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- JANUS 2008 -



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Números fatais: violência no Iraque 2003-2007

Sandro Mendonça * e Luís Catela Nunes **

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Dificilmente haverá algo mais incomensurável do que a dor pessoal e a tragédia humana. E possivelmente nada haverá mais inerentemente qualitativo do que a própria vida e a dinâmica de interacção entre os indivíduos. Contudo, para construir uma compreensão aprofundada e equilibrada sobre a sua estrutura e evolução de fenómenos complexos de natureza socioeconómica e político-militar todos os recursos são poucos. E raras são as vezes em que não existe uma dimensão quantitativa latente nos assuntos-problema que mais afectam as necessidades das comunidades locais e os interesses das instituições nacionais e internacionais.

A abordagem empreendida neste artigo é analítica, procura identificar os mecanismos subjacentes aos acontecimentos no Iraque. Partimos do pressuposto de que um tratamento estatístico dos dados existentes permitirá contribuir para um entendimento mais fundamentado do conflito. Ao identificarem-se padrões básicos, momentos de viragem e tendências de fundo pretende-se estabelecer uma base de conhecimento empírico credível e rigoroso que possa ser útil ao debate que se vai desenvolvendo sobre o tema.

 

Incidência da violência

A invasão do Iraque ocorreu a 20 de Março de 2003. No dia 1 de Maio o presidente dos Estados Unidos declarava o fim das “principais operações de combate” a bordo do porta-aviões USS Lincoln. Porém, a declaração do fim da invasão não marcou o fim do conflito. O conflito em curso no Iraque tornou-se o mais mortífero na actualidade a nível mundial (1). A análise que se segue ( a ) emprega como indicadores de violência as baixas e os feridos entre os soldados da coligação, sobretudo norte-americanos, ( b ) faz referência a essa delimitação do período de invasão, e ( c ) toma como fim do período de análise o mês de Maio de 2007, exactamente quatro anos passados desde a declaração do presidente Bush. A base de dados está disponível em icasualties.org/oif , recurso reconhecido por órgãos de informação de referência como o New York Times .

Nesses primeiros 43 dias da incursão das forças estrangeiras e instalação no terreno o número de soldados mortos da coligação foi de 172: 139 norte-americanos e 33 britânicos. Contudo, as mortes não cessaram. De 1 de Maio de 2003 (inclusive) até 1 de Maio de 2007 (exclusive), o número de baixas fatais das tropas regulares da coligação foi de 3450, 93,1% dos quais norte-americanos (estes dados estão sujeitos as revisões marginais por parte do Pentágono). Dos restantes soldados caídos quase metade pertenciam ao Reino Unido, o segundo país da coligação em termos de presença de tropas. O resto pertence a 17 outros países que estão ou estiveram no Iraque. Os números não contabilizam as baixas de empresas de segurança militar privada, um fenómeno peculiar para o qual começa a surgir literatura específica (2).

Se as baixas fatais das tropas regulares são um indicador conveniente porque estão bem datadas e contabilizadas, estes dados têm limitações. Por um lado, as mortes subestimam a magnitude da violência sentida pelas tropas invasoras. O número de soldados feridos tem aumentado progressivamente, atingindo 25 113 no fim de Abril de 2007. Desde a invasão, por cada militar norte-americano falecido 7,7 foram feridos. Um rácio sem paralelo nas guerras travadas pelos EUA no século XX: 1,6 I GM; 1,7 II GM; 3,1 Coreia; 2,6 Vietname (dados da Louisiana State University).

Por outro lado, e de acordo com as fontes utilizadas pela Brookings Institution, por cada baixa fatal norte-americana morriam em média em 2006 cerca de 2,5 polícias/soldados iraquianos e 42 civis (vítimas de engenhos explosivos, fogo cruzado, assassinato, etc.). Durante 2006 terão morrido pelo menos 34 452 civis iraquianos em resultado da violência geral verificada no território. Ou seja, ao concentramos a nossa atenção nas baixas norte-americanas como medida indirecta da dinâmica de violência que se tem desenvolvido no Iraque, não podemos esquecer que estas são um pálido indicador, não somente da violência total enfrentada pelas tropas norte-americanas, mas especialmente da violência e trauma sentidos pela população iraquiana.

