónoma de Lisboa. Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa. Doutor em Direito pela UAL. Professor no Departamento de Direito da UAL e advogado. Presidente da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens em perigo de Caldas da Rainha. Autor de várias publicações na área do Direito Penal e do Direito das Crianças.

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Bibliografia

Monteiro, A. Reis (2002) — A revolução dos direitos da criança. Porto: Campo das Letras.

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