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Medir o andamento do conflito

Um primeiro resultado da nossa análise é que no Iraque a tendência exibida pelas fatalidades norte-americanas é de crescimento durante todo o período em observação. Durante as sete primeiras semanas (a invasão) morreram aproximadamente 20 soldados por semana. No primeiro ano contado após o fim da invasão, isto é, entre 1 de Maio de 2003 e o fim de Abril de 2004, 5 das 52 semanas estiveram acima desse limiar. No ano seguinte foram 12 semanas, e no terceiro ano 14. Entre 1 de Maio de 2006 e 1 de Maio de 2007, 17 das 52 semanas do ano estiveram acima desse limiar, ou seja, durante um terço deste último ano sentiu-se uma violência superior ao próprio período da guerra da invasão. Esta medição revela uma tendência (persistente e estatisticamente significativa) para o agravamento da situação no Iraque sentida pelas tropas norte-americanas.

Porém, a evolução das perdas não foi homogénea ao longo destes quatro anos, e a natureza dessa evolução é central para uma apreciação da realidade no Iraque. A análise do número de feridos e mortes permite identificar transformações estruturais e movimentos cíclicos no processo de violência. A sua estimação é conseguida através da utilização de modelos estatísticos específicos permitindo mudanças no processo gerador de dados. A associação desses momentos a eventos históricos contribui para uma análise mais fundamentada dos eventuais efeitos de diferentes factores, como sejam intervenções militares, iniciativas de paz ou tentativas de democratização do país. Os dois gráficos exibidos mostram os principais resultados.

 

Mudança estrutural: A emergência da guerra civil

No primeiro modelo utilizado, identifica-se a data em que poderá ter ocorrido uma alteração na regular tendência crescente do número de mortes mensais (3). Estima-se que essa quebra de estrutura tenha ocorrido em Janeiro de 2005. Esta data coincide com a realização das primeiras eleições que elegeram a Assembleia Nacional de Transição, e ocorre pouco depois de um conjunto de eventos: o Ramadão, as eleições presidenciais norte-americanas de 2004, a ofensiva norte-americana em Faluja. A quebra detectada é robusta: emerge significativa, quer façamos o teste para feridos, mortes por semana ou por mês. A linha de tendência apresenta uma queda em nível nessa data, mas continua a crescer, embora com um declive ligeiramente inferior. Na nossa interpretação esta data pode ser vista como uma referência para o momento em que a natureza do conflito passou de um modo de agressão baseado na resistência ao invasor para um conflito interno internacionalizado (4) no qual as baixas norte-americanos são um subproduto de um processo de violência endógeno e auto-referenciado.

 

Existência de ciclos: abrandamentos e intensificações da violência

A segunda abordagem implementada consiste na estimação de um modelo com mudanças de regime markoviano (5) . Nesta óptica de análise assume-se que em cada momento do tempo é possível estar-se num de dois estados possíveis, apelidados aqui de estado de “normalidade” e de estado de “crise”. Neste modelo, períodos “normais” e períodos de “crise” alternam ao longo do tempo de acordo com determinadas probabilidades de transição. De acordo com os resultados da estimação, um período de “crise” tem uma duração média de 10 meses, ocorrendo cerca de 705 feridos por mês. Os períodos “normais” têm uma duração superior, 16 meses, e um menor grau de violência, avaliado em cerca de 371 feridos por mês.

O primeiro período de “crise” verificou-se entre Abril de 2004 e Janeiro de 2005. O início deste período coincide com as “crises gémeas” de confronto entre as forças da coligação e as milícias xiitas leais a Moqtada al-Sadr em Najaf e os rebeldes sunitas em Faluja. Esta data é também identificada por vários actores e observadores, por exemplo Allawi (2007), como um momento importante na história do conflito no Iraque (6). As eleições de Janeiro de 2005, data igualmente identificada através da primeira abordagem, marcam o final deste primeiro período de “crise”.

O segundo período de “crise” começa em Setembro de 2006 e não tinha terminado até ao fim do período em análise. O início deste período coincide com a campanha eleitoral para o Senado e Congresso nos EUA e com uma fase em que surgem os primeiros relatos oficiais da espionagem norte-americana mais pessimistas acerca das possibilidades de um sucesso político e militar e sobre um maior envolvimento da al-Qaeda no Iraque ( The Washington Post , 11 de Setembro de 2006).

 

Perspectivas futuras

Dada a janela temporal usada nesta análise (Março 2003 – Abril 2007) não é possível avaliar o impacto da renovação da estratégia e do reforço da presença norte-americana no terreno (iniciado em Fevereiro de 2007 com o general Petraeus). E uma análise preliminar dos dados já disponíveis não permite ainda conclusões claras. Mas é interessante tentar predizer, a partir das tendências passadas, o cenário possível para o futuro próximo. Da projecção da tendência resulta que, a não se alterarem as condições de base, em Maio de 2008 atingir-se-ia um nível esperado de 98 mortes mensais. Ou seja, o mesmo número de mortes que a média mensal verificada durante a campanha de invasão, 5 anos antes. No entanto, como a realidade é dinâmica, é também possível que o conflito volte a sofrer novas mutações (como, de facto, parece ter ocorrido à luz dos dados disponíveis pós-Abril de 2007).

O que parece mais certo é que o Iraque será um episódio marcante que ensombrará por muito tempo a consciência da comunidade dos decisores políticos militares do século XXI. E se o passado nos ensina alguma coisa sobre a história do futuro é que muito dificilmente todas as lições deste caso serão tidas em conta.

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Informação Complementar

Cronologia do conflito

20 de Março, 2003 – Invasão;

1 de Maio, 2003 – Bush: “Major combat operations in Iraq have ended.”;

20 de Agosto, 2003 – Ataque à sede local da ONU, morre Sérgio Vieira de Mello e outras 16 pessoas;

Abril 2004 – Início dos confrontos em Najaf (milícias xiitas ligadas a Moqtad Al-Sadr) e Faluja (milícias sunitas). Escândalo das fotos da prisão de Abu-Graib;

Novembro 2004 – Bush é reeleito; incursão em Faluja; mês mais sangrento até ao momento para o ocupante norte-americano (137 mortes);

Janeiro 2005 – Eleições para a Assembleia Nacional de Transição;

19 de Agosto, 2006 – 1249 dias desde a invasão, ultrapassa-se a duração da II GM (http://thinkprogress.org);

24 de Setembro, 2006 – Ramadão; decorre a campanha eleitoral para o Senado e Congresso;

3 de Janeiro, 2007 – 3000 militares dos EUA mortos (CNN);

2 de Fevereiro, 2007 – Relatório conjunto das agências de espionagem dos EUA, a situação no Iraque é mais complexa do que “guerra civil”;

10 de Fevereiro, 2007 – O general David Petraeus é feito comandante da Força Multi-Nacional no Iraque com a missão de liderar o reforço de tropas norte americanas (“surge”);

26 Abril, 2007 – Senado aprova resolução para retirada do Iraque até dia 1 de Outubro;

1 de Maio, 2007 – Veto de Bush ao plano de retirada.

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1 - Harbom e Wallensten (2007) – “Armed conflict, 1989-2006”. Journal of Peace Research , vol. 44, n.º 5, p. 623-634.

2 - Singer, P. W. (2004) – Corporate Warriors , Cornell University Press, e Scahill, Jeremy (2007) – Blackwater: The Rise of the World's Most Powerful Mercenary Army , Serpent's Tail.

3 - Uma descrição concisa da metodologia de estimação utilizada aparece em Hansen, Bruce (2001) – “The new econometrics of structural change: dating breaks in U.S. labor productivity”. Journal of Economic Perspectives , vol. 15, n.º 4, pp. 117-28.

4 - Na definição da Universidade de Upsala e do International Peace Research Institute, Oslo (PRIO). Ver, por exemplo, Harbom , Högblah e Wallensten (2006) – “Armed conflict and peace agreements”. Journal of Peace Research , vol. 43, n.º 5, p. 619.

5 - Utilizamos um modelo originalmente empregue para estudar flutuações macroeconómicas que vem descrito em Hamilton, James D. (1989) – “A new approach to the economic analysis of nonstationary time series and the business cycle”. Econometrica , vol. 57, n.º 7, pp. 357-84.

6 - Ver o capítulo 15, “April 2004 – The turning point”. In Allawi, Ali A. (2007) – The Occupation of Iraq: Winning the War, Losing the Peace , Yale University Press.

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* Sandro Mendonça

Investigador no Departamento de Economia do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa e no SPRU, Universidade de Sussex.

 

** Luís Catela Nunes

Doutor em Economia pela University of Illinois at Urbana-Champaign. Professor Associado da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa.

 

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Dados adicionais
Gráficos / Tabelas / Imagens / Infografia / Mapas
(clique nos links disponíveis)

Link em nova janela Ciclos de crise no conflito

Link em nova janela Mortes mensais de soldados norte-americanos

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